segunda-feira, 30 de março de 2015

Ebooks: Timekeeper

Mais um pedaço do universo criado por Anton Stark é revelado neste conto.


Autor: Anton Stark
Sinopse: Tick-tock. The Timekeeper scavenges, in search of remembrance. There was a time when he was no Timekeeper. There was a time when he was a man called Derkan, with a wife and a son. That man died, and the city of Günn along with him. Tick-tock. The Timekeeper scavenges, and remembers. This is a tale about time, about memory, about the end of things. Tick-tock.


A ambientação foi a vertente mais bem conseguida, invocando uma civilização decadente com uma verosimilhança notável. A personagem principal está muito bem explorada e não tem nada de uni-dimensional. Os pedaços do passado foram muito bem introduzidos na narrativa. A acção desenvolve-se a um bom ritmo e é uma leitura agradável. O único ponto menos positivo foi o facto do início ser um bocado confuso, porque ainda não nos habituamos ao universo.
Recomendo a quem gostar de ler o melhor que os autores portugueses escrevem em inglês.

Classificação: 4 estrelas

domingo, 29 de março de 2015

Chá de Domingo #36: Camp Nanowrimo - Abril de 2015

Preparados para mais um Camp Nanowrimo?


Este Abril decidi participar no Camp Nanowrimo com o objectivo de terminar o meu romance distopico O Canto do Rouxinol. Este manuscrito teve uma relação avessa com os Nanowrimos e Camp Nanowrimos. É a terceira vez que participa no Camp Nanowrimo (Abril de 2013, Julho de 2013 e Abril de 2015). Tentei terminá-lo tambem em dois Nanowrimos (2013 e 2014) sempre sem sucesso. Poderiamos dizer que estava amaldiçoado mas, como não acredito nessas coisas, vou apenas dizer que o esforço e tempo não foram os suficientes. Podem saber o resto da história aqui.

A meta são as simpáticas 30000 palavras, ou seja 1000 por dia. Deve ser mais que suficiente para terminar o livro. Isto significa cerca de 2 horas por dias a escrever.

Aqui fica o link para o manuscrito no site oficial do Camp Nanowrimo.

Mais alguém vai participar?

sexta-feira, 27 de março de 2015

Ebooks: Uma Caligrafia de Violência

Nuno Almeida é um jovem autor português, vale a pena ler um dos seus primeiros contos.


Autor: Nuno Almeida
Sinopse: Lux decidiu escrever a sua ignóbil obra de destruição com o seu sangue e na sua pele.


Escrito num tom mais sombrio do que estamos habituados em relação ao autor. A personagem falha em conseguir criar empatia com o leitor por falta de motivações da mesma e o universo ficcional não está bem estabelecido. Contudo, o final pode causar um arrepio. A ideia está muito interessante. A acção, apesar de se centrar num momento, está bem estruturado e é desenvolvida sem arrastar.
Recomendo a quem queria conhecer uma faceta mais sombria do autor.

Classificação: 3 estrelas

quarta-feira, 25 de março de 2015

Ebooks: Abraça-me para Sempre

Um conto de Carla Ribeiro no Fantasy and Co.


Autora: Carla Ribeiro
Sinopse: Perseguidos por um poder superior, dois irmãos esperam a libertação. Kari e Alecs decidem permanecer juntos até ao fim.



É uma história bonita que vale a pena ler. A autora manteve o registo que lhe é característico. Este conto deixa algumas perguntas por responder. Beneficiaria de uma melhor ambientação e explicação da situação. O desenvolvimento é um tanto lento, mas compreende-se o porquê de ter sido assim.
Recomendo.

Classificação: 3 estrelas

segunda-feira, 23 de março de 2015

Ebooks: Mapmaker

Outro conto do universo ficcional criado por Anton Stark.


Autor: Anton Stark
Sinopse: Patiently, the mapmaker sat atop his tower and observed. Come, sit. Observe, as the mapmaker did. Read and enjoy this short piece on the fundamental difference between imagination and reality.


Este pequeno conto deixou-me um impressão bastante forte. Não só temos pedaços importantes do worldbuilding introduzidos de uma maneira conveniente como não podemos deixar de sentir empatia pela personagem principal. Na minha opinião, deve ser entendido como uma alegoria, visto que não fica esclarecido quem é que alimenta o fazedor de mapas ou como é que ele sustenta. Por outro lado, parece-me pouco verossímil que uma civilização decadente como a que é descrita no conto se possa dar ao luxo de ter um fazedor de mapas.
Recomendo!

Classificação: 4 estrelas

domingo, 22 de março de 2015

Chá de Domingo #35: Hero's Journey / Monomyth

Hoje vou pegar em algo que muita gente já notou em livros e filmes, mas nunca conseguiu dar-lhe um nome.


Quem já viu Star Wars, Senhor do Anéis, Harry Potter? Quase todos nós! Apesar dos mundos serem diferentes e as histórias serem aparentemente distintas, damo-nos de conta de uma certa semelhança entre elas. Mesmo outros filmes, uns mais e outros menos conhecidos são construídos sobre o mesmo template. Este molde chama-se Monomyth ou a Jornada do Herói, a qual se ilustra na imagem abaixo:


Este molde é também usado em histórias míticas, como, por exemplo, a de Jesus Cristo ou a dos heróis gregos. Esta estrutura também está presente na literatura. Um exemplo notável é Moby Dick de Melville. No entanto, os trabalhos de Charles Dickens, Faulkner, Maugham, J. D. Salinger, Hemingway, Jane Eyre, Mark Twain, W. B. Yeats, C. S. Lewis, Seamus Heaney e Stephen King também encaixam perfeitamente neste paradigma.


O Monomyth segue a seguinte estrutura:
  1.  Mundo Comum - O mundo normal do herói antes da história começar.
  2.  O Chamamento para  a Aventura - O herói é confrontado com um problema, um desafio ou uma aventura.
  3.  Reticência do Herói ou Recusa do Chamamento - O herói recusa ou demora a aceitar o desafio ou aventura, geralmente porque tem medo.
  4.  Encontro com o Mentor ou Ajuda Sobrenatural - O herói encontra um mentor que o faz aceitar o chamado e o informa e treina para sua aventura.
  5.  Cruzamento do Primeiro Portal - O herói abandona o mundo comum para entrar no mundo especial ou mágico.
  6.  Provações, aliados e inimigos ou A Barriga da Baleia - O herói enfrenta testes, encontra aliados e enfrenta inimigos, de forma que aprende as regras do mundo especial.
  7.  Aproximação - O herói tem êxitos durante as provações
  8.  Provação difícil ou traumática - A maior crise da aventura, de vida ou morte.
  9.  Recompensa - O herói enfrentou a morte, se sobrepõe ao seu medo e agora ganha uma recompensa (o elixir).
  10.  O Caminho de Volta - O herói deve voltar para o mundo comum.
  11.  Ressurreição do Herói - Outro teste no qual o herói enfrenta a morte, e deve usar tudo que foi aprendido.
  12.  Regresso com o Elixir - O herói volta para casa com o "elixir", e o usa para ajudar todos no mundo comum.
Para mais detalhes, podem consultar esta ligação. Como exercício, propunha que pegassem no vosso filme ou livro favorito e tentem ligar estes estágios com o que acontece. E deixo o desafio de encontrarem histórias que não sigam este paradigma.

sexta-feira, 20 de março de 2015

O Poeta - Parte 2 de 2

Podem ler a primeira parte aqui.


Os olhares não duraram mais do que um doloroso par de segundos. Já os jovens haviam perdido o interesse nele há alguns momentos e o coração ainda batia descompassado.
Vagueou ao acaso, tentando absorver o máximo desta realidade. As novas bandeiras faziam-lhe confusão. Ardia em curiosidade para saber o que acontecera, mas tinha receio de, ao perguntar, ser tomado como estrangeiro. Para além disso, não conversara com ninguém durante mais de uma década.
Recordou-se da última vez em que trocara impressões com o filho. Fora algures no início da década de vinte. Como era normal, ele deixara-lhe o almoço numa travessa à entrada do sótão e batera na madeira sólida. Ao abrir a porta, depara-se com um jornal ao lado da refeição.
― Tiago!
Ele voltara atrás, de olhar surpreendido.
― Obrigado pela comida ― agradeceu o idoso, acalmando-se.
― De nada, pai. Há alguma coisa de errado?
― Tiago, preferia que não me trouxesses jornais. Não me quero distrair com essas coisas. Quero conseguir concentrar-me totalmente na escrita.
― Desculpe, pai, não volta a acontecer ― ripostou o homem de meia-idade, voltando costas e desaparecendo sem esperar por uma resposta.
Depois do 11 de Setembro e do clima de Guerra Fria instalado contra um inimigo invisível e inventado pelos soberanos, Manuel perdera o interesse nas notícias. Os jornais diziam todos os dias o mesmo, interesses e interesses, excepto os seus.
Algo atraiu a sua atenção. Do outro lado da estrada havia uma livraria. Sem pensar duas vezes, atravessou a antiga faixa de rodagem, agora coberta com calçada portuguesa, e entrou no estabelecimento. Esforçou-se para mostrar um tom neutro enquanto procurava com o olhar a secção de História.
― Muito bom dia ― cumprimentou-o o lojista.
O coração falhou-lhe uma batida. Não esperava ser interpelado tão prontamente. O sotaque era-lhe familiar, mas não o que esperava de um habitante da Invicta.
― Bom dia.
O empregado, quase tão velho como ele, franziu o sobrolho.
― Em que posso ajudá-lo?
― Tem algum volume da história recente de Portugal?
O comerciante arregalou os olhos, como se tivesse acabado de ouvir algo escandaloso.
― Desculpe, mas não temos nenhum livro desse género.
Pela segunda vez nesse dia, o maxilar descaiu-lhe. Nunca antes havia estado numa livraria em que não houvesse uma secção inteira dedicada ao tema.
― Podia ter a bondade de me indicar onde se situa a prateleira de História?
Sem mais uma palavra, o homem apontou para um dos cantos da loja. Manuel mancou até lá, sem se atrever a quebrar o silêncio. De toda a estante, só metade de uma prateleira é que era dedicada a História. As lombadas não deixavam margem para dúvidas, Portugal já não existia. Nenhum livro do quarteirão disponível abordava outro assunto que não fosse a História de Porto e Galiza.
Abandonou o estabelecimento sem sequer agradecer. Procurou regressar a casa pelo mesmo caminho, precisava de retornar ao seu refúgio. Concentrado em colocar uma perna à frente da outra sem forçar demasiado os joelhos, não reparou nos dois homens que se aproximavam.
A colisão atirou-o ao chão. Os óculos saltaram e a visão ficou turva. Os dois vultos permaneciam à sua frente.
― Peço imensa desculpa ― amenizou, enquanto os dedos procuravam os óculos.
Sentiu a haste com o dedo mindinho. Puxou a armação e colocou-a sobre o nariz, recuperando a sua visão normal. Como duas torres, os dois homens vestidos com um fato quase tão antigo como o seu, observavam-no com ar de poucos amigos.
― Mostre-nos a sua identificação ― exigiu o mais alto.
― Não tenho nada ― balbuciou a tremer.
― Então vai ter que nos acompanhar até à Direcção Regional dos Assuntos Internos. Vá levante-se ou temos que o arrastar à força? ― rugiu um deles, estendendo a mão e agarrando-o pelo colarinho.
Os dois agentes conduziram-no à bruta pelas ruas até chegarem ao que Manuel recordava ser uma antiga esquadra da PSP. Sem cerimónias ou explicações, fecharam-no numa das celas.
***
Sentado na cadeira e apoiado na bengala, Manuel esperava que Tiago regressasse à cozinha. Quando este transpôs a entrada, recebeu-o com um olhar de cachorro submisso.
― Desculpa…
O filho fitou-o com uma expressão indecifrável, suspirando de seguida.
― Não percebo, juro que não percebo! ― exasperou-se, abanando a cabeça.
― Eu estava bloqueado, não escrevia nada há dias…
― Mas sair assim de casa? Sem sequer avisar? Os tempos mudaram, o nosso país já não é o mesmo. Não se pode andar pela rua sem os documentos. Aliás, o pai não pode sequer abrir a boca que vão notar que tem um sotaque diferente. O pai passou demasiado tempo fechado naquele sótão. Outra coisa que não percebo ― despejou, acabando por se sentar em frente ao pai, ofegante, como se tivesse realizado um grande esforço físico.
― Eu queria criar a maior obra da língua portuguesa…
― Essa língua já não existe, pelo menos deste lado do Mondego. Nunca devia ter permitido que passasse tanto tempo trancado naquele cubículo!
Os olhares cruzaram-se, o de um velho cansado e de um quarentão zangado.
― Valeu a pena? ― perguntou o filho.
― Como? ― admirou-se Manuel, arregalando os olhos.
― Conseguiu escrever a obra que tanto ansiava?
O idoso fitou a ponta dos sapatos, sem se atrever a levantar a cabeça.
― Não ― confessou uns momentos depois. ― E acho que nunca a irei terminar. Queria honrar uma nação que já não existe. Não só a nível soberano, territorial ou linguístico, mas aquela ideia que permaneceu durante mais de 800 anos, de um país uno que deu novos mundos ao mundo. Sem isso não vale sequer a pena terminar.
A tremer, levantou-se da cadeira, quase num esforço sobre-humano. A velhice apoderara-se dele. Olhou o filho e deu-lhe o seu melhor sorriso. Abraçaram-se por fim.
― Desperdicei vinte anos da minha vida por isto. Devo ser o maior idiota que existe mas, pelo menos, aprendi a minha lição. Espero que me perdoes…
A expressão de Tiago deixou-o mais sossegado. Não eram necessárias palavras. Depois encaminhou-se para o seu sótão, disposto a queimar tudo, até à última folha.


quarta-feira, 18 de março de 2015

Os Cadáveres


Sou um homem morto. Respiro, o meu coração bate e ainda raciocino. Apesar disso, sou um homem morto. Aperto a arma que trago dentro do casaco e dou uns passos em frente. Os ouvidos zumbem. Não vale a pena sequer buscar o carro. Não iria funcionar. Sinto uma dor aguda no ombro, acho que o desloquei. É a menor das minhas preocupações. Aliás, um homem morto não tem preocupações. Passo a mão pela testa e vejo-a coberta de sangue. Só há uma coisa que gostaria de fazer. Mais que gostar, que tenho de fazer. Alguém me agarra o braço e aponta para uma vitima que jaz numa poça de sangue. Sacudo-a com um safanão. Outras pessoas arrastam-se pela rua devastada. Outras pessoas não, cadáveres como eu. Talvez gritem. Parece-me que sim, não tenho como saber. O maldito zumbido continua. Vejo-os agitar os braços, enquanto correm em ziguezague à procura de ajuda. Alguns não se mexem. Estão apenas um pouco mais mortos que eu. A ajuda não virá. Estamos por nossa conta. E há um amaldiçoado vento, que sopra na pior direcção. Era polícia, enquanto estava vivo. Deveria auxiliar os feridos e impedir o caos. Não vale a pena. No passeio jaz uma mulher de meia-idade com os membros torcidos em ângulos impossíveis. Há uma criança empalada num sinal de trânsito. Vomitaria se ainda tivesse algo no estômago. Há quem olhe para o meu uniforme desfeito com um raio de esperança. Ingénuos. O que fui antes da morte não vos pode valer. Passo a passo, vou-me aproximando do meu destino. Há pequenos fogos um pouco por todo o lado. Vi roupas incendiarem-se nos corpos dos seus donos. As folhas de papel arderam também. E, claro, a pele. As piores lesões são as queimaduras que desfiguram rostos. Vidros partidos espalhados por todo o lado. Perdi por completo o uso da audição. Nunca mais vou ouvir o riso da minha esposa. Ridículo! Mesmo que os meus ouvidos funcionassem, não irei escutar mais que gritos e choro. Um corpo em convulsões com vários pedaços de vidro espetados na face. Os que tiveram uma morte instantânea foram os mais afortunados. Sinto as pernas fraquejar. Não posso parar, nem desistir. Em breve terei uma eternidade de descanso. Tanto entulho. Os edifícios ruíram. Sobrou apenas a estrutura, que se ainda se ergue como um esqueleto vazio de vida. Tal como nós. Humanos projectados contra os objectos. Objectos projectados contra humanos. Toneladas de entulho. Sem distinção. Sem piedade. Partidos em vários pedaços. Quebrados. Esmagados. Esfarelados. Foram os mais afortunados. Outros ficaram soterrados. Não consegui ouvir os gritos deles, mas consigo imaginá-los. Não posso fazer nada por eles. Ninguém pode. Eu não posso fazer nada por ninguém. Mas há uma coisa que tenho de fazer. Sinto líquido quente na boca. Cuspo sangue. Não interessa, estou morto. Vejo um par de pernas debaixo de um monte de entulho. Há uma viatura enfiada numa casa. Há um corpo esmagado entre a parede e o automóvel. Estou a chegar à minha rua. Aqui nem todas as casas ruíram. Há um grupo de pessoas que tenta ajudar outra. Ingénuos. Não sentem o vento? É tarde demais. Não interessa, somos todos cadáveres, só que alguns ainda não sabem disso. Eu sei. Há umas horas atrás, se me perguntassem se tinha medo da morte, eu afirmaria, sem hesitar, que sim. Mas isso foi antes de morrer. Agora, desejo apenas a grande escuridão. E não vai tardar. A luz. A grande luz. Não vi a grande luz. Gostaria de ter visto a grande luz. Tudo teria sido mais fácil. Mais imediato. Sem dor, nem sofrimento. Pensei nos meus dois filhos. A esta hora já deviam estar em casa. Horas. Um morto não conta horas. O tempo deixou de existir. Estes são apenas instantes com os quais fui amaldiçoado. A casa de rés-do-chão ainda está de pé. Bem, quase toda. O pátio foi esmagado e a varanda arrancada. Já não tem janelas. A madeira não está chamuscada. As forças faltam-me. Sou cada vez mais cadáver. Somos todos. Entrei pela porta escancarada. Atravesso um corredor cheio de detritos e paredes danificadas. Não preciso procurar, sei que estão na cozinha. Ao atravessar o vão da porta, vejo-os num canto. Já nada me pode surpreender. Aquela que foi o meu amor em vida olha-me e um sorriso trespassa-lhe o rosto. O meu coração contrai-se. Por favor, não tornes tudo mais difícil. Ela está sentada no chão e abraça a minha filha. As queimaduras de ambas são extensas. Há enormes áreas de carne viva na cara, nos braços e nas pernas. Há lágrimas. Vejo que sofrem. A miúda chora com gritos que só consigo imaginar. O mais novo está no chão. O peito mexe-se com dificuldade. Um pedaço de madeira alojado no ventre. Há compressas embebidas em líquido sobre a mesa. Tentativas fúteis. Claro que compreendem o que aconteceu. Quem poderia não compreender? Ela diz-me algo. E a mais pequena também. Não quero lembrar-me do nome dela. Não quero lembrar o nome de ninguém. Não respondo. Não me mexo. Mantenho a expressão de morto. Um morto que aceita aquilo que é. Eles ainda não aceitaram. Não pensei que fosse tão difícil. No entanto, é a coisa certa a fazer. Será que não compreendem? Os olhares dizem-me que não. Os lábios movem-se de novo. Não entendo, não quero entender. Não respondo. A brisa que outrora nos acariciou a pele molesta-nos a cada momento. Maldito vento. Amaldiçoada luz. Infeliz momento em que nascemos. Não vale a pena esperar mais. Meto a mão dentro do casaco e empunho a arma. Sou recebido com um olhar de surpresa e medo. Um disparo. Ela cai com a cara desfeita. A garota começa a gritar. Outro disparo. Uma mancha de sangue, ossos, massa encefálica e cabelos espalha-se pelo chão. Mais um disparo. O mais novo deixou de sofrer. Desde a grande luz não passou mais de um instante. Encosto a arma à têmpora. Sou um homem morto.



segunda-feira, 16 de março de 2015

O Poeta - Parte 1 de 2

Manuel desenhou as letras na folha. Quatro de Março do ano da graça de 2032. Fixou o papel e as palavras não lhe vieram. Pousou a caneta e levantou-se da cadeira, abandonando a folha meio escrita, fruto das tentativas do dia anterior. De súbito, ao voltear com a sua bengala no reduzido quarto nas águas furtadas, o refúgio das duas últimas décadas pareceu-lhe uma prisão.
Mirou a porta por onde o filho lhe trazia três refeições por dia, uma resma de papel e duas canetas por semana. O olhar desviou-se para a janela, por onde observara as revoluções e batalhas dos últimos anos sem grande interesse. Recusara televisão, rádio e até mesmo jornais, ambicionando escrever a maior epopeia portuguesa de sempre.
Largou os chinelos e procurou uns sapatos no armário. Abaixou-se a custo, os joelhos e costas já não lhe obedeciam como outrora. Removeu as teias de aranha da primeira caixa e abriu-a, encontrando os seus velhos sapatos castanhos de camurça. Longe estavam os dias em que leccionara literatura clássica na Universidade. Num impulso, despiu a roupa gasta e tentou vestir o fato castanho que usara diariamente. Ficava-lhe muito apertado, o que o surpreendeu, pois não se sabia tão gordo. Completou a indumentária com a mesma gravata azul escura de sempre.
Em passo decidido, aproximou-se da entrada. A mão deteve-se ao tocar no puxador, apercebendo-se que não sabia nada sobre o que estava para além da porta. Vieram-lhe à memória os soldados e tanques na rua, os bombardeamentos nocturnos. Não fazia ideia sequer se não haviam sido invadidos pela Alemanha e se ainda seria possível falar português na rua. Sorriu e abanou a cabeça. Achou o pensamento absurdo. Quando se decidira fechar ao mundo, Portugal afundava-se com uma enorme dívida, mas com certeza não era razão suficiente para que as pessoas falassem alemão na rua.
As falanges dos dedos fecharam-se em torno do puxador. O trinco soltou-se e uma brecha surgiu. A porta entreabriu-se lentamente. Nos últimos vinte anos, nunca fora mais longe. Perdera a conta às vezes em que recuara com as escadas sombrias já à vista. Empurrou a pesada estrutura de madeira e meteu o pé direito no primeiro degrau. Os joelhos rangeram e uma dor atravessou-lhe a tíbia. Segurou-se ao corrimão com a mão esquerda e apoiou a bengala. A custo repetiu o processo, descendo lentamente até ao corredor mal iluminado.
As paredes cobertas com tinta amarela meio descascada e adornadas por candeeiros que mais pareciam peças de museu continuavam fiéis à sua memória. Avançou, tão rápido quanto a sua condição lhe permitia, até ao lanço de escadas seguinte. Não encontrou ninguém. Uma vez no rés-do-chão decidiu resistir ao impulso de bater à porta do filho, dirigindo-se à entrada do prédio.
Ao pisar as lajes brancas, as pernas começaram a tremer. Relembrou um dos primeiros dias de Janeiro de 2012 em que entregara uma pasta cheia de papéis ao filho.
― Deixei-te tudo como herança ― dissera-lhe. ― Quero dedicar-me à escrita a tempo inteiro e só te peço que me tragas comida três vezes ao dia, uma resma de folhas e duas canetas por semana.
Ele lançara-lhe um olhar de incredulidade.
― Eu sei o que estás a pensar ― interrompeu o seu descendente antes que este ripostasse. ― Não há nada que me possas dizer que me irá convencer. A minha decisão é final!
De volta ao presente, atento à rua. E pela primeira vez notou o silêncio. Esta parecia-lhe igual, com excepção do tráfico. Não passava um único carro na que fora uma das avenidas mais movimentadas do Porto.
Saiu. Os sapatos pousaram sobre a calçada. O piso irregular trouxe-lhe sentimentos agridoces. Quisera ser o maior poeta que Portugal alguma vez criara e acabara por se fechar durante vinte anos. Não se conseguia reconhecer.
Caminhou pela rua. Havia poucos transeuntes àquela hora e todos pareciam atarefados com qualquer trabalho. Deviam ser umas nove da manhã e a maioria deveria estar no trabalho. Saiu da sua rua, chegando ao que fora a rotunda da Boavista. Piscou os olhos, deixando o maxilar descair: o monumento dera lugar a sacos de areia empilhados que protegiam várias peças de artilharia. Rapazes, pouco mais que garotos, estavam em sentido em frente às armas. Um deles observava o céu com binóculos e o mais velho, que tinha uma farda diferente, passava em revista a guarnição.
Havia algo de familiar naquela organização. Já vira expressões semelhantes. Recordou-se então do dia em que o pai o levara a ver um desfile. Talvez tivesse uns oito anos, não sabia ao certo. Decerto acontecera no início dos anos setenta.
A rua estava cheia, todos queriam ver os seus filhos. O membro mais avançado levava uma enorme bandeira de Portugal. Todos caminhavam vestidos com os mesmos uniformes de aspecto militar. Seria, provavelmente, uma das últimas pessoas vivas que assistira a uma marcha da Mocidade Portuguesa.
Ao olhar para a instalação militar uma lágrima correu-lhe pelo canto do olho. Nem sequer a bandeira hasteada no ponto mais alto da base era a mesma. O escudo era semelhante, mas as cores eram diferentes, apesar de estranhamente familiares. Branco e azul claro.
― Galiza! ― exclamou, atraindo as atenções do pelotão.


Podem ler a segunda parte aqui.

domingo, 15 de março de 2015

Chá de Domingo #34: Personalidades Masculinas Lux 2014

Aviso desde já que esta publicação, a título excepcional, não serve para informar ninguém.


Quem é que já ouviu falar no prémio Personalidades Masculinas Lux 2014? Não ouviram? Considerem-se afortunados, não contribui em nada para a felicidade de ninguém, excepto, talvez, dos visados. Para quem, apesar desta advertência, quiser saber mais, por favor consulte esta ligação.

Para quem não quiser abrir a ligação, vou resumir. Foram escolhidas várias personalidades em diferentes áreas por um júri supostamente independente e prestigiado. Os finalistas foram votados pelo publico, que assim elegeu a maior personalidade portuguesa numa dada categoria.

Vou apenas comentar as escolhas da literatura: José Luís Peixoto, com o romance “Galveias”, Pedro Chagas Freitas, com “Prometo Falhar” e “O Paraíso São os Outros” de Valter Hugo Mãe, sendo este último o vencedor. Não querendo entrar em detalhes, creio que não vale a pena entrar em detalhes quanto à qualidade literária de alguns dos candidatos. Considero que haveria escolhas mais pertinentes e merecedoras.

O que é que acham do assunto?

sexta-feira, 13 de março de 2015

Livros: Estranhos Visitantes - O Poder Interior

Vamos a mais um livro desta jovem editora.


Autor: Bruno Matos
Sinopse: Um misterioso cristal vermelho é atirado para um lago por extraterrestres em fuga, contaminando a água. Anos depois, a vida de três amigos vai dar uma grande volta ao descobrirem que têm poderes sobre-humanos! Qual será a relação entre os poderes e o cristal? Quem serão os misteriosos militares que andam no seu encalço, para além de criaturas que não parecem deste mundo? Junta-te ao Sebastião, à Rita e ao Niko nesta grande aventura, numa nova edição da saga “Estranhos Visitantes” que já encantou muitas leitoras e leitores!


Creio que o maior problema deste livro são os clichés. No início, a cena dos extraterrestres é um exemplo disso, assim como algumas personagens. Fora isso, a acção desenvolve-se bem e a bom ritmo. Vai havendo revelações e reviravoltas que mantenham o leitor preso às páginas. é fácil sentir empatia pelas personagens. Há detalhes interessantes, se bem que há muita coisa que gostaria que de ver explicada nos volumes seguintes. Pena que apenas tenhamos a primeira parte e tenhamos de esperar pelas outras duas.
Recomendo a quem gostar de livros infanto-juvenis portugueses!

Classificação: 3 estrelas

quarta-feira, 11 de março de 2015

Livros: Downsprial - Volume 1 - Prelúdio

E voltei aos autores portugueses!


Autor: Anton Stark
Sinopse: Dinheiro. É tudo o que Alleth Vairs necessita e tudo o que o levou a juntar-se ao Serviço de Reconhecimento Amorsleano. O trabalho de espião paga bem, mas a nova missão pode trazer-lhe mais do que uma recompensa avultada. E os deuses, dizem, são graciosos...
O duque Rehnquist Alvaro sonha com uma Amorslea forte e unida. Para se certificar que certos obstáculos são removidos desse caminho, terá que operar nas sombras, manipulando os destinos do reino com jogos de poder.
Stephan Kallistos é atirado à força para o comando de um regimento destroçado após uma esmagadora derrota da Confederação. A promoção não lhe agrada, de todo. De facto, o avanço na carreira pode revelar-se terminal.
Do Norte Gelado os Crentes lançam-se uma vez mais contra os hereges do sul, e Quanon da Chama avança com os seus irmãos de templo nas fileiras da frente, pronto para a batalha.
Neste primeiro volume da saga Downspiral, a primeira saga steampunk em português, o leitor percorrerá por terra, água e ar os territórios dos Reinos de Vapor, acompanhado por várias personagens cujos destinos se entrecruzam - e, mais importante de tudo, começará também ele a questionar-se: o que é o Sopro, para que serve, e porque tantos o procuram?


A parte do Alleth é desnecessariamente engraçada e demasiado inverossímil. O tom dessa linha não é compatível com o resto do livro. Não gostei do final ser aberto, nem das mudanças de perspectiva à la carte. Dava jeito uma lista de personagens, visto que quando cheguei ao fim das primeiras 100 páginas já não sabia quem era quem. A descrição nalgumas partes cheira a info dump. Há gralhas e erros de paginação.
Agora que já apontei os pontos maus, vou passar aos bons. O universo criado é imenso e consistente. Nota-se que o autor teve bastante empenho. A maioria das personagens é interessante e tem reacções compatíveis com o que se esperava delas, sem se tornarem muito previsíveis. Não há momentos mortos, se bem que questiono a utilidade de algumas cenas para a trama. Há alguns Easter Eggs.
Só me resta esperar pelo segundo volume!
Recomendo a quem gostar de Steampunk e quiser descobrir um promissor jovem português.

Classificação: 3 estrelas

segunda-feira, 9 de março de 2015

Concertos Memoráveis - Parte 2/2

Aqui fica a segunda parte da publicação dos concertos memoráveis. Podem encontrar a primeira parte em: http://pedro-cipriano.blogspot.pt/2013/12/concertos-memoraveis-parte-12.html

Xutos e Pontapés

Vários Concertos

Quem é que nunca assistiu a um concerto dos Xutos e Pontapés? Os Xutos são uma daquelas bandas que se podem ver vezes sem conta sem nunca nos fartarmos.


O concerto mais memorável foi o da Semana Académica, que assisti no meio de pessoas conhecidas, no auge da minha experiência universitária. Fomos premiados com todos os êxitos conhecidos, nomeadamente A Minha Casinha, Contentores, O Homem do Leme, Circo de Feras, Fim do Mês e Maria. Apesar de eles já não serem propriamente jovens, ainda mostram uma grande energia no palco.


Epica

Agosto de 2009

O meu contacto com a banda começou pouco mais de um ano antes de os ver ao vivo. O facto de os ter apanhado em concerto foi uma feliz coincidência, derivada ao facto de o Vagos Open Air ter sido feito esse ano perto de onde vivia.



Escolhi este vídeo, que apesar da fraca qualidade sonora (não é de todo possível capturar o som com as máquinas digitais comuns), reflecte bem o ambiente do concerto. Para quem quiser, podem encontrar a versão oficial aqui. Não fiquei tão à frente como gostaria, mas pelo menos livrei-me da confusão que se gera na parte central dianteira, sem ficar com a visão prejudicada. O concerto teria tido outro impacto se fosse à noite, o facto de ter sido em plena luz do dia estragou um pouco o efeito. Apesar de tudo, foi um dos meus concertos favoritos.


Dead Can Dance

Junho de 2013

Este grupo não é muito conhecido, apesar da vocalista já ter participado na banda sonora de filmes como o Gladiador.


Pouco contacto tive com esta banda antes de ir ao concerto. A actuação aconteceu num pequeno espaço, que apesar de ser ao ar livre, estava fechado. O tempo estava excelente e era fim da tarde. As letras dos Dead Can Dance raramente são traduzíveis para uma linguagem conhecida, mas a mensagem que transmitem é universal. A combinação de sons é épica e fica-nos no ouvido durante muito tempo. A presença em palco dos artistas foi fenomenal. Passaram a ser uma das minhas referências.

Blasted Mechanism

Abril de 2008

Os concertos dos Blasted Mechanim são sempre uma experiência fora do comum.



Tentar descrever um concerto dos Blasted Mechanism para quem nunca este num é uma tarefa ingrata. Não é só o som, é toda a encenação, adereços e luz. Devo confessar que em casa não me puxa muito para os ouvir por achar que um vídeo não consegue transmitir o mesmo que um concerto.

domingo, 8 de março de 2015

Chá de Domingo #33: Vamos Falar do Interstellar - Parte 3

Não era suposto haver uma terceira parte, mas não consegui resistir.

Podem encontrar a primeira parte aqui e a segunda aqui.


Se nas duas primeiras partes falamos do que correu bem no filme em termos de física, na terceira temos de abordar o que, na minha opinião, esteve menos bem. 
Costuma-se dizer que o diabo está nos detalhes. Alguns desses detalhes foram muito bem pensados e executados. Por exemplo no início do filme, quando o vaivém levanta voo, vê-se o foguete a rodar lentamente, um detalhe muito bem adicionado e 100% correcto. Outro detalhe bem feito é a gravidade da Endeavor feita por centrifugação.
Então o que é que correu menos bem?

Ondas no Planeta da Àgua
Para haver ondas daquele tamanho seria necessário que houvesse um vento extremamente violento, o qual não aparece no filme. A alternativa a isso era que não fossem ondas mas sim marés, o que me parece ser mais plausível. Mesmo assim, as ondas não teria esse formato, precisaria de ter quilómetros de espessura e durar tanto como a fase menos inundada. Para além disso teriam de ser mais graduais.

Onde para a estrela?
De notar que a única fonte de luz dos três planetas extra-solares é o disco de acreção de um buraco negro. Não há mais nenhuma estrela por ali. Não me parece uma boa escolha para futura casa da humanidade.

Esparguetização no Buraco Negro
Quando um objecto se aproxima do horizonte de eventos de um buraco negro, sente uma enorme diferença de gravidade entre o seu topo e o fundo. O horizonte de eventos é o ponto a partir do qual nem a luz consegue escapar do buraco negro. Essa diferença causa o efeito de esparguetização, ou seja, a diferença é tanta que a parte de baixo seria puxada com maior força do que a de cima, tornando o objecto num "esparguete". Tal não aconteceu no filme.

No site Astropt há mais erros encontrados, podem consultar aqui. Eu limitei-me a apontar os que descobri por mim mesmo na visualização do filme.

Espero que tenham gostado desta curta viagem à física do Interstellar.


sexta-feira, 6 de março de 2015

Livros: A Submissa e Outras Histórias

E que tal um regresso ao século XIX?


Autor: Fiódor Dostoiévski
Sinopse: Com A Submissa e Outras Histórias a Presença continua a publicação dos contos de Fiódor Dostoiévski, depois dos volumes Coração Fraco e Outras Histórias e O Ladrão Honesto e Outras Histórias. Os três primeiros textos incluídos nesta colectânea, publicados entre 1862 e 1867, são «Uma História dos Diabos», «Apontamentos de Inverno sobre Impressões de Verão» e «O Crocodilo». Os textos que se seguem fazem parte de «O Diário do Escritor», uma coluna que Dostoiévski publica durante a década de 70 do século XIX, pertencendo a este período alguns dos seus contos mais importantes, como «Bobok», «A Submissa» e «Sonho de Um Homem Ridículo».
A tradução, directamente a partir do russo, esteve a cargo de Nina Guerra e Filipe Guerra, vencedores do Grande Prémio de Tradução Literária APT/Pen Clube Português.


Uma História dos Diabos: A premissa é interessante e o desenvolvimento também. Pena a história ser interrompida com inúmeras explicações e divagações. Apesar disso, é uma sátira hilariante cm personagens memoráveis. 4 estrelas

Apontamentos de Inverno sobre Impressões de Verão: Prometia ser uma crónica de viagens e acaba por ser uma crítica de costumes em forma de ensaio sobre a influência da Europa na Rússia. Para quem espera um conto, é difícil de ler. 2 estrelas

O Crocodilo: Uma história fantástica, cheia de humor e sátira. Gostei bastante por as personagens serem tão vincadas que se tornam cómicas, assim como toda a acção. O único ponto negativo é o final abrupto. 4 estrelas

Bubok: Continuando na veia fantástica do autor, esta história não prima pelo enredo mas pela ideia que lhe está inerente. 3 estrelas

Menino Numa Festa de Natal: Um conto tão belo quanto breve. A ideia pode não ser original, mas é daquelas que nos causa sempre impacto. 4 estrelas

O Mujique Marei: Breve, auto-biográfico e intenso. Gostei da ideia que está por trás e da execução. 5 estrelas

A Centenária: Outra história curta e interessante, onde se compreende a ideia apesar da execução não ser tão boa quanto a anterior. 4 estrelas.

A Submissa: Este é sem dúvida o melhor conto do livro. Uma trama complexa junta-se personagens com uma profundidade psicológica que só este autor consegue atingir. O próprio narrador é humano, o que acrescenta valor à narrativa. 5 estrelas

Sonho de um Homem Ridículo: Bem mais ao estilo de Dostoiévski, este conto fantástico defende uma tese interessante. Ou pelo menos, o narrador acredita que sim. Gostei bastante deste conto, tanto pelo desenvolvimento como pela mensagem implícita. 5 estrelas

Classificação: 4 estrelas



quarta-feira, 4 de março de 2015

Livros: Os Cinco e os Espiões

E continuamos com a famosa colecção Os Cinco de Enid Blyton.


Autora: Enid Blyton
Sinopse: O que é que o Tio Alberto está a fazer na ilha de Kirrin? Não deixa que ninguém o visite, nem mesmo a filha e os sobrinhos! Mas ele não está sozinho na ilha da Zé - alguém vigia todos os seus movimentos!
Os livros de Enid Blyton deliciaram gerações de jovens. Esta nova edição transporta a sua obra para o século XXI, realçando o seu fascínio intemporal.


A trama foi mais elaborada que os livros anteriores, não sendo o antagonista de todo previsível (pelo menos não todos os antagonistas). Para mim, o tema escolhido é mais interessante, apesar de nestas escolhas eu ser suspeito. As personagens mantêm as suas personalidades vincadas que as tornam arquétipos. A acção avança muito lentamente nos primeiros capítulos, havendo o incidente inicial nas primeiras linhas, o que não acontece em todos os livros.
Fico apenas desapontado com a edição, pela modernização do texto e pela omissão de ilustrações.
Recomendo a miúdos e a graúdos saudosistas!

Classificação: 4 estrelas

segunda-feira, 2 de março de 2015

Livros: Caim

Sinto um grande fascínio por Saramago. Este foi o último livro que escreveu em vida.


Autor: José Saramago
Sinopse: Quem diabo é este Deus que, para enaltecer Abel, despreza Caim?
Se em O Evangelho Segundo Cristo José Saramago nos deu a sua visão do Novo Testamento, em Caim regressa aos primeiros livros da Bíblia. Num itinerário heterodoxo, percorre cidades decadentes e estábulos, palácios de tiranos e campos de batalha pela mão dos principais protagonistas do Antigo Testamento, imprimindo ao texto o humor refinado que caracteriza a sua obra.
Caim revela o que há de moderno e surpreendente na prosa de Saramago: a capacidade de fazer nova uma história que se conhece do princípio ao fim. Um relato irónico e mordaz no qual o leitor assiste a uma guerra secular, e de certa forma, involuntária, entre o criador e a sua criatura.


A premissa do livro é bastante interessante. O autor parte das histórias do Velho Testamento mais conhecidas, reinterpretando-as em modo de sátira. É fácil de compreender porque é que algumas pessoas, com convicções religiosas mais fortes, se queiram afastar desta leitura. A personagem principal, Caim, consegue atrair a nossa empatia por se revelar humano. ao contrário dos textos sagrados, Deus é o antagonista, uma mudança de perspectiva importante. Precisamos de estar habituados ao modo de escrever de Saramago para conseguir apreciar o livro, se bem que não foi dos mais difíceis de ler. A trama avança de um modo simultaneamente previsível e imprevisível. Os cenários são retratados e costumes com uma clareza inegável, não sendo de todo historicamente exactos, quiçá outra facada nos escritos sagrados. Uma leitura muito agradável.
Recomendo a quem gostar de Saramago ou quiser ter um olhar diferente sobre as religiões que derivam do Velho Testamento.

Classificação: 4 estrelas 

domingo, 1 de março de 2015

Chá de Domingo #32: Vamos Falar do Interstellar - Parte 2

Prontos para mais um voltinha pela física?


Na primeira parte desta publicação falamos de como foi renderizado o wormhole do Interstellar. Nesta iremos falar do Gargantua. Para os mais interessados, o artigo original pode ser encontrado aqui.

Problema: renderizar um buraco negro de um modo realista para usar num filme de ficção cientifica. A renderização tem de ser suficientemente versátil e leve para poder ser usada em imagens IMAX. A câmara poderá estar a mover-se a velocidades perto da da luz, portanto a relatividade tem de ser tida em conta, assim como as distorções gravíticas e o efeito de Doppler.
Solução: Double Negative Gravitiational Render

Efeito de lente gravitacional: Um feixe de luz é curvado pela acção de forças gravíticas intensas, criando um efeito de lente à volta de corpos massivos, como por exemplo buracos negros.

Efeito de Doppler: Luz emitida por um objecto que se está a afasta do observador terá o seu espectro desviado para a região do vermelho e um objecto que se aproxima terá um desvio para o azul.


Na proximidade de um buraco negro, um feixe de luz é desviado pelo efeito de lente gravitacional. Tendo o cuidado para limitar as emissões de modo a não fritar as personagens com raios X e gamma. Este foi o resultado:

(Gargantua - Imagem retirada daqui)

A luz à volta do buraco negro é devida ao disco de acreção, ou seja, da matéria e luz que está a ser sugada para o buraco negro. O que vemos acima e abaixo do disco é a parte traseira do disco, que é visível devido ao efeito de lente gravitacional.
Partindo da imagem anterior, foi assumido que o buraco negro estaria a rodar a uma velocidade mais baixa do que a necessária para causar as dilatações temporais descritas no filme para evitar que a renderização ficasse demasiado confusa, criando múltiplos discos de acreção, que, segundo os autores do artigo, poderia confundir a maioria dos expectadores. Foram acrescentados os desvios de cor e luminosidade causados pelo efeito de Doppler. O resultado foi:

(Gargantua - Imagem retirada daqui)

De notar que o lado direito está mais avermelhado do que o esquerdo, para além de que o esquerdo é mais luminoso. A razão prende-se com o facto de o disco estar a rodar no sentido contrário ao dos ponteiros do relógio, o causa efeito de Doppler e diferenças de luminosidade. Para terminar, foi acrescentado o efeito de lens flare, que tornou a imagem muito mais brilhante, como se tivesse sido filmada com uma câmara real.
O resultado é um buraco negro capaz de agradar tanto aos que procuram realismo como os que gostam apenas de bons efeitos especiais. Todos os filmes de ficção cientifica deviam usar físicos, não acham?

Leiam a terceira parte aqui.