― Oh raios! Já é a terceira bola que vai lá parar este mês ― resmunga, atirando um cachaço ao Alberto. ― E a culpa é tua! Podias ter mais cuidado! Amanhã trazes tu a bola!
Fábio sabia que não podia passar para o outro lado e muito menos ir brincar lá. Todos os pais eram unânimes. Acontecesse o que acontecesse, não poderiam passar para além do muro. Era perigoso. Infelizmente, ao lado ficava o único local onde ainda podiam jogar futebol depois da escola.
― Grande bola! Era só um rolho de trapos ― defende-se o Alberto, tentando devolver a agressão de um modo desajeitado.
― Não interessa, quem estraga velho, paga novo! Amanhã trazes uma bola! São as regras! ― impôs o rapaz.
Os colegas acenam o seu apoio.
― Sabem que mais? Vocês são uns mariquinhas, eu vou saltar ao muro e buscar a porcaria da bola.
― Não tinhas coragem! ― espicaça o Hugo, o mais gordo.
― Já vão ver se tenho ou não. Vou lá buscar a bola e vou agora. Vocês, como são uns mijões, podem ficar aí à espera.
Dito isto, eleva-se para o muro, com a ajuda dos braços, apoiando os cotovelos e alçando uma perna. No instante seguinte desaparece do outro lado. Os colegas não deixam escapar o desafio e sobem também ao muro. Vêem a mesma imensa área que ninguém pisara durante mais de uma década. A erva crescia frondosa e pequenos arbustos tomavam conta do local. Já o tinham observado várias vezes, mas nenhum tivera a coragem de descer para o outro lado.
No meio da vegetação, Fábio procura a bola.
― Nunca percebi porque é que os adultos não nos querem aqui – questiona-se o Hugo. ― Isto é um sítio porreiro para tanta coisa!
― Se calhar havia aqui alguma coisa má e agora já não há – deduz o Paulo.
― Talvez, talvez…
― Olhem, o Alberto está lá em baixo e ainda não lhe aconteceu nada. Não podemos ficar aqui e deixar que ele goze connosco ― constata o Fábio.
O grupo salta para a terra de ninguém. Assim que pisam o tapete verde, riem-se. Iriam ter uma história para contar aos colegas no dia seguinte. Os mais velhos iam roer-se de inveja. Iriam ser os heróis da escola.
― Eu ouvi dizer que aqui foi a linha da frente durante a Grande Guerra Europeia, eles nunca conseguiram entrar no Porto ― explica o Carlos.
― Tchii, isso já foi há mais de dez anos. Será que há armas por aqui perdidas? ― imagina o Paulo.
― Às tantas…
― Se houver, eu aposto que…
Uma explosão corta o ar. O impacto da onda de choque é imediato. Os ouvidos ficam a zumbir. Vêem pedaços de terra, vegetação, e não sabem bem mais o quê, voar. Ouvem gritos estridentes. A trupe corre na direcção do som, detendo-se a alguns metros do amigo.
O choque é tal, que correm na direcção oposta. Nenhum deles hesita em abandonar Alberto. O único pensamento é galgar o muro em direcção à segurança. Ninguém jamais iria esquecer do corpo mutilado e desfeito do amigo.
Durante outra geração ninguém iria passar para além do muro.
Este conto foi originalmente publicado no blogue Fantasy & Co.
Gostei. Muito bom. Parabens!
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