segunda-feira, 31 de outubro de 2016

A Reabilitação

Felizmente, para a maioria, o processo não era longo. Uns dias e estava terminado. Quem ditava a necessidade de reabilitação eram os agentes do Estado. Uns sujeitos que vestiam fatos fora de moda e que imiscuíam em demasia na vida das pessoas. Tudo o que não estivesse nos conformes com o que se esperava dum cidadão exemplar podia ser punido. Esses agentes eram uma polícia que estava acima da polícia. Nem eles escapavam do controlo dos seus pares. Quem realmente os liderava, ninguém sabia ao certo, já que até o presidente e ministros podiam ser investigados.
Jorge viu-se no meio do processo numa manhã do fim de Julho de 2039, enquanto vendia cupões de alimentação, na rua de Santa Catarina. Um crime que não praticava por simples desobediência, mas por necessidade. Quando os agentes o abordaram, limitou-se a levantar os braços e fixar o olhar na calçada. Talvez não lhe dessem a pena mais pesada. Não houve juiz, nem advogados, nem sequer um julgamento. Mantiveram-no na cela minúscula durante um par de dias. Depois disso, obrigaram-no a entrar num camião com outra dezena de pessoas. Ninguém ousou trocar uma única palavra sobre o que se estava a passar. Talvez soubessem o que se ia passar. Jorge não sabia.
O camião percorreu quilómetros sem fim, até que, ao pôr-do-sol, chegaram ao acampamento. O recinto estava cercado de arame farpado. Não era claro se servia para impedir a entrada ou a saída. O silêncio imperava entre eles, como o aplicar de uma regra que não fora sequer enunciada. Foram distribuídos por casernas de madeira. Havia muitos mais na mesma situação.
Como refeição foi-lhes dado uma sopa insípida. Jorge estremeceu quando lhe colocaram um uniforme militar esburacado nos braços. Viu medo e resignação nos olhares dos outros. Também eles tinham compreendido o que os esperava. Com as roupas civis, desapareceu a esperança. Nos beliches não havia nem cobertores nem colchão, obrigando-os a dormir vestidos sobre as traves de madeira.
― Toca a levantar! A vossa reabilitação começa hoje! ― rugiu uma voz.
Jorge abriu os olhos. Ainda o Sol não tinha nascido. Mais uma vez, foram metidos em camiões. A viagem não foi longa. Pararam na encosta dum monte. Jorge contou cerca de uma centena de pessoas na mesma condição.
― A vossa reabilitação é simples ― explicou-lhes o sargento. ― Do outro lado da encosta há um rio e uma ponte atravessa esse rio. Quem chegar ao outro lado da ponte é livre e todos os seus crimes são esquecidos. Quem se acobardar é fuzilado. Boa sorte!
Depois passaram-lhe as armas para as mãos. A de Jorge deveria ter pelo menos uns cinquenta anos. Duvidou que sequer funcionasse.
O grupo subiu o resto do monte e quando chegou ao topo, viu que havia trincheiras escavadas por entre as ruínas de uma povoação. A cabeça do homem que estava a seu lado explodiu, numa mistura de osso, sangue e massa encefálica. Jorge atirou-se para o chão e os outros dispersaram de imediato, abrigando-se por detrás do entulho. Ouvia-se uma metralhadora ao longe. Sentiu a face húmida. Ao passar a mão, viu uma substância pastosa vermelha. A custo, conteve o vómito. Respirou fundo três vezes e correu para a pedra seguinte, vagamente consciente que o estavam a alvejar. Uns segundos depois atirava-se para a trincheira, onde se deixou ficar, ofegante. Como ele, a maioria tinha conseguido refugiar-se ali. No entanto, alguns haviam ficado para trás e parecia improvável que se voltassem a levantar.
― O que é que estão à espera? Avancem! Quem estiver nesta trincheira daqui a um minuto é fuzilado ― ouviu um militar ameaçar.
Hesitou. O coração aos pulos no peito. Apertou o cano da arma e galgou a extremidade de forma desastrada. A terra de ninguém não era extensa, mas não oferecia qualquer protecção. Duas dezenas de metros era o que os separava da ponte. Foram de imediato alvejados. Jorge não viu outra escolha que não fosse avançar e procurar a protecção da ponte. O som dos disparos desorientava-o. Houve quem saltasse para o rio. Outros tentaram atravessar a ponte por cima.
Ele não chegou tão longe. A primeira bala acertou-lhe acima do joelho, numa explosão de dor. A segunda no ombro, fazendo-o largar a arma. As três seguintes no tórax. O corpo avançou um par de passos e caiu para a frente, à entrada da ponte. A sua reabilitação terminara.


Foto: Ana Filipa Piedade

Este conto foi publicado originalmente no blogue Fantasy & Co.

sexta-feira, 28 de outubro de 2016

O Campo

Para além do muro ficava o campo proibido. E a bola de Fábio foi lá parar.
― Oh raios! Já é a terceira bola que vai lá parar este mês ― resmunga, atirando um cachaço ao Alberto. ― E a culpa é tua! Podias ter mais cuidado! Amanhã trazes tu a bola!
Fábio sabia que não podia passar para o outro lado e muito menos ir brincar lá. Todos os pais eram unânimes. Acontecesse o que acontecesse, não poderiam passar para além do muro. Era perigoso. Infelizmente, ao lado ficava o único local onde ainda podiam jogar futebol depois da escola.
― Grande bola! Era só um rolho de trapos ― defende-se o Alberto, tentando devolver a agressão de um modo desajeitado.
― Não interessa, quem estraga velho, paga novo! Amanhã trazes uma bola! São as regras! ― impôs o rapaz.
Os colegas acenam o seu apoio.
― Sabem que mais? Vocês são uns mariquinhas, eu vou saltar ao muro e buscar a porcaria da bola.
― Não tinhas coragem! ― espicaça o Hugo, o mais gordo.
― Já vão ver se tenho ou não. Vou lá buscar a bola e vou agora. Vocês, como são uns mijões, podem ficar aí à espera.
Dito isto, eleva-se para o muro, com a ajuda dos braços, apoiando os cotovelos e alçando uma perna. No instante seguinte desaparece do outro lado. Os colegas não deixam escapar o desafio e sobem também ao muro. Vêem a mesma imensa área que ninguém pisara durante mais de uma década. A erva crescia frondosa e pequenos arbustos tomavam conta do local. Já o tinham observado várias vezes, mas nenhum tivera a coragem de descer para o outro lado.
No meio da vegetação, Fábio procura a bola.
― Nunca percebi porque é que os adultos não nos querem aqui – questiona-se o Hugo. ― Isto é um sítio porreiro para tanta coisa!
― Se calhar havia aqui alguma coisa má e agora já não há – deduz o Paulo.
― Talvez, talvez…
― Olhem, o Alberto está lá em baixo e ainda não lhe aconteceu nada. Não podemos ficar aqui e deixar que ele goze connosco ― constata o Fábio.
O grupo salta para a terra de ninguém. Assim que pisam o tapete verde, riem-se. Iriam ter uma história para contar aos colegas no dia seguinte. Os mais velhos iam roer-se de inveja. Iriam ser os heróis da escola.
― Eu ouvi dizer que aqui foi a linha da frente durante a Grande Guerra Europeia, eles nunca conseguiram entrar no Porto ― explica o Carlos.
― Tchii, isso já foi há mais de dez anos. Será que há armas por aqui perdidas? ― imagina o Paulo.
― Às tantas…
― Se houver, eu aposto que…
Uma explosão corta o ar. O impacto da onda de choque é imediato. Os ouvidos ficam a zumbir. Vêem pedaços de terra, vegetação, e não sabem bem mais o quê, voar. Ouvem gritos estridentes. A trupe corre na direcção do som, detendo-se a alguns metros do amigo.
O choque é tal, que correm na direcção oposta. Nenhum deles hesita em abandonar Alberto. O único pensamento é galgar o muro em direcção à segurança. Ninguém jamais iria esquecer do corpo mutilado e desfeito do amigo.
Durante outra geração ninguém iria passar para além do muro.


Este conto foi originalmente publicado no blogue Fantasy & Co.

quarta-feira, 26 de outubro de 2016

Crítica: O Guarda-Livros

Este conto foi publicado em Maio e Junho de 2013 no Fantasy & Co. Enquanto escritor, foi um dos meu favoritos dessa fase, pois reflecte alguns dos meus receios para o futuro. Vou deixar-vos algumas das críticas que recebi.




E também a opinião de Inês Montenegro:


segunda-feira, 24 de outubro de 2016

Arraia

A noite desce sobre a serra como um manto, escondendo no seu âmago falésias rochosas e vales gelados. O vento assobia por entre granitos milenares. O quarto minguante da lua e as estrelas não deixam distinguir mais que algumas sombras.
Sou um desses vultos. Não sei quantos à minha volta serão reais. Parece que estou sempre a ouvir passos. Paro e olho para trás. Só o vento sopra. Estremeço e aperto o casaco contra o peito. Retomo a marcha, apoiado no cajado, caminhando tão rápido quanto a inclinação me permite.
Não faço ideia de quanto falta. A última refeição foi há dois dias. Tive sorte, o velho pastor para além de me dar janta e pernoita, ainda me deu indicações precisas do caminho a seguir. Não devo ser o primeiro que ele acolhe. Vi a foto de um rapaz pendurada ao lado de uma cruz. Trocamos um olhar e bastou. Não precisámos de dizer mais nada. Espero que nunca o descubram. Esforço-me por afastar esse pensamento da cabeça.
Deixei um bilhete na mesa da cozinha para a minha mãe. Apenas uma palavra: arraia. É o que precisa de saber. Como terá reagido? Talvez um dia o saiba. Espero que compreenda que não tenho outra escolha. Meio ano depois de o meu pai ter sido chamado, um tiro de morteiro deixou-o a uma distância que não pode ser vencida. Tiago, o meu irmão mais velho, foi dado como desaparecido faz este Natal um ano. O Vítor, o nosso vizinho de cima, ficou paraplégico numa derrocada. Parece que ainda lhe ouço os nocturnos, a fenderem a noite. E, como eles, tantos outros. Tinha de escapar. Não foi o mais brilhante dos planos, atravessar a serra no Inverno, no entanto o tempo estava a esgotar-se. Faço dezasseis anos daqui a um mês. Não deve demorar nem uma semana para que chegue a convocatória.
Chego ao topo da elevação. Ouço uivos à distância. O pastor tinha razão, não estou sozinho. A aldeia mais próxima fica a mais de dez quilómetros. Ninguém se aventura por aqui. Só cabras, pastores e a Divisão Hermínia. Avanço pelo meio das giestas, tão altas que me fustigam a face. As pálpebras pesam-me e os músculos doem-me, mas sei que se adormecer no meio deste frio, é possível que não acorde. Cada restolhar da vegetação faz-me saltar o coração. De acordo com o que o pastor me disse, devo estar nas Pedras Cruéis.
Os primeiros flocos batem-me nas pálpebras. Sou obrigado a parar num equilíbrio precário. Ergo os dedos gelados para proteger a face. Parece-me demasiado íngreme para descer. O fundo tanto pode estar a meio metro como a meia centena. O vento entra na roupa como se as costuras estivessem mal cosidas. Tremo ainda mais violentamente. Apalpo a roupa, sei que não tem muitos buracos. Volto atrás. De novo no topo, procuro a estrela polar. Segundo o velho, estou perto do ponto mais alto do país que se fragmentou há duas décadas. Aprendi na escola que Pena Tervinca passou a ser o mais alto.
Sigo pelo meio das urzes, a tentar evitar o vento. A minha atenção prende-se no piar de uma coruja vindo de uma árvore próxima. A vegetação agita-se. Sustenho a respiração. Um vulto veloz desaparece à minha direita. Aperto mais o cajado. Não sei se o conseguia soltar com os dedos assim enregelados.
Foi há dois meses que passámos a usar a velha Ponte Dona Maria. Nem tivemos outra escolha: a do Infante foi atingida num bombardeamento. Tivemos sorte: o nosso prédio foi dos poucos que escapou intacto. Quem me dera estar no quente da cozinha.
Quando a lua atinge o seu zénite, encontro-me à beira de um lago. Ao ver a água, apercebo-me da garganta seca. Mergulho a mão no líquido glacial e levo-a à boca. O frio espalha-se-me pelas entranhas. Recomeço a tremer. Bebo mais uma vez.
Passos ressoam nas pedras. Ergo-me e tento voltar à vegetação. Tropeço e caio num zimbro. Esbracejo para me libertar e, quando o consigo, escondo-me nos arbustos. O coração está a galope. Sustenho a respiração. Será que estou a imaginar coisas? Afasto-me dali o mais rápido que consigo. Os ramos castigam-me a cara. Não sei onde pára o cajado.
Quando dou por mim, estou no topo de outra elevação. Dor de burro, cortes nas mãos e na cara. Nada de grave. Cruzo os braços sobre o peito, apertando a roupa contra o corpo. A neve continua a cair, os flocos a acumularem-se sobre tudo. Ergo o olhar. Luzes ao fundo. O que serão? É melhor evitá-las, não vou arriscar. Por cima deste frágil manto branco que me envolve, uma nuvem cobre a lua.
– … não faço ideia – diz uma voz masculina.
Encolho-me no meio da vegetação.
– Nunca pensaste nisso? Dos que passam pra lá do rio, nenhum volta… Achas que se escapam disto? – devolve outra voz.
Os passos aproximam-se.
– Pensa lá um pouco… O que é que a gente faz quando apanha um Asturiano deste lado? Hã?…
Param quase colados a mim. Uma luz. Um cigarro é aceso. Consigo distinguir a sombra das armas. Estou demasiado perto. Respiro muito devagar. Os soldados partilham a mortalha em silêncio. As articulações doem-me. Não posso mexer um único músculo. Atiram a beata e esta aterra mesmo à minha beira. Deixo-os sumirem-se na noite antes de me mover novamente. Mal me consigo mexer.
Por sorte, encontro uma abertura perto, coberta de arbustos que afasto de modo atabalhoado. Cada movimento é uma tortura. Quando é que foi a última vez que dormi uma noite completa? Este recanto diminuto terá que servir. Deixo-me cair para o interior e encolho-me em posição fetal. O frio da rocha atravessa a roupa. Pelo menos aqui o vento não chega. O meu tremer é tão violento que se deve ouvir a metros. Não sei se vou conseguir dormir.
Na cozinha está-se bem. A mãe serve-me um prato de sopa, enquanto sorri. Diz-me que a ditadura e a guerra acabaram. Não me passa pela cabeça dizer-lhe que estava a pensar fugir no pico do Inverno. Sujeito a morrer nalgum buraco, perdido entre as patrulhas dum lado e do outro da arraia. Mergulho a colher na sopa e trago-a à boca. Sinto calor invadir-me o corpo, como o raiar da luz matinal. Até que enfim! Já não se sinto a tremer. Ainda bem, não deve faltar muito para o nascer do sol.


Este conto foi originalmente publicado no blogue Fantasy & Co.

segunda-feira, 17 de outubro de 2016

Rios de Sangue - Parte 2/2

Podem ler a primeira parte deste conto aqui.

Com a ajuda do companheiro, colocou o Zé às costas e seguiu pelos túneis, todo dobrado, para que nenhum deles pudesse ser atingido do exterior. Cada passo era doloroso. Zé murmurava coisas sem sentido. O sangue do colega ia-lhe ensopando a roupa.
― Aguenta-te pá, já estamos a chegar ― encorajou-o.
Ao chegar ao fim da trincheira, soube o que desafio estava prestes a iniciar-se. Teria de percorrer um quilómetro no meio de um ataque para chegar ao hospital. Os cozinheiros e os estafetas faziam o mesmo caminho todos os dias, mas nunca de dia. Isto equivalia a pintar um alvo nas costas. Estremeceu antes de meter o pé na escada.
A partir dali, mexeu-se o mais depressa que o peso lhe permitia. Os disparos multiplicavam-se nas suas costas. Nenhum parecia apontado para eles. Tanto pelo que sabia, bastava um. As costas doíam-lhe. Sentiu as pedras debaixo do pé moverem-se. No momento seguinte, estava em queda. O embate com o entulho expulsou-lhe o ar dos pulmões. O Zé aterrou ao lado dele.
Deixou-se ficar no chão. Estava farto desta guerra. Bastava uma bala e isto acabava. Quase ninguém conseguia cumprir o tempo de serviço com vida ou sem uma lesão permanente. Mais valia ficar ali e esperar pelo inevitável.
Veio-lhe uma lágrima ao canto do olho. A mãe iria chorar quando soubesse. E a doce Leonor também. Era demais, já não bastava a mãe ter perdido o marido e a irmã o pai naquelas margens amaldiçoadas, agora iriam perder o filho e irmão. Ou talvez dois filhos e dois irmãos. Não sabia onde andava o Francisco. Ninguém sabia. A divisão dele nunca parava no mesmo sítio.
Ouviu um gemido a seu lado. Era o Zé. A família nunca o iria perdoar se o deixasse morrer aqui. Ergueu-se, tentando não pensar na batalha que se desenrolava nas suas costas. Pegou o colega ferido ao colo e retomou o caminho. Um pé à frente do outro, foi subindo o monte. As feridas do companheiro eram profundas e o sangue corria em demasia. Apressou o passo, já se via o topo do monte. Faz um esforço, quase atingindo o passo de corrida. No cimo da elevação já se vêem o centro de comando, as artilharias, o paiol e o hospital, que não são mais do que o aproveitar das construções da antiga vila.
Um par de minutos e estava no hospital. Já tinham passado várias semanas desde que ali tinha estado. As camas encontravam-se sobrelotadas e os médicos não tinham mãos a medir. Não conseguia sequer ver as enfermeiras. Estendeu o Zé sobre uma maca. Ninguém pareceu dar de conta que chegaram.
― Alguém me ajude. Ele foi atingido por um morteiro ― protestou, em voz alta.
Por fim um dos médicos aproximou-se.
― Não é preciso gritar ― reclamou, observando o soldado. ― Pode ir, eu trato dele.
Roberto saiu, mas deixou-se ficar por ali. Já não se ouviam os disparos. Parecia que a investida terminara. Não vale a pena perguntar como é que terminou, tudo aparentava ter voltado ao normal. Excepto para os que não irão ver outro dia.
― O que é que o soldado está aqui a fazer? ― perguntou-lhe um oficial.
― Tenente ― fez-lhe continência, depois de se levantar à pressa. ― Vim trazer um companheiro ferido.
― E o que é que está à espera para voltar ao seu posto?
― Estou à espera do anoitecer ― constatou, não percebendo como é que não era óbvio.
O homem afastou-se sem lhe responder. Era provável que estivesse atarefado com qualquer coisa.
Ao pôr-do-sol, o médico veio ter com ele. Trazia uns papéis na mão.
― Entregue isto ao comandante do seu pelotão ― ordenou, virando logo costas.
Assim que ficou escuro, pôs-se a caminho junto com o cozinheiros. O passo era mais lento que os restantes e acabou por ficar para trás. Quando chegou, já a comida tinha sido distribuída. Não se preocupou, foi direito ao abrigo do tenente.
― Onde é que raio estiveste? ― inquiriu, aproximando-se da sua face.
― Levei o Zé para ser assistido ― respondeu, passando-lhe os papéis.
O tenente era mais novo, mas tinha chegado àquela posição por ter frequentado o colégio militar.
― Era só o que mais me faltava ― comentou, passando os olhos pelo formulário. ― Outra baixa. Estás dispensado.
Roberto voltou para a trincheira. Sentou-se ao lado de Fábio, que lhe passou a malga da sopa para a mão. Trocaram um olhar. Não precisava dizer-lhe que não voltariam a ver o Zé.


Este conto foi publicado originalmente no blogue Fantasy & Co.

domingo, 16 de outubro de 2016

Chá de Domingo #96: Ainda Sobre o Cyberpunk - Parte 5/5

Esta será a última parte sobre a essência e origem do ciberpunk. Podem encontrar a primeira parte aqui, a segunda aqui, a terceira aqui e a quarta aqui.


"Há que compreender que o nosso tempo não tem nada de banal. A realidade que conhecemos é uma explosão de novidades a cada dia que passa. Nem todas as novidades são boas. É um tempo estranho e de certo modo desconfortável para se estar vivo. Mas, gostaria que sentisse o autor como uma presença... gostaria que entendesse que a coisa invisível nesta sala é a sensação presente de viver no tempo futuro, e não nos anos que nos antecederam. Ser um futurista não é ter sempre a cabeça levantada, à espera que o futuro chegue. É saber claramente onde se está e pensar como se pode melhorar. Só hoje, viva como se estivesse num condição própria de um universo de ficção científica."

"Não existem pessoas normais - olhe para a sua família, as pessoas que você conhece melhor. De uma maneira ou de outra, todos têm as suas esquisitices. Ainda assim a ficção convencional mostra-nos, na maioria das vezes, pessoas normais num mundo normal. A partir do momento em que escreve como se fosse o único anormal, sentir-se-á fraco e apologético. Estará motivado para ir com a corrente e com medo de fazer ondas - para que não seja encontrado. Pessoas reais são estranhas e imprevisíveis, por isso é que é tão importante usá-las como personagens ao invés dos estereótipos impossíveis do bom e do mau que a cultura predominante nos trás. A ideia de quebrar a realidade consensual é ainda mais importante. É aqui que as ferramentas da ficção especulativa são particularmente úteis. Cada mente é uma realidade nela própria. Enquanto as pessoas poderem ser enganadas pela realidade do telejornal, elas podem ser conduzidas como ovelhas."

"No final do século XX, o nosso tempo, um tempo mítico, somos todos quimeras, teorizadas e híbridos entre organismos vivos e máquinas; em suma, somos ciborgues. Ciborgue é a nossa ontologia; dá-nos a nossa política. O ciborgue é uma imagem condensada da imaginação e realidade, os dois centros conjuntos que estruturam qualquer possibilidade de transformação histórica. Na tradição da ciência e política ocidental... a relação entre organismos vivos e máquinas tem sido uma guerra fronteiriça. O que está em causa nesta guerra são os territórios de produção, reprodução e imaginação."

sexta-feira, 14 de outubro de 2016

Ebooks: Os Sobreviventes

Quem está pronto para um conto em forma de diário? Confesso que este tipo de relatos me fascina.


Autor: Pedro Pereira
Sinopse: Um diário perdido de um médico encontrado num hospital de campanha abandonado revela uma macabra história de um acidente e do horror que se seguiu...


Somos catapultados para o centro da acção nas primeiras linhas. Creio que as missivas são demasiado curtas para criarem o suspense e tensão que este tipo de história merece. As descrições estão bem conseguidas. Gostaria que o autor tivesse explorado um pouco mais a causa disto, nem que fosse através de especulação da personagem principal. Em suma, um conto razoável com muito potencial para se tornar numa história por si mesma.
Recomendo quem gostar de um conto epistolar. 

Classificação: 3 estrelas

quarta-feira, 12 de outubro de 2016

Ebooks: A Barca

Uma homenagem actual ao conto de Gil Vicente.


Autor: Pedro Pereira
Sinopse: Um porto, duas barcas, uma leva ao inferno e a outra ao paraíso. Uma homenagem à obra de Gil Vicente, o Auto da Barca do Inferno.

Começando pelas personagens: muito actuais e muito bem escolhidas. Os estereótipos foram bem usados conseguido criar um efeito cómico. O autor podia ter usado mais algumas rimas para aumentar o efeito de comédia. Gostava que autor tivesse usado o formato de peça. Em suma, uma justa homenagem.
Recomendo a quem queria relembrar esta famosa sátira social.

Classificação: estrelas

segunda-feira, 10 de outubro de 2016

Ebooks: A Faca

O Fantasy and Co acaba de ganhar um novo autor residente.


Autor: André Alves
Sinopse: Rui, um jovem residente na ilha turística, que serve de paragem para quem parte para as estações espaciais, vê-se a ter visões demasiado realistas da morte do seu melhor amigo Gonçalo. Morte essa causada por si, num ato de fúria. Mas tal como vê a morte do amigo, vê-lo a passear vivo como se nada se passasse...


É sempre um prazer conhecer um novo autor, para mais quando ele ainda está a dar os primeiros passos. A trama é um pouco confusa, mas acabamos por perceber que é intencional. Quanto mais nos aproximamos do final, mas vai crescendo um nervoso miudinho de não sabermos ao certo o que está a acontecer. Gostava que o autor tivesse desenvolvido mais as personagens. O mundo criado não tem grande relevância na história, mas a temática de universos paralelos torna tudo muito mais interessante. Nada a apontar às descrições. Em suma, é um bom conto se tivermos em conta que são os primeiros passos deste autor.
Recomendo a quem quiser conhecer e apoiar um promissor e jovem escritor.

Classificação: 3 estrelas

domingo, 9 de outubro de 2016

Chá de Domingo #95: Ainda Sobre o Cyberpunk - Parte 4/5

Nesta série de artigos estou a explorar a essência e a origem do cyberpunk. Podem ler a primeira parte aqui, a segunda aqui e a terceira aqui.


"O que muita gente se esquece... é que o futuro de gancho de açougue sombrio não é um pós-apocalipse ao estilo de Mad Max, em que todos andam aos tiros uns aos outros protegidos em armaduras feitas de pneu de tractor e roupas Wilson's Leather que sobrarem. Esse futuro - imaginado por muitos como um antídoto para os espetaculares futuros cromados do Star Trek e da ficção cientifica inflexível dos anos 50 - é, de facto, inteiramente ridículo e bastante improvável assim como qualquer palermice em forma de fetiche tecnológico que os transhumanistas se lembrarem. É uma fantasia machista pelos libertários que secretamente rezam para que os pobres se revoltem e iniciem uma guerra para que os seus amigos que se parem de rir do facto de terem um arsenal de armas automáticas ao lado do seu Lexus na garagem do enclave dos subúrbios."
- Jushua Ellis

"Bem-vindo ao futuro J.G. Ballard - que rapidamente se torna um consenso pelo seu próprio mérito - onde o futuro é essencialmente banal. De momento, é a opinião mais sensata a ter. Um escritor chamado Venkatesh Rao usou recentemente o termo 'normalidade em série' para descrever isto. Tudo está pensado para activar a disposição psicológica para acreditar que nós vivemos num presente estático e aborrecido. Intemporalidade é a condição (dominante) do início do século XXI... Através da normalidade em série ninguém vence porque todos ficam adormecidos e a realidade nunca será melhorada. Mas vou sugeri-vos algo. Todas as teorias de normalidade em série e história zero podem ser destruídas por uma única coisa: olhar em volta."

"Se o futuro está morto, então temos de o invocar e aprender como vê-lo correctamente. Não se pode ver o presente em condições através do retrovisor porque ele está à frente. Hoje há seis pessoas a viver no espaço. Há pessoas a imprimir protótipos de órgãos humanos e pessoas a imprimir nanofio biológico que se ligará ao tecido humano. Já fotografamos a sombra de um único átomo. Temos pernas robóticas controladas por ondas cerebrais. Exploradores já estiveram no local insubmerso mais fundo da terra - uma cave a mais de dois quilómetros de profundidade abaixo de Abkhazia. A NASA está a preparar-se para lançar três satélites do tamanho de uma chávena de café que serão controlados por uma aplicação de smartphone. Voyager One está a mais de onze mil milhões de milhas de distância e o seu computador de 64K com fitas magnéticas de oito pistas ainda está funcional."
Warren Ellis

Podem encontrar a quinta e última parte aqui.

sexta-feira, 7 de outubro de 2016

Rios de Sangue - Parte 1/2

O dia estava calmo e o sol perto do Zénite. Para além do bombardeamento matinal e alguns tiros de aviso, não acontecera nada digno de nota. Para Roberto, fulcral era manter a cabeça abaixo da linha do solo. Tudo o resto eram detalhes.
Não havia muito para fazer, por isso, dedicou-se a desmontar e limpar a arma. O maior inimigo tinha duas armas: a morte e o aborrecimento. A transição entre uma e outra era brusca e nefasta. Tanto passavam dias aninhados naquelas poças de lama a morrer de doenças tratáveis, como em semanas de combates intensos. Uns e outros vinham e iam sem qualquer aviso. A fome e o sono eram como a paisagem, contribuíam só para o desconforto geral e já ninguém se queixava deles.
O som da metralhadora quebrou a monotonia e não anunciava nada de bom. Voltou a montar a arma e a carregá-la o mais rápido que pôde. Tinham sido eles a disparar, o que significava que o inimigo estava de novo a tentar atravessar o rio.
― E aqui vamos de novo ― comentou Igor, que se aninhara a seu lado.
Mais disparos. Ambos sabiam que não era boa ideia espreitar. Ao contrário de alguns, eles tinham tido miolos suficientes para não perderem a cabeça desse modo.
― O que se passa? ― gritou para os colegas da trincheira ao lado.
― Mais um ataque, nada de especial ― respondera-lhe de imediato.
O morteiro caiu a uns passos deles. A onda de choque derrubou-o, fazendo-o cair na lama. Um zumbido persistente apoderou-se-lhe dos ouvidos. Uma inspecção rápida mostrou-lhe que não estava ferido. Umas quantas assim e ficaria surdo. Igor já se havia recomposto. O Zé vinha da latrina e o Fábio do abrigo.
― Onde é que vocês estavam? Já perderam o início do fogo-de-artifício ― gozou Igor, atirando um murro no ombro do Zé.
Estes vinte metros estavam por conta deles. À frente ficava a terra de ninguém. Vinte metros de desolação até ao rio. As ordem eram simples: acontecesse o que acontecesse, nenhum inimigo podia jamais desembarcar.
As munições de artilharia continuavam a chover por ali. Umas mais perto que outras. Se tivesse escolha, preferia ficar nos abrigos individuais, onde o risco de ser atingido era mínimo. Eles separaram-se, indo cada um para o posto, uma saliência na vala. Por esta altura, já Igor estaria a usar o seu espelho para ver quem lá vinha. Olhou para arma. Esta lata podia ser do tempo da União Europeia, mas ainda funcionava bem. A primeira vez que encravasse podia ser o último dia da sua vida.
― Más notícias, pessoal. Eles estão a levar barcos até à praia. Não tarda que tentem atravessar ― gritou Igor, fazendo-se ouvir por cima do barulho dos disparos.
Ao longo dos anos, tinham havido centenas de investidas de ambos os lados, todas com o mesmo resultado: nenhum. Não fazia diferença quantos homens e recursos usavam. Ser destacado para um ataque era uma sentença de morte. Tanto que a expressão, que te escolham para a próxima investida, já se tornara um dos piores insultos. O pior eram os bandos de corvos que se banqueteavam nos corpos abandonados na terra de ninguém. O croquitar constante afectava até mesmo os que tinham nervos de aço.
Apesar de estarem no meio de uma ofensiva, a maior parte do tempo só podiam esperar. Uns segundos de acção e estava tudo acabado, de uma maneira ou de outra.
Outro salvo de artilharia atingiu as posições. Um dos projécteis caiu tão perto que sentiu a onda de choque nos ossos. O zumbido nos ouvidos parara por completo. Não ouvia nada. Apercebeu-se que aquilo explodira na borda da trincheira. Era raro acontecer e nada bonito de ver. O coração falhou uma batida. Caíra perto do Igor. A terra desabara naquele ponto, misturada com pedras. Viu Fábio do outro lado. Onde estava o Zé? Distinguiu um braço mutilado no meio do solo. Aproximou-se, percebendo que o resto do dono já não estava presente. A pouco foi encontrando outros pedaços ali perto. Igor não tinha salvação. O Fábio estava tentar desenterrar algo. Foi ajudá-lo. O Zé estava bastante maltratado, mas vivo. Trocou um olhar com Fábio. Ambas as alternativas eram arriscadas.
― Eu levo-o ― ofereceu-se Roberto.


Podem encontrar a segunda parte deste conto aqui.

Este conto foi publicado originalmente no Fantasy & Co.

quarta-feira, 5 de outubro de 2016

Ebooks: Dispersão

E vou-me aventurar uma vez mais pela poesia!


Autor: Mário de Sá-Carneiro
Sinopse: Um pouco mais de sol — eu era brasa,
Um pouco mais de azul — eu era além.
Para atingir, faltou-me um golpe d’asa…
Se ao menos eu permanecesse aquém…

Assombro ou paz? Em vão… Tudo esvaído
Num baixo mar enganador d’espuma;
E o grande sonho despertado em bruma,
O grande sonho — ó dor! — quasi vivido…

Quasi o amor, quasi o triunfo e a chama,
Quasi o princípio e o fim — quasi a expansão…
Mas na minh’alma tudo se derrama…
Entanto nada foi só ilusão!

De tudo houve um começo… e tudo errou…
— Ai a dor de ser-quasi, dor sem fim… —
Eu falhei-me entre os mais, falhei em mim,
Asa que se elançou mas não voou…

Momentos d’alma que desbaratei…
Templos aonde nunca pus um altar…
Rios que perdi sem os levar ao mar…
Ânsias que foram mas que não fixei…

Se me vagueio, encontro só indícios…
Ogivas para o sol — vejo-as cerradas;
E mãos d’herói, sem fé, acobardadas,
Puseram grades sobre os precipícios…

Num ímpeto difuso de quebranto,
Tudo encetei e nada possuí…
Hoje, de mim, só resta o desencanto
Das coisas que beijei mas não vivi…

. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .
. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .

Um pouco mais de sol — e fora brasa,
Um pouco mais de azul — e fora além.
Para atingir, faltou-me um golpe d’asa…

Se ao menos eu permanecesse aquém…


Ao longo das curtas páginas deste livro, que foi, na maioria, escrito no espaço de uma semana, fica-nos o desespero do poeta. Procura-se e não se encontra e volta-se a perder em si mesmo. Mário de Sá-Carneiro escreveu-o com 22 anos, uns meros 3 anos antes de suicidar. Estes versos já mostravam os dilemas e o estado de profunda depressão do poeta. Por isso, não é uma leitura leve. A poesia não se mostra com grandes artifícios, no entanto a cadência transmite parte do desespero ao leitor.
Recomendo a quem quiser conhecer um dos autores mais influentes do início do século XX, da geração d'Orpheu, assim como como Almada Negreiros e Fernando Pessoa.

Classificação: 4 estrelas

segunda-feira, 3 de outubro de 2016

Ebooks: Dá-me o Nome

Para quem gosta de contos de visita ao Outro Lado...


Autora: Inês Montenegro
Sinopse: A paisagem do Gêres pouco tem de desconhecido a Denise. Mas após tantos anos, o nome dele ainda lhe é vedado, e o crime dela pouco esquecido.


Apesar do início estar um pouco murcho, depressa a história impõe um bom ritmo. A ligação à  personagem principal é fácil. Uma das personagens secundárias deveria ter sido mais explorada para que o final fizesse um pouco mais sentido. As descrições estão boas, mas gostava que a autora tivesse mostrado um pouco mais do Outro Lado. A trama mantêm o leitor agarrado até à última página, culminando num final previsível mas recompensante. Em suma, um conto que irá entreter a  maioria dos leitores, incluindo os mais exigentes.
Recomendo vivamente a quem gostar desta temática e/ou quero conhecer melhor o trabalho desta jovem promessa nacional.

Classificação: 4 estrelas

domingo, 2 de outubro de 2016

Chá de Domingo #94: Ainda Sobre o Cyberpunk - Parte 3/5

Vou continuar a explorar a génese e essência do cyberpunk. Podem ler a primeira parte do artigo aqui e a segunda aqui.


"Há muita frieza no cyberpunk, mas é uma frieza honesta. Há êxtase, mas também terror... Esta geração terá de assistir a um século de desperdício e de descuido chegar aos limites, e todos sabemos disso. Nós teremos sorte em não sofrer a maioria das consequências devidas às atrocidade ecológicas cometidas; nós teremos imensa sorte em não ver milhões de humanos morrerem atrozmente na televisão enquanto nós, os ocidentais, ficamos sentados nas nossas salas de estar mastigando os nossos cheeseburgers. E isto não é uma excêntrica lamentação Boêmia; isto é uma afirmação objectiva acerca da condição do mundo, facilmente confirmada por quem tiver coragem para olhar para os factos. Esta prospectivas devem e tem que afectar os nosso pensamentos e expressões e, sim, as nossas acções; e se os escritores fecham os olhas a isto, então podem ser animadores, mas não estão aptos a serem chamarem-se a eles mesmos escritores de ficção científica."

"Cyberpunk foi atropelado na super auto-estrada da informação dos anos 90. Nem mais, nem menos. Bruce Sterling declarou-o mais ou menos morto em 1985, e estava certo; como movimento dentro a ficção cientifica o seu trabalho estava terminado. O mundo em que vivemos é o futuro do cyberpunk dos anos oitenta. Não é necessariamente uma coisa boa."

"Os meus amigos que trabalham na aeroespacial dizem-me que os veteranos que construíram a industria cresceram a ler Heinlein e Clarke, e foram para a aeroespacial para tornar essas coisas malucas que leram enquanto garotos em realidade como adultos. Bem, eu trabalho em supercomputação, e posso assegurar que esta industria está cheia de génios jovens que cresceram a ler Gibson, Vinge e Rucker - e sim, a mim - e vieram para este ramo pela mesma razão. Nós não vivemos no mundo que a ficção cyberpunk previu. Mas, vivemos num mundo que as crianças que cresceram a ler cyberpunk construíram, e isso é algo sem dúvida espectacular."

"Para mim, enquanto criança, ler cyberpunk era como ver o mundo pela primeira vez. O Neuromancer de Gibson não era só estonteante em termos estilísticos; parecia uma molde para o futuro que estávamos a construir. Eu lembro-me de ler Islands de Sterling na internet e, de súbito, perceber o potencial disruptivo da tecnologia assim que o acesso a ela se torna comum. O ciberpunk estava à porta. Não é o futuro a um quarto de hora daqui - é um futuro que te arrasta e te deixa num molde de corpo inteiro à sua passagem. Há uma necessidade enorme de corrigir a sua trajectória. A ficção cientifica perdeu a ligação à realidade. Os seres humanos não vão para a Lua, estamos a tornar-nos digitais. Alguém precisa de agarrar o género pelos colarinhos e puxa-lo - forçar os escritores a olharem para o presente e decifrar as suas implicações."

"O futuro encontra-se dividido; o futuro adorável e isolado que Joi Ito, Cory Doctorow, eu e tu habitamos, e o futuro gancho de açougue sombrio que a maior parte do mundo enfrenta, no qual eles veem os seus campos ocupados e sub-desenvolvidos tornarem-se num jogo gigante de Counterstrike entre filhos da puta jihadistas malucos religiosos e filhos da puta rednecks malucos religiosos Americanos, ambos fazendo o seu melhor para tornar o mundo inteiro num tipo de pesadelo fascista ou noutro. Claro que ninguém quer falar sobre o futuro, porque é deprimente e não é divertido quando não tens Fischerspooner a fazer a banda sonora."
- Joshua Ellis

Podem encontra a quarta parte desta série aqui.