Sou
um homem morto. Respiro, o meu coração bate e ainda raciocino.
Apesar disso, sou um homem morto. Aperto a arma que trago dentro do
casaco e dou uns passos em frente. Os ouvidos zumbem. Não vale a
pena sequer buscar o carro. Não iria funcionar. Sinto uma dor aguda
no ombro, acho que o desloquei. É a menor das minhas preocupações.
Aliás, um homem morto não tem preocupações. Passo a mão pela
testa e vejo-a coberta de sangue. Só há uma coisa que gostaria de
fazer. Mais que gostar, que tenho de fazer. Alguém me agarra o braço
e aponta para uma vitima que jaz numa poça de sangue. Sacudo-a com
um safanão. Outras pessoas arrastam-se pela rua devastada. Outras
pessoas não, cadáveres como eu. Talvez gritem. Parece-me que sim,
não tenho como saber. O maldito zumbido continua. Vejo-os agitar os
braços, enquanto correm em ziguezague à procura de ajuda. Alguns
não se mexem. Estão apenas um pouco mais mortos que eu. A ajuda não
virá. Estamos por nossa conta. E há um amaldiçoado vento, que
sopra na pior direcção. Era polícia, enquanto estava vivo. Deveria
auxiliar os feridos e impedir o caos. Não vale a pena. No passeio
jaz uma mulher de meia-idade com os membros torcidos em ângulos
impossíveis. Há uma criança empalada num sinal de trânsito.
Vomitaria se ainda tivesse algo no estômago. Há quem olhe para o
meu uniforme desfeito com um raio de esperança. Ingénuos. O que fui
antes da morte não vos pode valer. Passo a passo, vou-me aproximando
do meu destino. Há pequenos fogos um pouco por todo o lado. Vi
roupas incendiarem-se nos corpos dos seus donos. As folhas de papel
arderam também. E, claro, a pele. As piores lesões são as
queimaduras que desfiguram rostos. Vidros partidos espalhados por
todo o lado. Perdi por completo o uso da audição. Nunca mais vou
ouvir o riso da minha esposa. Ridículo! Mesmo que os meus ouvidos
funcionassem, não irei escutar mais que gritos e choro. Um corpo em
convulsões com vários pedaços de vidro espetados na face. Os que
tiveram uma morte instantânea foram os mais afortunados. Sinto as
pernas fraquejar. Não posso parar, nem desistir. Em breve terei uma
eternidade de descanso. Tanto entulho. Os edifícios ruíram. Sobrou
apenas a estrutura, que se ainda se ergue como um esqueleto vazio de
vida. Tal como nós. Humanos projectados contra os objectos. Objectos
projectados contra humanos. Toneladas de entulho. Sem distinção.
Sem piedade. Partidos em vários pedaços. Quebrados. Esmagados.
Esfarelados. Foram os mais afortunados. Outros ficaram soterrados.
Não consegui ouvir os gritos deles, mas consigo imaginá-los. Não
posso fazer nada por eles. Ninguém pode. Eu não posso fazer nada
por ninguém. Mas há uma coisa que tenho de fazer. Sinto líquido
quente na boca. Cuspo sangue. Não interessa, estou morto. Vejo um
par de pernas debaixo de um monte de entulho. Há uma viatura enfiada
numa casa. Há um corpo esmagado entre a parede e o automóvel. Estou
a chegar à minha rua. Aqui nem todas as casas ruíram. Há um grupo
de pessoas que tenta ajudar outra. Ingénuos. Não sentem o vento? É
tarde demais. Não interessa, somos todos cadáveres, só que alguns
ainda não sabem disso. Eu sei. Há umas horas atrás, se me
perguntassem se tinha medo da morte, eu afirmaria, sem hesitar, que
sim. Mas isso foi antes de morrer. Agora, desejo apenas a grande
escuridão. E não vai tardar. A luz. A grande luz. Não vi a grande
luz. Gostaria de ter visto a grande luz. Tudo teria sido mais fácil.
Mais imediato. Sem dor, nem sofrimento. Pensei nos meus dois filhos.
A esta hora já deviam estar em casa. Horas. Um morto não conta
horas. O tempo deixou de existir. Estes são apenas instantes com os
quais fui amaldiçoado. A casa de rés-do-chão ainda está de pé.
Bem, quase toda. O pátio foi esmagado e a varanda arrancada. Já não
tem janelas. A madeira não está chamuscada. As forças faltam-me.
Sou cada vez mais cadáver. Somos todos. Entrei pela porta
escancarada. Atravesso um corredor cheio de detritos e paredes
danificadas. Não preciso procurar, sei que estão na cozinha. Ao
atravessar o vão da porta, vejo-os num canto. Já nada me pode
surpreender. Aquela que foi o meu amor em vida olha-me e um sorriso
trespassa-lhe o rosto. O meu coração contrai-se. Por favor, não
tornes tudo mais difícil. Ela está sentada no chão e abraça a
minha filha. As queimaduras de ambas são extensas. Há enormes áreas
de carne viva na cara, nos braços e nas pernas. Há lágrimas. Vejo
que sofrem. A miúda chora com gritos que só consigo imaginar. O
mais novo está no chão. O peito mexe-se com dificuldade. Um pedaço
de madeira alojado no ventre. Há compressas embebidas em líquido
sobre a mesa. Tentativas fúteis. Claro que compreendem o que
aconteceu. Quem poderia não compreender? Ela diz-me algo. E a mais
pequena também. Não quero lembrar-me do nome dela. Não quero
lembrar o nome de ninguém. Não respondo. Não me mexo. Mantenho a
expressão de morto. Um morto que aceita aquilo que é. Eles ainda
não aceitaram. Não pensei que fosse tão difícil. No entanto, é a
coisa certa a fazer. Será que não compreendem? Os olhares dizem-me
que não. Os lábios movem-se de novo. Não entendo, não quero
entender. Não respondo. A brisa que outrora nos acariciou a pele
molesta-nos a cada momento. Maldito vento. Amaldiçoada luz. Infeliz
momento em que nascemos. Não vale a pena esperar mais. Meto a mão
dentro do casaco e empunho a arma. Sou recebido com um olhar de
surpresa e medo. Um disparo. Ela cai com a cara desfeita. A garota
começa a gritar. Outro disparo. Uma mancha de sangue, ossos, massa
encefálica e cabelos espalha-se pelo chão. Mais um disparo. O mais
novo deixou de sofrer. Desde a grande luz não passou mais de um
instante. Encosto a arma à têmpora. Sou um homem morto.
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