quarta-feira, 18 de março de 2015

Os Cadáveres


Sou um homem morto. Respiro, o meu coração bate e ainda raciocino. Apesar disso, sou um homem morto. Aperto a arma que trago dentro do casaco e dou uns passos em frente. Os ouvidos zumbem. Não vale a pena sequer buscar o carro. Não iria funcionar. Sinto uma dor aguda no ombro, acho que o desloquei. É a menor das minhas preocupações. Aliás, um homem morto não tem preocupações. Passo a mão pela testa e vejo-a coberta de sangue. Só há uma coisa que gostaria de fazer. Mais que gostar, que tenho de fazer. Alguém me agarra o braço e aponta para uma vitima que jaz numa poça de sangue. Sacudo-a com um safanão. Outras pessoas arrastam-se pela rua devastada. Outras pessoas não, cadáveres como eu. Talvez gritem. Parece-me que sim, não tenho como saber. O maldito zumbido continua. Vejo-os agitar os braços, enquanto correm em ziguezague à procura de ajuda. Alguns não se mexem. Estão apenas um pouco mais mortos que eu. A ajuda não virá. Estamos por nossa conta. E há um amaldiçoado vento, que sopra na pior direcção. Era polícia, enquanto estava vivo. Deveria auxiliar os feridos e impedir o caos. Não vale a pena. No passeio jaz uma mulher de meia-idade com os membros torcidos em ângulos impossíveis. Há uma criança empalada num sinal de trânsito. Vomitaria se ainda tivesse algo no estômago. Há quem olhe para o meu uniforme desfeito com um raio de esperança. Ingénuos. O que fui antes da morte não vos pode valer. Passo a passo, vou-me aproximando do meu destino. Há pequenos fogos um pouco por todo o lado. Vi roupas incendiarem-se nos corpos dos seus donos. As folhas de papel arderam também. E, claro, a pele. As piores lesões são as queimaduras que desfiguram rostos. Vidros partidos espalhados por todo o lado. Perdi por completo o uso da audição. Nunca mais vou ouvir o riso da minha esposa. Ridículo! Mesmo que os meus ouvidos funcionassem, não irei escutar mais que gritos e choro. Um corpo em convulsões com vários pedaços de vidro espetados na face. Os que tiveram uma morte instantânea foram os mais afortunados. Sinto as pernas fraquejar. Não posso parar, nem desistir. Em breve terei uma eternidade de descanso. Tanto entulho. Os edifícios ruíram. Sobrou apenas a estrutura, que se ainda se ergue como um esqueleto vazio de vida. Tal como nós. Humanos projectados contra os objectos. Objectos projectados contra humanos. Toneladas de entulho. Sem distinção. Sem piedade. Partidos em vários pedaços. Quebrados. Esmagados. Esfarelados. Foram os mais afortunados. Outros ficaram soterrados. Não consegui ouvir os gritos deles, mas consigo imaginá-los. Não posso fazer nada por eles. Ninguém pode. Eu não posso fazer nada por ninguém. Mas há uma coisa que tenho de fazer. Sinto líquido quente na boca. Cuspo sangue. Não interessa, estou morto. Vejo um par de pernas debaixo de um monte de entulho. Há uma viatura enfiada numa casa. Há um corpo esmagado entre a parede e o automóvel. Estou a chegar à minha rua. Aqui nem todas as casas ruíram. Há um grupo de pessoas que tenta ajudar outra. Ingénuos. Não sentem o vento? É tarde demais. Não interessa, somos todos cadáveres, só que alguns ainda não sabem disso. Eu sei. Há umas horas atrás, se me perguntassem se tinha medo da morte, eu afirmaria, sem hesitar, que sim. Mas isso foi antes de morrer. Agora, desejo apenas a grande escuridão. E não vai tardar. A luz. A grande luz. Não vi a grande luz. Gostaria de ter visto a grande luz. Tudo teria sido mais fácil. Mais imediato. Sem dor, nem sofrimento. Pensei nos meus dois filhos. A esta hora já deviam estar em casa. Horas. Um morto não conta horas. O tempo deixou de existir. Estes são apenas instantes com os quais fui amaldiçoado. A casa de rés-do-chão ainda está de pé. Bem, quase toda. O pátio foi esmagado e a varanda arrancada. Já não tem janelas. A madeira não está chamuscada. As forças faltam-me. Sou cada vez mais cadáver. Somos todos. Entrei pela porta escancarada. Atravesso um corredor cheio de detritos e paredes danificadas. Não preciso procurar, sei que estão na cozinha. Ao atravessar o vão da porta, vejo-os num canto. Já nada me pode surpreender. Aquela que foi o meu amor em vida olha-me e um sorriso trespassa-lhe o rosto. O meu coração contrai-se. Por favor, não tornes tudo mais difícil. Ela está sentada no chão e abraça a minha filha. As queimaduras de ambas são extensas. Há enormes áreas de carne viva na cara, nos braços e nas pernas. Há lágrimas. Vejo que sofrem. A miúda chora com gritos que só consigo imaginar. O mais novo está no chão. O peito mexe-se com dificuldade. Um pedaço de madeira alojado no ventre. Há compressas embebidas em líquido sobre a mesa. Tentativas fúteis. Claro que compreendem o que aconteceu. Quem poderia não compreender? Ela diz-me algo. E a mais pequena também. Não quero lembrar-me do nome dela. Não quero lembrar o nome de ninguém. Não respondo. Não me mexo. Mantenho a expressão de morto. Um morto que aceita aquilo que é. Eles ainda não aceitaram. Não pensei que fosse tão difícil. No entanto, é a coisa certa a fazer. Será que não compreendem? Os olhares dizem-me que não. Os lábios movem-se de novo. Não entendo, não quero entender. Não respondo. A brisa que outrora nos acariciou a pele molesta-nos a cada momento. Maldito vento. Amaldiçoada luz. Infeliz momento em que nascemos. Não vale a pena esperar mais. Meto a mão dentro do casaco e empunho a arma. Sou recebido com um olhar de surpresa e medo. Um disparo. Ela cai com a cara desfeita. A garota começa a gritar. Outro disparo. Uma mancha de sangue, ossos, massa encefálica e cabelos espalha-se pelo chão. Mais um disparo. O mais novo deixou de sofrer. Desde a grande luz não passou mais de um instante. Encosto a arma à têmpora. Sou um homem morto.



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