terça-feira, 31 de julho de 2012

O monstro e a musa - parte 10/12


A primeira parte deste conto pode ser encontrada em: http://pedro-cipriano.blogspot.de/2012/07/o-monstro-e-musa-primeira-parte.html

A nona parte está em: http://pedro-cipriano.blogspot.de/2012/07/o-monstro-e-musa-nona-parte.html



– Não! – respondeu bruscamente.

– Ainda bem – aceitou Artur, retirando-se de seguida.

O inventor não sabia se as palavras dele haviam sido sinceras. A negação fora demasiado brusca para passar despercebida. Era irrelevante, concluiu, pois ganhara tempo, que era o que mais precisava naquele momento. Achou melhor voltar aos seus aposentos.

Ao entrar, viu que Eva o esperava. Pareceu-lhe estar muito mais alegre que naquela manhã. Ela veio ao seu encontro e deu-lhe um abraço reconfortante, acompanhado de um beijo carinhoso.

– É perigoso vires aqui – protestou o inventor assim que se separaram.

– Já não faz diferença. Está tudo arranjado, deves descansar. Iremos partir ao fim da tarde.

– Qual é o plano?

– Confias em mim ou não? – devolveu ela, com um sorriso.

Dadas as circunstâncias, não sabia o que responder. Queria confiar contudo, a sua intuição dizia-lhe para ter cuidado. Detestava tomar decisões sem ter todas as informações.

– Se não confias em mim, o melhor é a nossa relação acabar aqui. Não precisamos de fugir. É mais fácil, nem sequer preciso de arriscar a minha vida por ti. Tu continuas com a tua vida e eu com a minha. Como fui parva ao achar que te preocupavas com os meus sentimentos... – escarneceu Eva, ao aperceber-se da hesitação.

– Chega! – interrompeu-a, falando num tom de voz mais elevado. – Não sabes do que falas! Se formos apanhados, os nossos destinos serão muito diferentes, vê se percebes isso! Se eu tivesse sabido quem eras desde o início, isto nunca teria acontecido.

– É isso que querias? Que a nossa relação nunca tivesse acontecido? – perguntou, com as lágrimas a galgarem-lhe as faces.

Detestava quando as conversas enveredavam por estes caminhos tão rapidamente. Por mais que lhe custasse a engolir o orgulho, não conseguia ficar zangado com ela.

– Não! – confessou, combatendo também a vontade de chorar.

Num impulso abraçou-a, apertando-a com força.

– Desculpa, eu não queria ter dito aquilo.

– Eu também não.

Esta pequena zanga fê-lo perceber que temia mais perdê-la do que a ira de Artur. Quebraram o abraço e beijaram-se apaixonadamente.

Como precisava de limar algumas arestas do plano, Eva deixou-o pouco depois.

Walter enfiou os seus parcos pertences na pasta e esperou pelo almoço. Este foi-lhe servido ao meio-dia exacto e consistia somente num peixe salgado acompanhado por um pão de trigo. Ao comer, não pôde deixar de pensar que aquela poderia ser a sua última refeição. Quando terminou, colocou o prato de lado, descalçou-se e fechou a portada. A escuridão invadiu a divisão.

Deitou-se, mas não conseguiu adormecer imediatamente. A sua mente tentava discernir qual o melhor caminho a seguir. À medida que acrescentava dados à equação, esta ia ficando mais complexa e os resultados mais confusos.

Acordou sobressaltado com duas pancadas suaves na porta. Era o sinal que ela lhe costumava dar. Levantou-se estremunhado e dirigiu-se à porta. Não falou, já que receava uma armadilha.

Num movimento, abriu a porta e deu de caras com Eva, que trazia o mesmo capuz daquela manhã. Num impulso, espreitou para o corredor e, não vendo mais ninguém, deixou-a entrar.

– Está na hora – explicou-lhe ela, estendendo-lhe outro capuz, antes de continuar. – Toma, veste isto.

O inventor obedeceu-lhe e ambos abandonaram o palácio pela escada de serviço pouco depois. Haviam sido abençoados com corredores vazios, de modo que não se cruzaram com ninguém até chegarem à rua. Deram a volta ao edifício e dirigiram-se aos estábulos.

– Vamos sair pelo portão principal antes que o fechem para a noite. Ainda pensei que podíamos sair pela antiga porta de carga, só que podia soar demasiado suspeito – revelou-lhe enquanto selava um garanhão castanho-escuro.

Ele assentiu e, uns minutos depois, atravessavam a entrada da cidade, cada um no seu cavalo, sem que ninguém os tentasse parar. Ainda nervosos, desceram a encosta do planalto, usando a mesma rota que os restantes viajantes. Sempre receosos, tomaram a direcção Sul no caminho principal. Durante um par de horas seguiram pela estrada a trote, até ao pôr-do-sol. Quando ficaram sozinhos, ao escurecer, abandonaram o caminho, seguindo a corta-mato.

Era lua nova, por isso inicialmente avançaram com cautela. Contudo, por insistência dela, desataram a galope pouco depois. Ambos queriam afastar-se tanto quanto possível da cidade antes do amanhecer. Por aquela altura, já deveriam ter dado pela sua falta. Todavia, pela primeira vez não se preocupou com isso. A sensação de liberdade apoderara-se inteiramente dele.

Inesperadamente, Eva foi projectada para a frente e Walter só teve tempo de fazer o seu cavalo parar

– Eva! Estás bem? – perguntou ao desmontar.

A décima primeira parte está disponível em:  http://pedro-cipriano.blogspot.de/2012/08/o-monstro-e-musa-decima-primeira-parte.html

segunda-feira, 30 de julho de 2012

O monstro e a musa - parte 9/12

A primeira parte deste conto pode ser encontrada em: http://pedro-cipriano.blogspot.de/2012/07/o-monstro-e-musa-primeira-parte.html

A oitava parte está em:  http://pedro-cipriano.blogspot.de/2012/07/o-monstro-e-musa-oitava-parte.html

– Espero converter os moinhos em geradores eólicos, guardar a energia obtida em condensadores e usá-la quando não houver vento...
– O que é um condensador e como é que funciona? – interrompeu Aristides.
– Muito simples. Pegamos num recipiente com líquido e mergulha-se dois fios de cobre nele. Ao passar corrente eléctrica, iremos carregar o líquido com energia. Basta ligar esses dois cabos e recebemos essa energia de volta.
– E isso funciona? – duvidou Aristides.
– Sim, o aparato que construí nos jardins prova isso mesmo.
– Parece-me um bom tópico. Por favor, fale-nos da máquina que instalou no jardim – solicitou Artur.
– Alguns metais geram corrente eléctrica quando expostos à luz solar. Tendo isso em conta, eu montei um aparato que recolhe essa energia e a guarda nesses tais condensadores. O objectivo é providenciar iluminação durante a noite. Para tal fazemos passar corrente por um filamento de tungsténio dentro de uma ampola, cujo ar foi previamente retirado. Isso poderia poupar bastante óleo ao castro...
– Óleo não é um recurso crítico! – protestou Igor, o mais velho dos assessores.
– É verdade, mas o facto de reduzirmos a quantidade de materiais que temos de elevar diariamente cria-nos a possibilidade de reduzir a velocidade do elevador e assim operá-lo somente com a força da água.
– Parece-me ser um bom curso de acção – decidiu Artur, fazendo sinal aos assessores para não interferirem mais na conversa. – Agora diga-me, o que pretende fazer nos próximos três meses?
– Vou represar o curso de água e usá-lo para mover o elevador. Como já referi, quero mudar os moinhos de vento para poderem abastecer a cidade com água. Por fim, quero alargar o experimento com os condensadores, para tentar iluminar uma parte da cidade.
– E que dificuldades técnicas espera encontrar?
– Os fios condutores não são puros o suficiente, causando aquecimento e perdas consideráveis. Espero que a metalurgia consiga providenciar melhores materiais. Os condensadores não possuem uma grande capacidade, contudo espero conseguir melhorá-la substancialmente nas próximas semanas...
Hesitou, pois havia outro problema, um pouco mais grave. A energia eléctrica gerada pelos metais irradiados e pelos geradores era diferente. Só a primeira podia ser guardada e não podia ser usada para mover motores. Não sabia qual a diferença entre as duas e, como tal, não fazia ideia de como ultrapassar este obstáculo. Algo lhe dizia que Artur não iria aceitar bem tal limitação e sabia que na era nuclear aquele problema havia sido resolvido, de modo que optou pela via do silêncio.
– Creio que esses problemas podem ser resolvidos com tempo. Estamos muito satisfeitos com o teu desempenho, o consumo de carvão tem diminuído gradualmente. Esperamos que, ao estenderes as invenções para outros sistemas, nos poderemos libertar desta dependência. Se ninguém tem mais nada a dizer, eu darei esta reunião por terminada – concluiu o líder do castro.
Ninguém ousou contrariá-lo. Assim que os assessores começaram a dispersar, Artur veio ao seu encontro. A expressão amistosa tinha desaparecido de todo.
– Preciso de falar contigo, em privado. Espera por mim no corredor – pediu, enquanto cumprimentava o inventor.
O sangue gelou-se-lhe nas veias ao apertar a mão do governante.
– Sim, claro... – balbuciou em pânico, sabendo que Artur leria facilmente as suas expressões.
Abandonou a sala, completamente alheado da realidade e tomado pelo medo. Houve um momento de hesitação em que pensou em fugir. Todavia, em plena luz do dia, isso seria suicídio. Deu voltas e mais voltas, percorrendo o corredor de ponta a ponta. A sua cabeça dava ainda mais voltas, pois não sabia o que fazer.
Quando o pai de Eva apareceu, já Walter estava no mais profundo dos abismos psicológicos.
– Desculpa ter-te feito esperar. Vou ser directo e sincero contigo, eu sei que me estás a esconder algo. Tens duas hipóteses: dizes-me o que é, ou eu descubro e tu sofrerás as consequências. O que preferes?
Quis falar, mas as palavras não lhe obedeciam. Gostava de pelo menos saber a que é que ele se referia. Se lhe falasse sobre Eva, talvez pudesse escapar vivo, pois ainda precisavam dele. Ao revelar sobre os problemas técnicos, poderia ter algum tipo de complacência, já que o obstáculo poderia ainda ser ultrapassado. Recordou-se que Eva prometera-lhe uma fuga, de modo que o mais sensato seria falar do problema técnico e esperar que a fuga se consumasse com sucesso.
Ao explicar as limitações entre os dois tipos de corrente eléctrica, viu que a expressão de Artur se ia suavizando.
– Ainda bem que me contaste. Não precisas de te preocupar, os teus esforços estão a dar-nos tempo. E tempo poderá dar-nos mais soluções. Tenta resolver o problema e, mesmo que não consigas, havemos sempre de conseguir diminuir o consumo de carvão – Artur fez uma pausa, olhando-o nos olhos. – Há uma coisa que te quero contar. A mina tem mais carvão do que te dissemos. O grande problema é a presença de metais pesados, que tememos serem radioactivos. A cada ano que passa, a concentração tem aumentado, o que está a provocar doenças nos trabalhadores e até mesmo nas pessoas da cidade. É certo que a queima de carvão provoca doenças respiratórias, contudo o ritmo a que têm aumentado nos últimos cinco anos deixou-nos alarmados. Não são dezenas nem centenas, isto pode afectar uma em cada cinco pessoas em menos de vinte anos. Percebes agora a urgência do projecto?
Walter acenou com a cabeça, sabendo que a sua fuga seria ainda mais difícil do que antecipara.
– E claro, a capacidade da mina é finita. Não haverá carvão, mesmo contando com o que está contaminado, para mais de quinze anos. Peço desculpa por não te ter dito antes, mas o conselho não havia autorizado – explicou o líder do castro.
– Vou dar o meu melhor – prometeu Walter, esperando que o tom soasse convincente.
– Eu acredito que sim. Já agora, estás a esconder-me mais alguma coisa? – inquiriu de surpresa.

A décima parte pode ser encontrada em: http://pedro-cipriano.blogspot.de/2012/07/o-monstro-e-musa-decima-parte.html

domingo, 29 de julho de 2012

O monstro e a musa - parte 8/12

 A primeira parte deste conto pode ser encontrada em: http://pedro-cipriano.blogspot.de/2012/07/o-monstro-e-musa-primeira-parte.html

A sétima parte está em: http://pedro-cipriano.blogspot.de/2012/07/o-monstro-e-musa-setima-parte.html

– O que é que pode ser mais importante que a reunião? – inquiriu Walter, ficando irritado com tanta insistência.
– A tua vida está em risco. Vem comigo, eu explico-te – ordenou Eva, agarrando-o pelo pulso.
Deixou-se guiar através das ruas estreitas. A sua mente tentava perceber porque razão a sua vida estaria em perigo. Qualquer que fosse o caminho que as suas assumpções seguissem, iam sempre parar a Artur. Percepcionava o líder do castro como um homem que não ligava a meios para atingir os fins. Por baixo daquela fachada de homem civilizado e educado, parecia haver um dirigente implacável e pouco tolerante. Questionava-se se ele seria capaz de o assassinar assim que terminasse a sua tarefa. Ao assumir o ponto de vista do governador, soube logo que seria isso que ele faria.
Eva parou num beco sem movimento. Walter notou que ela trazia os olhos vermelhos, deduzindo que estivera certamente a chorar.
– Eu acho que o meu pai descobriu a nossa relação... – revelou a jovem.
– Já percebi, eu falo com ele. Eu gosto de ti e caso contigo para não haver mais problemas. Já era tempo de assumirmos... – prometeu, pensado que ela estava a exagerar.
– Pára! Ele mata-te quando souber! – vaticinou ela, elevando a voz.
O inventor sabia ser uma pessoa respeitada no castro, em parte por ser honesto e também por estar a conseguir progressos, dos quais toda a comunidade dependia.
– Espera lá, quem é o teu pai?
– Artur Olivais, o líder do castro – revelou com um ar sério.
– Calma ai! Estás a brincar comigo, certo? – inquiriu Walter, forçando um sorriso.
– Não, eu nunca te mentiria... – protestou Eva, começando a chorar – eu nunca te disse, porque sabia que tu nunca te aproximarias de mim se soubesses. Sabes, eu apaixonei-me por ti desde o primeiro momento...
– Chega! Se ele vier a saber, vai-me matar de certeza! Como é que pudeste ser capaz de me fazer uma coisa destas? – ripostou o inventor, visivelmente furioso.
– Calma. Eu tenho um plano! Podemos fugir os dois...
– Fugir... – riu-se Walter histericamente, sentindo-se desesperado – Ninguém consegue fugir daqui.
Relembrou os gritos dos soldados ao serem brutalmente executados, quase que sentindo as dores que tal pena acarretava.
– Vais ter de confiar em mim.
– É mais fácil de dizer do que fazer – protestou, sentindo-se encurralado.
– Não confias em mim? – inquiriu Eva, com um olhar inquisidor.
– Claro que confio! – esclareceu, aborrecido por as conversas enveredarem sempre no mesmo sentido.
– Então age como tal. Agora vai à reunião e tenta agir normalmente. Daqui a algumas horas, eu explico-te o meu plano, ainda preciso de fazer mais uns ajustes.
Ela beijando-o e desapareceu de seguida por uma rua lateral.
Walter voltou à rua principal. Ao olhar a torre do relógio, percebeu que já não teria tempo para visitar o outro experimento. Tentou esconder as suas emoções enquanto se dirigia ao palácio, mas tal não era fácil devido ao tumulto que se tinha apoderado dele. Já dentro do palácio, compôs as suas roupas, retirou os papéis da pasta e esperou que o chamassem.A audiência iniciou-se à hora prevista. Ao atravessar o salão, não pôde deixar de se sentir mais oprimido do que se sentira quando ali fora trazido pela primeira vez. Era um homem morto, caso Artur desconfiasse.
O concílio estava reunido, mas o inventor sabia que a conversa aconteceria essencialmente entre ele e Artur. Inicialmente, o diálogo decorreu no mesmo tom educado a que estava habituado, com uma troca mútua de cumprimentos, seguindo a etiqueta. Durante o processo, observou o líder cuidadosamente, relaxando um pouco ao ver que não havia qualquer sinal que revelasse conhecimento da relação amorosa.
– Já chega de formalidades. Caro doutor Ramos, pode agora apresentar os resultados do seu trabalho ao concílio? – pediu Artur.– O projecto para a bomba de água foi aplicado e funciona como previsto
– Contudo, esse sistema ainda consome carvão...
– Exacto, depende do vento para erguer a água. Conseguimos bombear um pouco mais de água do que a cidade consome. Todavia, o reservatório não é suficiente para abastecer a cidade mais do que um par de horas. No entanto, devo sublinhar que conseguimos poupar várias centenas de quilos de carvão por dia.– Ninguém está a colocar isso em causa. Tendo em conta a crise que nos ameaça, este concílio não considera que isso seja suficientemente bom. Tem alguma sugestão de melhoramento? – inquiriu Artur, cujo tom de voz denotava impaciência.

A nona parte pode ser encontrada em: http://pedro-cipriano.blogspot.de/2012/07/o-monstro-e-musa-nona-parte.html

sábado, 28 de julho de 2012

O monstro e a musa - parte 7/12

A primeira parte deste conto pode ser encontrada em: http://pedro-cipriano.blogspot.de/2012/07/o-monstro-e-musa-primeira-parte.html

A sexta parte está em: http://pedro-cipriano.blogspot.de/2012/07/o-monstro-e-musa-sexta-parte.html

Perdido nos seus pensamentos, chegou rapidamente à estação de bombeamento de água que servia toda a cidade. O anterior sistema elevava a água através de uma corrente de baldes. Fora o primeiro local onde quisera intervir, pois uma pequena escassez de carvão poderia comprometer o fornecimento de água à cidade. Através de moinhos de vento e um reservatório maior, conseguira bombear quase um quarto das necessidades da cidadela. Tudo isso fora obtido sem necessidade de energia eléctrica, nem um grande aparato, o que significava que ainda teria um grande trabalho pela frente. Pensara em ligar vários motores eléctricos e armazenar a energia num condensador gigante. Assim, mais tarde, poderia ligar aos outros sistemas da cidade e fornecê-la mesmo quando não houvesse vento.
– Bom dia, Jorge – cumprimentou, aproximando-se do operador da maquinaria – como é que o sistema se está a portar hoje?
– Muito bem, ainda não foi preciso acender a fornalha. Estamos a bombear quase três mil litros por minuto. Estamos a poupar duzentos quilos de carvão por hora – reportou o homem que, apesar de ter a cara suja, apresentava um sorriso.
– Excelente. Algum problema técnico que eu deva saber?
– O mesmo de sempre... Quando há vento, conseguimos bombear mais água do que gastamos, só que é impossível guardar água para mais do que duas horas. Quando não há vento, temos de usar carvão.
– Obrigado. Estou perfeitamente consciente desse problema e estou a pensar numa solução – explicou Walter, despedindo-se do monitor.
Sem perder tempo, dirigiu-se à parte industrial da cidade. Ali estava um dos seus maiores desafios, o enorme elevador, cuja função era abastecer matéria-prima e comida. Provavelmente, era o projecto mais importante, pois o mecanismo gastava várias toneladas por dia. A sua primeira ideia fora represar um curso de água que passava ali perto e usar a força mecânica para elevar a mercadoria. A ideia não fora coroada com sucesso, pois a corrente não providenciava força suficiente para mover a maquinaria. Como segunda tentativa, fizera rodar um dínamo no interior de um enrolamento de cobre, criando uma corrente eléctrica por indução e, com isso, fizera funcionar um pequeno motor eléctrico, que não era mais do que inversão do processo anterior. A eficiência não era elevada, mas o facto de conseguir criar uma fonte de energia eléctrica contínua era um marco importante.
Desceu pelo teleférico até ao vale, tomando algumas notas sobre o progresso dos trabalhos. O plano era usar vários moinhos de água em pontos diferentes e ligá-los a vários motores, de modo a conseguir elevar a mercadoria sem usar carvão.
Ao chegar ao fundo, foi recebido pelos seus dois assistentes, ambos com um semblante carregado. Toda a área se encontrava vedada, pois vários acidentes tinham já ocorrido, felizmente nenhum deles ainda fatal.
– Bom dia, Paulo. Como é que estão a correr as coisas?
– Nada bem, houve outro acidente. Um dos nossos rapazes sofreu uma queimadura e está inconsciente. Felizmente, os médicos já o observaram e ele está vivo.
– Raios... – praguejou Walter, controlando-se de seguida – Menos mal que sobreviveu. Ninguém deve tocar nos cabos enquanto a máquina está em funcionamento. Avisei-vos desde o primeiro dia.
Calou-se, pois apercebeu-se que levantara novamente a voz.
– E que mais? – perguntou o inventor, depois de respirar fundo.
– Instalámos o segundo moinho. Parece ter apenas uma fracção da potência do primeiro, como previsto, mas o efeito é mais severo do que esperávamos – reportou o mais baixo do grupo.
– Provavelmente teremos de construir um dique e fazer fluir o ribeiro por um único moinho – comentou Walter, desanimado. – E tu, David, tens alguma novidade?
– Ainda nada, o cobre continua a aquecer mais do que esperávamos. Até agora não há problemas, mas quando a corrente aumentar, o sistema poderá não aguentar – respondeu o homem que, apesar de ser bastante encorpado, parecia recear o inventor.
– Temos de insistir com o pessoal da metalurgia para nos fornecerem fios com menos impurezas, o que significa que teremos de mudá-los todos e, provavelmente, também o enrolamento do indutor. Espero que pelo menos a eficiência aumente – explicou Walter, despedindo-se dos trabalhadores.
Tinha esperança que, ao diminuir a quantidade de carvão usada pela cidade, conseguisse operar o elevador a uma velocidade mais baixa e exclusivamente com energia eléctrica.
Tomou o teleférico de volta e amaldiçoou a velocidade a que este se movia. Ainda precisava de visitar o experimento mais importante, ao qual dedicava a maior parte do seu tempo. Quando a cabine parou no cais, ele saiu, com o intuito de chegar rapidamente aos jardins.
Ainda não tinha dado dois passos quando sentiu uma mão no ombro.
– Preciso de falar contigo – ouviu dizer uma voz familiar atrás de si.Apesar de ter reconhecido quem o chamava, quando se voltou ficou surpreendido por ver Eva. Esta estava com a cabeça tapada por um capuz e a sua expressão denotava um grande nervosismo.
– Ah, és tu! O que fazes aqui?
– Preciso de falar contigo, é urgente – pediu em voz baixa.
– Podemos falar logo a seguir à reunião. Agora estou atrasado e ainda tenho que ver a estação que construí no jardim – concedeu o inventor, mostrando intenção de continuar o seu caminho.
– Eu sei, mas isto é mais importante – silabou a rapariga, falando ainda mais baixo e notando-se um tom de aborrecimento com tanta hesitação.

A oitava parte está disponível em: http://pedro-cipriano.blogspot.de/2012/07/o-monstro-e-musa-oitava-parte.html

sexta-feira, 27 de julho de 2012

O monstro e a musa - parte 6/12

A primeira parte deste conto pode ser encontrada em: http://pedro-cipriano.blogspot.de/2012/07/o-monstro-e-musa-primeira-parte.html

A quinta parte está em:http://pedro-cipriano.blogspot.de/2012/07/o-monstro-e-musa-quinta-parte.html

 

A musa


Nós somos como arrendatários de uma quinta que cortam a cerca para lenha quando deveríamos usar as fontes infinitas da natureza – o sol, o vento e as marés.
Thomas Edison


Walter acordou quando os primeiros raios de sol entraram pela janela. Um sorriso aflorou-lhe nos lábios quando sentiu a mão de Eva sobre o seu peito. O sorriso cresceu ao relembrar a noite fantástica que havia tido com a criada.
Com cuidado, afastou o braço dela e levantou-se. Ao afastar os lençóis, não pôde evitar apreciar a forma esbelta da jovem. Sentindo crescer dentro de si um desejo intenso, resistiu à tentação de a acordar, pois não queria chegar atrasado. Pé ante pé, aproximou-se do guarda-fatos e retirou um dos uniformes de inventor que lhe fora dado. Assim que vestiu as calças, apercebeu-se que ela despertara.
– Bom dia – cumprimentou, olhando-a com um sorriso.
Havia algo nela que o empolgava. Pensara no assunto várias vezes e chegara à conclusão que só podia ser alguma coisa relacionada com a personalidade. Desde o primeiro dia, em que a rapariga fora encarregada de lhe trazer as refeições, que sentira uma atracção irresistível. Ela tinha apenas dezassete anos contudo, a nível psicológico, parecia muito mais madura. Os sentimentos pareciam ser mútuos, de modo que a relação evoluiu rapidamente para um nível mais sério. Uma ou duas vezes por semana, passavam a noite juntos.
Eva ergueu-se, expondo sensualmente os seus seios, numa atitude de clara provocação. Respondeu-lhe à saudação, enquanto passava a mão pela pele morena do seu tronco. Walter não sabia qual a razão para ela assumir um comportamento tão atrevido, todavia, ele adorava.
– Tenho que sair rapidamente. Preciso de inspeccionar os trabalhos antes de falar ao concílio – explicou o inventor, apertando os botões da camisa.
– É pena – comentou a criada, assumindo uma pose erótica e passando a mão pelos seios – Caso contrário, poderíamos brincar mais um pouco.
– Desculpa, eu gostava muito, mas tenho mesmo de ir. O que é que fazes logo à noite? – convidou, vestindo o casaco.
– Não sei... – murmurou Eva, fingindo hesitar – Depende do que tu quiseres.
Walter sentiu o corpo reagir involuntariamente quando ela passou o dedo pelos lábios.
– Sabes bem o que eu quero. Agora tenho mesmo de ir. Até logo – despediu-se, abrindo a porta.
– Espera! – ordenou-lhe, saindo da cama inesperadamente.
O beijo foi breve, todavia suficiente para lhe deixar um sabor adocicado na boca, uma sensação que normalmente o acompanhava durante uma grande parte do dia.
Quando se separaram, ele fechou cuidadosamente a porta e entrou na porta seguinte, a poucos passos. Ainda estava instalado no mesmo quarto onde o haviam colocado no primeiro dia. Como não havia uma academia de ciências no castro, um salão adjacente havia sido convertido num laboratório, onde Walter poderia testar os protótipos antes de os aplicar na realidade.
À excepção de uma fina camada de pó, as mesas estavam quase vazias, já que os experimentos falhados empilhavam-se nas prateleiras e os que haviam sido bem-sucedidos estavam instalados no terreno. Walter enfiou o molho de folhas amarelas na sua pasta de couro e, com ela debaixo do braço, saiu e voltou a trancar a porta. Abandonou o palácio pela escada de serviço, vendo-se em poucos segundos rodeado pelo movimento intenso daquela hora matinal.
Durante os últimos seis meses, pudera seguir uma rotina, como sempre fizera e tanto gostava. Esta só havia sido perturbada duas vezes: a primeira acontecera quando os seus companheiros de expedição tentaram fugir, a segunda fora quando teve de apresentar os resultados obtidos ao fim dos três primeiros meses.
A execução dos que o acompanhavam ainda lhe causava arrepios pela violência e crueldade com que fora posta em prática. Não tivera outra escolha que não fosse assistir ao cumprimento da pena. Tivera de apelar a todo o seu auto-controlo para não reagir, enquanto os seus conterrâneos eram espancados até à morte. Isso quebrara a ligação à sua vida anterior e ele tinha quase a certeza que fora orquestrado por Artur. Porém, sem provas, o melhor era manter-se em silêncio.
Apesar do nervosismo, os seus resultados haviam sido bem recebidos há três meses atrás. Pouco mais tinha do que alguns projectos e um par de protótipos funcionais. O forte dos assessores não era a ciência e, com alguma complacência de Artur, conseguira ser bem recebido. Todavia, eles haviam exigido uma aplicação prática ao fim de meio ano. Para tal, disponibilizaram-lhe uma equipa de trabalhadores e técnicos, dando-lhe igualmente liberdade total em termos de materiais a usar e de onde iria aplicar as suas criações. Prometeram-lhe também que lhe dariam a liberdade assim que fosse bem sucedido. Dentro de duas horas teria de apresentar os seus resultados e, depois de tão grande investimento, não esperava que lhe facilitassem a vida.

A sétima parte pode ser encontrada em: http://pedro-cipriano.blogspot.de/2012/07/o-monstro-e-musa-setima-parte.html

quinta-feira, 26 de julho de 2012

O monstro e a musa - parte 5/12

A primeira parte deste conto pode ser encontrada em: http://pedro-cipriano.blogspot.de/2012/07/o-monstro-e-musa-primeira-parte.html

A quarta parte está em: http://pedro-cipriano.blogspot.de/2012/07/o-monstro-e-musa-quarta-parte.html


– Precisamente! O carvão também é um recurso finito. Ainda há poucos minutos nos relembrou as consequências de uma guerra motivada por escassez energética. Quando o carvão não for suficiente para todos, haverão outras guerras – concluiu o líder, com um gesto de triunfo.
– Isso é alarmismo! Se bem me lembro, um dos génios e visionários da era nuclear disse que não sabia como seria a terceira guerra mundial, mas que a quarta seria com paus e pedras. Se compararmos o potencial bélico dessas nações beligerantes durante o grande cataclismo e o que possuímos agora, provavelmente eles nos chamar-nos-iam de primitivos – interveio Aristides, colocando um braço em frente de Artur como que impedindo-o simbolicamente de avançar.
– Meu caro Aristides, eu nunca esperei que levasses esta ameaça a sério – revelou, fazendo-lhe um sinal para que baixasse o braço.
De seguida, virou-se para os restantes.
– Não nos iludamos ao pensar que, por via das restrições tecnológicas, uma guerra à escala mundial não será tão terrível como a anterior. Pelo contrário, será mais longa e matará mais pessoas. Temo que qualquer nação que enfrente a obliteração possa cair na tentação de desenvolver e usar tecnologia proibida. Se isso acontecer, a ameaça de extinção pairará mais uma vez sobre a nossa espécie.
Walter não precisava de mais explicações, compreendera finalmente a razão para o seu sequestro. Artur sabia muito bem o que fazia, pois só um inventor com a sua especialidade e bastante capacidade poderia resolver o problema.
– Exijo saber se este homem pode ou não resolver o problema! Já estamos a prolongar esta conversa há demasiado tempo – protestou Xavier, visivelmente impaciente.
– Xavier, espera um momento, já iremos abordar esse assunto. Caro doutor Ramos, peço desculpa pela interrupção. Consegue estimar quantos habitantes tem o castro?
– Estimei que haverá cerca de vinte a trinta mil.
– É uma boa estimativa. Se juntarmos os que vivem no vale e as vilas satélite, são cento e dez mil habitantes, segundo o último censo. Consegue estimar quanto carvão é necessário por ano para manter este nível tecnológico?
Walter fez o cálculo de cabeça, ficando mais consciente do problema.
– Um quarto de milhão de toneladas por ano. Quantas minas activas possuem?
– É uma estimativa admirável, pois está muito perto dos valores oficiais. Em todo o território, há apenas uma mina – confessou Artur com um sorriso amargo. – A capacidade foi avaliada e o carvão nesse jazigo situa-se entre um milhão e um milhão e meio de toneladas. Ou seja, há energia para mais quatro a seis anos. A questão que está na sua cabeça é muito facilmente respondida, foram feitos grandes esforços para encontrar outras minas e todas praticamente infrutíferas. O carvão encontrado nos últimos dez anos não dá sequer para suprir as necessidades energéticas desta cidade durante meio ano. Aristides, conta-lhe o que ficou decidido no último concílio estratégico-militar do castro.
– Não considero apropriado contar a um estranho as nossas resoluções internas, quando nem sequer o fazemos ao comum dos cidadãos – objectou outro dos assessores, um homem baixo e redondo.
– Fábio, ele precisa de saber para melhor desempenhar o seu trabalho. Aristides, por favor, explica ao senhor Ramos quais as consequências da escassez energética.
– Entraremos em guerra, tentando expandir o território para Norte, de modo a obter as minas de carvão aí existentes.
– Porquê? – questionou Artur de um modo retórico.
– Porque caso não o façamos, estimamos que metade da população diminua pelo menos um terço, nos dez anos seguintes ao fim do carvão.
– E quais são as reservas existentes a Norte? – insistiu o líder do castro.
– Estimamos algo entre sete a oito milhões de toneladas.
– Como vê, caro doutor Ramos, a guerra seria apenas uma solução temporária. É necessário aceder e controlar outras formas de energia. Agora percebe porque está aqui? Pode explicar a estes senhores qual é a sua especialidade?
O inventor olhou os adjuntos com confiança no olhar. Passou a mão pelo cabelo para afastar o nervosismo, como costumava fazer antes de qualquer apresentação importante na Academia Imperial de Ciências.
– Eu estudo a electricidade e o seu potencial para substituir o carvão como fonte de energia.
Nesse momento, Walter ficou estupefacto com a sua própria reacção; a escolha de palavras e gestos de Artur tinham sido impressionantes. O líder do castro encontrara a alavanca certa.

A sexta parte pode ser encontrada em: http://pedro-cipriano.blogspot.de/2012/07/o-monstro-e-musa-sexta-parte.html

quarta-feira, 25 de julho de 2012

O monstro e a musa - parte 4/12

A primeira parte pode ser encontrada em: http://pedro-cipriano.blogspot.de/2012/07/o-monstro-e-musa-primeira-parte.html

A terceira parte está disponível em: http://pedro-cipriano.blogspot.de/2012/07/o-monstro-e-musa-terceira-parte.html

– O que o leva a crer que eu irei trabalhar para si? – hesitou Walter, mantendo a sua posição.
– Já tivemos a conversa das alavancas uma vez, não julgo que seja necessário repeti-la. Acho que o próprio problema poderá ser um estímulo importante. Agora siga-me, tenho a certeza que a curiosidade o está a afectar mais do que queria.
Saíram do palácio e enveredaram pela rua principal. Apesar de ser hora de ponta, a multidão abria alas para os deixar passar. O inventor viu que a cidade possuía várias fontes com água corrente, apesar se encontrar num ponto alto. Ao observar o pavimento, descobriu pequenas fissuras nas extremidades da via, o que provavelmente corresponderia a esgotos.
A conversa enigmática despertara-lhe um grande interesse. Questionava-se sobre o que é que uma cidade-estado tão avançada poderia ainda precisar. Por mais que se esforçasse, só lhe ocorria matérias de índole bélica.
Apenas meia dúzia de soldados acompanhava a comitiva. Walter perscrutava cada face e cada beco, na esperança de poder escapar à sua clausura.
– Caro Walter, se me permite que o trate assim, não acho que uma tentativa de fuga seja uma coisa sensata de se fazer. Para além de ser pouco provável que tenha sucesso, os outros prisioneiros sofrerão as represálias. Pense neste passeio como um presente – sugeriu-lhe Artur, entrecruzando os dedos numa atitude de auto-confiança.
O inventor parou e olhou-o, surpreendido. Parecia-lhe impossível aquele homem estar sempre um passo à sua frente. Apercebeu-se, tarde demais, que se o líder tinha uma suspeita, o seu comportamento confirmara-a. Só lhe restava continuar a andar e ver o que ele tinha para lhe mostrar.
Pararam de frente para uma fornalha, cujo vapor fazia movimentar uma das linhas de teleférico. A construção tinha o tamanho de uma pequena moradia. Um homem colocava regularmente carvão no forno.
– Está a ver esta fornalha? Tenho a certeza que este tipo de equipamento lhe é familiar. Pode explicar-nos como é que funciona?
Walter olhou-o zangado. Não lhe tinha mostrado nada de extraordinário e ainda queria que ele embarcasse noutro dos seus esquemas mentais.
– Porque raio é que você não vai directo ao assunto? – protestou, agitando violentamente os braços.
– Tenha calma, esse temperamento faz mal à saúde. Acho que não vai contra a sua consciência explicar o funcionamento da máquina a vapor, assim os meus assessores ficam todos com o mesmo nível de conhecimento – apaziguou-o Artur, soltando uma gargalhada ligeira.
O inventor não pode evitar rir-se também, face ao insulto que ele dera aos seus adjuntos. De algum modo, aquele homem extraía de si as emoções, como um músico fazia com um instrumento.
– A fornalha aquece a água, que é transformada em vapor. Usando a pressão daí resultante, faz-se movimentar o pistão e assim se gera um movimento circular que pode ser usado para inúmeros fins...
– Exacto, eu não explicaria melhor. Agora, peço-lhe que deixe parte da aplicação prática e que nos diga quais são os requerimentos da máquina.
– É necessária uma metalurgia suficientemente avançada para fundir as partes necessárias, água em estado líquido e carvão.
– Meu caro, julgo que observou um pouco do nosso modesto castro. Diga, qual acha ser a maior limitação que enfrentamos no uso de tal maquinaria?
– Vocês parecem possuir a técnica necessária para fundir o aço e água corrente em abundância – Walter parou e olhou Artur nos olhos.
Finalmente percebera o problema que afligia aquela comunidade.
– Falta-vos o carvão.

A continuação deste conto pode ser encontrada, ou seja, a quinta parte, pode se encontrada em http://pedro-cipriano.blogspot.de/2012/07/o-monstro-e-musa-quinta-parte.html

terça-feira, 24 de julho de 2012

O monstro e a musa - parte 3/12

A primeira parte pode ser encontrada em: http://pedro-cipriano.blogspot.de/2012/07/o-monstro-e-musa-primeira-parte.html

A segunda parte está disponível em: http://pedro-cipriano.blogspot.de/2012/07/o-monstro-e-musa-segunda-parte.html

– Eu exijo saber se este tal inventor pode resolver o nosso problema. Relembro que a sua captura foi custosa em material e homens e que ainda pode acalentar outras consequências mais graves – protestou um homem magricela à direita.
– Silêncio Xavier, observa primeiro, fala depois – comandou Artur, dispensando o ministro com um gesto. – Caro doutor Ramos, presumo que deve estar familiarizado com o que desencadeou o fim da era nuclear. Gostava que nos falasse um pouco sobre isso.
– Se é de história que quer ouvir falar, pois bem, enganou-se na especialidade. Deveria ter raptado um historiador, não um inventor – ironizou Walter, lançado um sorriso trocista a Artur.
– Como é que ele se atreve a falar assim contigo? Eu exijo que o castigues imediatamente! – exaltou-se um homem oponente de cabelo grisalho, também ele sentado à esquerda de Artur.
– Tem calma Aristides, precisamos dele vivo e inteiro – pediu Artur, repetindo o gesto que fizera para o outro ministro. – O senhor Ramos tem uma língua muito pouco domesticada, especialmente tendo em conta a sua situação precária. Agradecia que evitasse comentários jocosos enquanto estiver reunido com o concílio que rege este castro. Não se esqueça que temos os restantes membros da sua expedição como reféns.
– Não sei porque é que me está a perguntar isso. Só sei que a era nuclear terminou com o grande cataclismo.
– Já irá saber os meus motivos mas, primeiro, gostaria que nos falasse das razões desse cataclismo.
– O petróleo era um recurso finito e, quando começou a escassear, várias nações entraram em guerra pela posse das últimas reservas. O conflito escalou, transformando-se numa guerra mundial. Os conflitos mundiais duraram oito anos, em que vários milhões de pessoas pereceram. Não foram usadas armas nucleares, pois todos sabiam que isso poderia causar a extinção da espécie humana. Todavia, a aliança euro-asiática foi colocada numa posição delicada nos últimos estádios do conflito e decidiu usar o seu arsenal nuclear – relatou Walter.
De seguida, levantando-se abriu os braços com as palmas da mão viradas para o chão
– A morte desceu dos céus e o mundo antigo desapareceu, para sempre – citando a frase que era ensinada a todas as crianças
– Óptimo, eu não teria feito melhor. Deixe-me dizer-lhe que tem excelentes dotes de orador. Agora, se não se importar, podia falar-nos um pouco do que aconteceu depois do grande cataclismo?
– A maioria da população mundial morreu nesse dia. Nações inteiras foram apagadas do mapa. Os diversos líderes sobreviventes reuniram-se e decidiram destruir toda a tecnologia da era nuclear, de modo a evitar que algo semelhante pudesse voltar a acontecer.
– O Homem não deve possuir nem criar meios para se auto-destruir – citou Artur, afastando algo imaginário com a mão esquerda.
– Vejo que está bastante informado sobre o assunto...
– Poupe-nos o comentário. Já que insiste, vou directo ao assunto. Eu pretendo que recrie uma tecnologia da era nuclear.
Walter levantou-se impetuosamente e aproximou-se de Artur. Por um momento, perdera todo o medo, pois sentia que estava a servir um propósito maior.
– Bem, acho que me pode matar já. Não há nada que me convença a desenvolver tecnologia proibida e tenho a certeza que todos os outros sobreviventes são da mesma opinião. Mais facilmente abdicaremos das nossas vidas do que participaremos em tal loucura – gritou, apontando o dedo a Artur.
– Peço que se acalme – ordenou o líder, pedido, com um gesto, aos outros membros do concílio que fizessem o mesmo. – Diga-me, quais são as sete tecnologias proibidas. Sabe-as de cor?
– Claro que sei, é a primeira coisa que nos ensinam quando entramos na Academia Imperial das Ciências – constatou Walter, admirado com a aparente calma de Artur.
– Diga-as, em voz alta.
– É proibido manipular núcleos atómicos, assim como realizar fissuração e fusão nuclear. É proibido desenvolver propulsão a jacto ou qualquer outro projéctil ou veículo, tripulado ou não, que exceda a velocidade do som. É proibido construir máquinas que efectuem cálculos complexos mais rápido que a mente humana. É proibido acelerar e colidir qualquer partícula atómica e sub-atómica. É proibida a criação de compostos químicos que sejam altamente inflamáveis, corrosivos, explosivos ou tóxicos, sendo a única excepção a pólvora preta. É proibido manipular cadeias de DNA e a criação e manutenção de organismos altamente infecciosos ou letais para a espécie humana e ecossistemas em geral. São proibidas experiências psicológicas com o objectivo de ler ou manipular a mente humana. Qualquer pessoa, independentemente do estatuto, que viole ou tente alguma destas regras receberá a pena capital e todos os registos do seu trabalho devem ser imediatamente destruídos. Estas são as regras para evitar que a espécie humana se auto-destrua.
– Excelente dicção e não lhe encontrei nenhuma falha – congratulou Artur, batendo palmas.
– Contudo, julgaste-me mal, eu sei perfeitamente os limites. Somente sou bárbaro na vossa designação e não tenho ilusões megalómanas de poder. O que eu pretendo não irá violar nenhuma dessas regras.
– O que é que você pretende, então? – inquiriu Walter, confuso com mais uma reviravolta.
A face de Artur abriu-se num sorriso, enquanto se levantava e fazia sinal ao concílio para o imitar.
– Eu vou deixar que você próprio descubra. Isto é, vou-lhe mostrar o problema e você irá sugerir uma solução – anunciou o líder, apontando para a saída.

A quarta parte desta história está disponível em: http://pedro-cipriano.blogspot.de/2012/07/o-monstro-e-musa-quarta-parte.html

segunda-feira, 23 de julho de 2012

O monstro e a musa - parte 2/12

A primeira parte pode ser encontrada em: http://pedro-cipriano.blogspot.de/2012/07/o-monstro-e-musa-primeira-parte.html

Walter foi separado dos restantes prisioneiros e forçado a caminhar até ao pôr-do-sol. Dormiu ao relento e, na manhã seguinte, prosseguiram viagem depois de lhe terem dado uma magra refeição. A marcha forçada por caminhos agrestes e inclinados estava a consumir-lhe as forças. Os bois e cavalos tinham ainda mais dificuldades, pois viam-se obrigados a carregar as pesadas peças de artilharia que haviam sido capturadas.
Pelos seus cálculos, estavam a penetrar cada vez mais nos territórios selvagens. Aquela faixa montanhosa ibérica separava a Pan-Germânia da Confederação, outrora chamada de Trás-os-Montes. Nunca conseguira compreender o porquê da Confederação insistir em manter aquele enclave na península ibérica quando tinha uma boa porção da América do Sul e ricos territórios em África. Os historiadores falavam de um passado comum que acontecera há quase um milénio atrás. Para além disso, até aqueles rebeldes falavam uma língua derivada do antigo português.
O dia teria ocorrido sem incidentes, se não fosse dois dos prisioneiros terem tentado a fuga. Foram prontamente apanhados e executados sumariamente, como exemplo para os restantes. Ainda o sangue dos dois homens não tinha coagulado, já a marcha continuava.
Andaram o resto do dia e metade do seguinte, terminando a sua jornada numa cidadela, a qual se situava no topo de um planalto. Os portões abriram-se à sua chegada e os guerreiros foram recebidos com aclamações da pequena multidão.
Walter ficou maravilhado enquanto o conduziam através da cidade, a qual não era em nada primitiva. As ruas eram paralelas, estavam impecavelmente pavimentadas e encontravam-se a abarrotar com máquinas a vapor. Os edifícios eram construídos em rocha trabalhada e estavam em bom estado de conservação. Inúmeros teleféricos transportavam tanto pessoas como carga. Era admirável como uma cidade tão sofisticada poderia existir àquela altitude e aparentemente isolada de tudo o resto.
Foi levado para uma construção imponente, que deduziu ser o palácio do governador. Obrigaram-no a subir por uma estreita escada de serviço. Sem qualquer explicação, fecharam-no à chave num quarto dos andares superiores. A divisão era espaçosa e bastante melhor do que esperava. Continha uma cama, uma escrivaninha, uma cadeira, uma estante vazia e um guarda-fatos.
Sentou-se na cama e, sem dar conta, deixou-se estender nela. Adormeceu por via do cansaço, pouco depois.
Acordaram-no inesperadamente, várias horas depois, quando lhe trouxeram comida. O prato continha um pedaço de pão, um bife e alguns vegetais cozidos a vapor. Estava esfomeado, de modo que não levantou objecções quanto à qualidade do prato. Para sua surpresa, fora muito bem confeccionado. Enquanto comia, pôde admirar o pôr-do-sol, já que a varanda estava virada para Oeste. Quando terminou a refeição, levantou-se a custo, pois os músculos estavam extremamente doridos.
Estava no terceiro andar do suposto palácio e o balcão proporcionava-lhe uma vista privilegiada da cidadela. A cidade possuía uma torre de relógio no centro, em frente do que Walter supôs ser a praça principal. As colunas de fumo vindas das extremidades dos teleféricos a vapor mostravam-lhe qual era a fonte de energia de toda a cidade. Avaliou o movimento e deduziu que viveriam ali entre duas a três dezenas de milhares de almas. As muralhas eram espessas e as torres de vigia estavam guarnecidas com diversas peças de artilharia, tanto contra balões como contra outra artilharia.
Voltou para dentro, sentando-se na cama, desanimado. Era pouco provável que a Confederação luso-brasileira arriscasse atacar aquela cidade para o resgatar. O que acontecera nos últimos dias abalara profundamente as suas convicções. Não era só o cativeiro, chocava-o mais saber que os povos bárbaros eram tão civilizados como o resto da Confederação. Foi quase em completo desespero que adormeceu.
Na manhã seguinte foi acordado, pois iria ter uma audição com o governador. Fizeram-no trocar as suas roupas esfarrapadas por um uniforme novo. Deram-lhe um pedaço de pão e um copo de água. Foi então conduzido pelos corredores até ao piso térreo. Pela primeira vez, reparou que o interior do edifício também fora construído em pedra e trabalhado com inúmeros ornamentos. Os tectos continham numerosos frescos. O que mais o desconcertava era que aquelas construções pertenciam à era pós-nuclear.
O salão principal era extremamente espaçoso e a sua abóbada tinha várias centenas de metros quadrados, fazendo lembrar uma antiga catedral. Esperava ver um trono e um líder sentado nele, coroado como os antigos reis, contudo não foi isso que encontrou. O comandante estava no centro da sala, acompanhado por um punhado de homens que supôs serem ministros. Em ambos os lados, mais afastados, estavam alguns soldados.
– Meu caro, espero que tenha gostado da estadia que lhe proporcionei – cumprimentou o comandante, sem quaisquer traços de ironia.
– Quem é o senhor? – devolveu-lhe Walter, pensando que estavam a brincar com ele.
– Peço imensa desculpa, não me tinha apresentado. Deve pensar que não passo de um selvagem, não é isso que chamam às gentes deste território? Eu sou Artur Olivais e sou o líder deste castro – e virando-se para os restantes – e este é o famoso doutor Walter Ramos, o inventor que veio do além-mar.
Walter continuava confuso, questionava-se como é que um líder poderia comandar pessoalmente ataques à Confederação. Era preciso uma grande dose de imprudência para o tentar e sangue-frio para o conseguir.
Artur levantou a mão e fez um gesto. Imediatamente várias cadeiras foram dispostas, formando uma meia-lua em frente de Walter. Sentiu um movimento por trás de si e, ao olhar, descobriu que um dos criados acabara de colocar uma cadeira perto de si.
– Sentemos-nos. Acredito que temos muito que conversar – pediu Artur.

A terceira parte deste conto pode se acedida em:  http://pedro-cipriano.blogspot.de/2012/07/o-monstro-e-musa-terceira-parte.html

domingo, 22 de julho de 2012

O monstro e a musa - parte 1/12

O monstro

Nós sabíamos que o mundo nunca mais seria o mesmo. Algumas pessoas riram-se, outras choraram e a maioria ficou silenciosa. Eu lembrei-me de uma linha das escrituras hindus, o Bhagavad-Gita. Vishnu tenta convencer o príncipe a cumprir o seu dever e, para o impressionar, toma a sua forma de múltiplos braços e diz “Eu agora tornei-me a morte, o destruidor de mundos”. De um modo ou de outro, todos pensamos o mesmo.
Robert Oppenheimer, o pai da bomba atómica

Naquele fim de tarde, Walter viu o caos instalar-se nos primeiros segundos de batalha. De ambos os lados, os canhões rugiram assincronamente, enquanto o jovem corria para encontrar cobertura. Agachou-se em posição fetal, dentro duma depressão do terreno. Não podia fazer muito mais, era um inventor, não um soldado.
Enquanto a escaramuça decorria, amaldiçoou o momento em que se voluntariara para a expedição. Apesar destas montanhas pertencerem à confederação, desde cedo ficou claro que na realidade eram controladas por insurgentes.
Uma das explosões deu-se à sua direita, enchendo o buraco com pó e detritos. Tanto os olhos como as vias respiratórias foram fortemente afectadas, de modo que tossiu e lacrimejou durante minutos.
A artilharia calara-se. Finalmente tudo tinha terminado, pensou, espreitando para fora do buraco. O que viu deixou-o transtornado: a maioria dos soldados que acompanhava a expedição estava morta ou ferida; corpos mutilados e equipamento despedaçado encontravam-se espalhados um pouco por todo o lado. A consternação transformou-se em desespero quando viu que os restantes se tinham rendido. Ao olhar em volta, percebeu que estavam cercados pelos rebeldes.
Não tardou que alguns guerreiros com couraças de couro e latão o encontrassem. Com as suas espadas e lanças, obrigaram-no a sair do buraco. Enquanto o conduziam em direcção aos outros sobreviventes, ergueu a cabeça e tentou caminhar com toda a dignidade que lhe restava. Ao contrário do que esperava, não o agrediram.
Sobrara pouco mais do que uma dúzia de homens. Os inimigos observavam-nos, prontos a agir ao primeiro movimento suspeito. O momento era tenso, pois ninguém sabia o que os esperava. O que Walter tinha ouvido sobre os povos não governados fazia-o prever o pior.
Abruptamente, fez-se silêncio. Os guardas afastaram-se, permitindo-lhes ver o que lhes pareceu ser o comandante. Era um homem, de traços ibéricos e estatura mediana. Não parecia ser muito forte contudo, a sua expressão impunha respeito. Estava armado de um modo muito semelhante aos restantes soldados, à excepção dos dois arcabuzes extra que trazia à cintura.
– Quem é o doutor Walter Ramos? – perguntou, num tom de voz moderado.
O doutor não pôde evitar estremecer. Sabia que o medo que sentia saía por cada poro e que nem a suposta dignidade conseguiria manter. Já que ele permanecia estático no mesmo sítio, um dos sobreviventes empurrou-o.
– Sou eu...
– É um prazer conhecê-lo pessoalmente – explicou o homem. – Os seus serviços são-me necessários. Gostaria que você partilhasse os seus conhecimentos e o seu génio inventivo com o meu castro.
– O que o leva a pensar que eu vou fazer isso? – retorquiu Walter, soltando a sua arrogância sem pensar.
– Meu caro, creio que estará mais familiarizado com uma tal ciência, à qual antigamente davam o nome de física – fez uma pausa, olhando o prisioneiro. – Sabe melhor que ninguém que até a pedra mais pesada pode ser movida com o uso da alavanca correcta. É curioso que o mesmo se passe com os homens.
Walther não sabia como responder, acabando por permanecer em silêncio. Algo lhe dizia que aquele homem ainda tinha trunfos na manga. O tempo arrastou-se de um modo tenso.
– Então, qual vai ser a sua decisão? – insistiu o rebelde, mostrando-lhe que estava a ficar impaciente.
– Gostava de ver que alavanca é essa!
– Para ser sincero, não sei qual é a alavanca no seu caso. Se me permite, vou-lhe contar um segredo. Eu sou um grande fã do método científico e, por vezes, faço algumas experiências na minha cozinha. Provavelmente estou a aborrecê-lo com as minhas palavras, já que não deve estar muito interessado em ouvir falar da minha ciência caseira. Só queria que soubesse que irei procurar de um modo perseverante a sua alavanca. Creio que irei optar pelo método da tentativa e erro – relatou, fazendo um gesto com mão.
Dois insurgentes agarraram-no e levaram-no para mais perto do comandante.
– Não pense que me vai convencer com ameaças! – exclamou Walter, tentando controlar o medo.
– Meu caro, já deve ter ouvido falar de um jogo antigo, creio que se chamava xadrez. Era um jogo muito interessante. Para vencer era preciso antecipar as jogadas do oponente. Todavia, para se ser um mestre, era necessário cortar-lhe também as possibilidades, de modo que ele caminhasse para a armadilha por vontade própria.
–Não estou a entender... – protestou o inventor.
–Matem os prisioneiros que não se puderem colocar de pé! – ordenou com um sorriso sádico.
Vários soldados inimigos colocaram-se à sua frente, de modo que não pôde ver o que se passava. Não tardou que se ouvissem gritos de desespero e angústia. Quando terminou, o silêncio ainda conseguia ser mais sinistro.
–Meu caro, espero que isto o tenha convencido a acompanhar-me – satirizou o comandante.

A segunda parte pode ser encontrada em: http://pedro-cipriano.blogspot.de/2012/07/o-monstro-e-musa-segunda-parte.html