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quarta-feira, 30 de dezembro de 2015

O Guia - Parte 4

Podem encontrar a primeira parte do conto aqui, a segunda aqui e a terceira aqui.

“Mas aquele que as ouve, e não as observa, é semelhante a um homem que edificou uma casa sobre a terra sem alicerces; na qual a torrente deu com ímpeto, e logo caiu; e foi grande a ruína daquela casa.”
Lucas 6, 49

Desceu pelo caminho, aproveitando o sol matinal. Parou antes da curva que dava acesso ao acampamento. Inspirou de um modo profundo. Eram vidas que estavam em jogo, não podia falhar. Ao aproximar-se das tendas, já os nativos tinham dado pela sua presença. 
- Povo da floresta, chegou a vossa hora - clamou, estendendo os braços. - Venham comigo e serão salvos.
Os adultos olharam-no e um dos homens deu um passo em frente.
- Nós não queremos a tua ajuda. Nós somos felizes e livres aqui - declarou.
Já recebera respostas iguais. Não havia dúvidas na voz. No entanto, não queria baixar os braços.
-Há um inimigo poderoso que pode atacar a qualquer momento. Eu já os vi assim como a destruição que são capazes de fazer…
O homem trocou um olhar com o outro adulto.
- Nós somos fortes. Nós podemos combatê-los.
Amir notou, pela primeira vez, agressividade na expressão. Deixara de ser bem-vindo ali. Vislumbrou as armas, lanças primitivas. Não teriam hipótese. A sua missão falhara. Esperava-o uma longa viagem com apenas os seus demónios pessoais como companhia.
Poderia insistir, mas as forças faltavam-lhe. A velhice e o cansaço tomaram conta dele. Deixou de conseguir estar direito, encurvando-se e tomando apoio no cajado. Saber o destino que os aguardava, não ajudava em nada. Virou as costas e recomeçou a subir a colina.
A meio da subida, uma corneta fez-se ouvir em todo o vale. O coração falhou-lhe uma batida. Este era o som dos seus pesadelos. Desceu de volta o mais rápido que conseguiu, perdendo o fôlego. Não havia tempo a perder, eles poderiam chegar ali a qualquer momento. Quando chegou às habitações, viu que estavam num estado de aflição. Talvez fosse disto que precisavam para serem convencidos.
-O inimigo vem aí! Precisamos de fugir - suplicou-lhes.
Ninguém sequer olhou para ele. Notou que estavam a arrumar as suas coisas. O som repetiu-se, ecoando nos montes. Não os conseguia ver. Talvez ainda estivessem longe, mas a corneta significava que já tinham sido avistados.
- Têm de fugir agora! Eles podem chegar a qualquer momento!
As palavras já não tinham qualquer efeito. Encostou-se à árvore mais próxima e deixou-se deslizar até ao chão. A humidade começou a turvar-lhe os olhos. O destino deles estava traçado. O resto das forças abandonou-o. Sabia que cada segundo que perdesse ali diminuía as suas possibilidades de sobrevivência.
Já escapara outras vezes, para mais tarde voltar e não encontrar um único sobrevivente. Os corpos mutilados acompanhavam-no para onde quer que fosse, em especial quando estava sozinho. Os seus erros perseguiam-no. Ergueu-se com dificuldade e embrenhou-se pelo monte, sem se preocupar com os arranhões que os arbustos lhe causavam. As pernas ameaçavam deixar de responder a qualquer momento e os pulmões ardiam com o esforço.
Fez uma pausa a meio da encosta, apercebendo-se de que os nativos ainda se encontravam na aldeia. Nesse momento, os cavaleiros entraram no acampamento. Os dois homens foram atingidos por flechas. Os guerreiros estavam cobertos por uma armadura completa, que não deixava sequer ver a face. As armas estavam longe de ser primitivas. A mulher que parecida com Shira foi trespassada por uma lança. Os gritos preenchiam o ar, só abafados pelos cascos dos cavalos. Não conseguiu olhar mais. Não tardaria que os cavaleiros iniciassem as buscas nos bosques mais próximos.


Amir afastou-se dos caminhos trilhados. Ao longe os sons iam-se desvanecendo. A subida transformou-se em descida. Os joelhos suplicavam-lhe que parasse. Um grito mais profundo trespassou o ar. Era uma das mulheres. Ao pensar nas crianças, um arrepio subiu-lhe pela espinha.
E nesse momento sentiu uma dor lancinante no peito. Parou. Tentou agarrar-se ao tronco mais próximo mas os dedos não lhe responderam a tempo. Caiu no chão. Tentou inspirar. O ar não entrava. A dor espalhava-se pelo braço esquerdo. A visão turvou-se. O seu último pensamento foi para Bea.

segunda-feira, 28 de dezembro de 2015

O Guia - Parte 3

Podem ler a primeira parte deste conto aqui e a segunda aqui.

"É semelhante a um homem que, edificando uma casa, cavou, abriu profunda vala e pôs os alicerces sobre a rocha; e vindo uma enchente, deu a torrente com ímpeto naquela casa, e não a pôde abalar, porque tinha sido bem edificada."
Lucas 6, 48


- Filhos da floresta, ouçam o meu chamamento – gritou em plenos pulmões.
Já ninguém parecia interessado nele. Faziam as suas tarefas como se não estivesse ali. Nunca lhe havia acontecido que o ignorassem por completo.
- O momento esta a chegar em que eles virão pelos vosso filhos. Eu vi com os meus próprios olhos. Não haverá momento do dia ou da noite em que estejamos seguros. Eles vêm de qualquer direcção. Os seus números são imensos e as suas armas mortíferas.
Uma das mulheres escutava-o. Uma era quanto bastava. Uma pessoa e o grupo viria todo.
- Vi-os levarem filhos e mães. Matarem e comerem a carne. Carne humana. Levaram muitos mais para nunca mais os vermos. Eles são maus e violentos. Eles são a encarnação do mal. Sozinhos não os podeis parar. Vinde comigo e podereis viver na nossa cidade que é segura. As portas estão abertas para vós.
A mulher trocou um olhar com a que estava a seu lado.
- Povo da floresta, eu sou vosso amigo. Vi ter com vocês desarmado e com palavras de salvação. De vós, apenas quero que me sigam, não por mim, mas por vocês mesmos.
Não havia muito mais que podia dizer. Sentia que as dúvidas da mulher ainda eram demasiadas. Conhecia bem aquela expressão. Vira-a centenas de vezes. Teria de jogar a sua última cartada. Fitou as suas faces, compreendia as suas dores e problemas. Já os experimentara ele próprio. Esperava que eles compreendessem isso.
- A vossa existência é precária. A vossa comida não é certa, nem o vosso abrigo. Há animais que vos atacam. Há um frio do qual não conseguem escapar. As vossas crianças morrem antes de darem os primeiros passos. Ouçam filhos da floresta. Eu construí a cidade com as minha mãos e com as dos meus filhos. Criamos um lugar seguro onde não há fome. Queremos que vós partilheis desse paraíso. Queremos que se juntem a nós.
Parou. Já não havia mais nada para dizer. A face das mulheres traia uma reflexão profunda. Era bom sinal. Era hora de ir embora.
- Povo da floresta. Amanhã eu irei voltar. Os que quiserem, poderão seguir-me e eu vos levarei à segurança, à cidade onde nunca falta comida. Povo da floresta, ouçam, é uma amigo que vos fala.
Ainda última palavra ecoava nos montes, já Amir virara costas. Uma vez na encosta perdeu-se nos seus costumes. Adorava observá-los. A sua maneira pura e natural de viver a vida seria a melhor, não fosse o mundo estar a mudar.
As mulheres continuavam as suas tarefas. Pareciam conversar entre si. Talvez debatessem o que haviam ouvido. Esperava que sim. Os homens voltaram a meio da tarde. Haviam caçado algo grande. Noutras circunstâncias, Amir ficaria contente com o seu sucesso, contudo, neste caso não ajudava ao seu argumento. Pelo menos, haveria comida para todos.
Desviou o olhar para uma pequena planta que crescia ao lado. Tinha picos e era da mesma espécie que o arranhara no primeiro dia que vira o sol. Crescia apenas em solos férteis e as bagas escuras eram deliciosas e ricas. Lembrava-se desse dia como se tivesse acontecido ontem. Os sons, as cores, os cheiros, sabores e o tacto inundavam-no com sensações que julgara impossíveis. Dentro de si, crescia um desejo incontrolável. Era uma energia sem fim que se apoderava dele. Cada célula do seu ser exigia uma e só uma coisa. A culpa fora dele. Fora toda dele. Reconhecia que havia uma coisa boa na sua idade, há mais de dez anos que não procurava parceira. Duvidou que conseguisse resistir se encontrasse uma e ela o deixasse. Podia suportar muitas privações e desconfortos, mas essa dor estava para além do seu ser.


Voltou a focar-se na aldeia. A mulher que duvidara fazia-lhe lembra Bea. A sua doce Bea. Tinha os mesmos traços embora fosse mais madura. Era mais velha do que a sua irmã e amante, que morrera a dar à luz o segundo filho. Ambas as crianças, de olhar e corpo disforme tinham também perecido. Apertou um ramo da planta, deixando que os espetos se enterrassem na carne. Um fio de sangue percorreu o fundo do punho velho e calejado, começando a alimentar o solo. Havia dias que necessitava de dor física para acalmar o sentimento de culpa. O braço começou-lhe a tremer. Relaxou a mão e abriu-a. Tinha quatro buracos na palma. Afastou-se uns passos, procurando as folhas que podiam curar os ferimentos. Quando as encontrou, mascou-as e usou a pasta resultante para cobrir os cortes.
Apoiou-se na árvore e deixou-se deslizar até ao chão. Encoberto pelos arbustos, ninguém o poderia ver ali. O nó na garganta era grande e as lágrimas teimavam em não sair. Deixou que a noite caísse. Não quis sair dali, nem sequer para observar o acampamento. Não tinha vontade para se mover sequer, mas a dança de pensamentos não o deixou dormir. Quase que nem sentia a temperatura a descer. Bea. Era o seu dever protegê-la e acabou por ser ele o carrasco. À medida que os anos passavam essa noção perseguia-o cada vez com mais vigor. O cerco apertava-se a cada dia. Nesses momentos tinha receio que a sua mente falhasse primeiro que o seu corpo.
A madrugada encontrou-o com os músculos doridos e frios. Nada disso o incomodou. Tinha uma missão importante a cumprir. Era hora de ir buscar a tribo para a civilização.

Podem ler a última parte deste conto aqui.

quarta-feira, 23 de dezembro de 2015

O Guia - Parte 2

Podem ler a primeira parte do conto aqui.

"Todo aquele que vem a mim e ouve as minhas palavras e as observa, eu vos mostrarei a quem é semelhante."
Lucas 6, 47

Ainda era noite cerrada quando Amir despertou. Doía-lhe o corpo, em especial as costas. Não era o modo mais confortável de dormir. Desceu com cuidado. Os ossos estalavam a cada movimento. Tinha uma ligeira dor de cabeça. Era uma boa hora para ir procurar alimento. O luar abundante ajudava-o na tarefa. 
Na clareira que encontrou à frente, consumiu as pétalas retraídas das flores de Verão. Algumas folhas eram comestíveis, mas o estômago pedia mais. A sua vista podia já não ser o que era, mas conseguiu distinguir uma árvore na orla. Os seus frutos arredondados eram raros mas nutritivos. Aprendera isto ao longo da vida. Aproximou-se, constatando que nem precisava de subir para os conseguir colher. Comeu quantos quis.
Todavia, o homem não fora feito para morar na floresta. O seu habitat era a cidade. Como fora antes do cataclismo. Ultimamente, já ninguém falava nele, parecia que o tinham esquecido. Haviam passado cento e dois anos e Amir não tinha esquecido. Às vezes encontrava restos das cidades antigas, cobertas de vegetação. Em algumas não sobrava muito, fruto da arma que a humanidade jamais deverá construir de novo. Havia, no computador planos para o fazer. Não os compreendera e, no fim, decidira apagá-los de vez. Acontecera no dia depois da morte de Vera.
Cada vez que a recordava, era como se lhe arrancassem um pedaço do coração. Ela dera-lhe oito filhos, dos quais cinco ainda se contavam entre os vivos, só para um vómito terrível a levar. O único consolo que tinha é que ficara com ela até ao fim. Nestes momentos, recordar a cidade ajudava-o a desviar a mente do pior. Não era tão grande como as de outrora. Talvez os antigos não lhe chamassem sequer cidade. As casas eram de pedra, com telhados sólidos e lá viviam quase trezentas pessoas. Todos os anos nasciam duas ou três dezenas de crianças. Os campos em redor eram férteis e a muralha já os protegera da ameaça três vezes. Um monte de pedras e um portão de madeira era tudo o que havia entre eles e a morte. Era o preço que haviam pago por se tornarem sedentários. Era o preço a pagar pela civilização.
O céu começou a clarear. Era a hora de voltar a falar com eles. Desceu a encosta, aproximando-se da aldeia como se lá morasse. Sentiu as palmas das mãos suarem. Sabia que não era a vida dele que estava em jogo mas isso não deixava relaxar. Chegou antes do nascer do sol, enquanto despertavam. As mães dormiam com os filhos em seu redor. As crianças estava magras, mas pareciam saudáveis. Nestas condições, só os mais fortes sobrevivem.



- Filhos da floresta, ouçam a minha mensagem – clamou, com todo o seu ser. - O momento está perto. Ouçam a minha mensagem e viverão. Ignorem-na e serão tragados pela terra, vós e os vosso filhos. Ouçam-me, o momento está perto. Partam comigo, deixem tudo para trás se quereis viver.
As faces fitavam-mo com surpresa, mas a excitação do dia anterior já não existia. Não era um bom sinal. Não percebia porquê é que resultara tantas vezes e depois ficara mais e mais difícil. Preocupava-o saber que o mundo estava a mudar de maneiras que não compreendia.
- Que é ele? - ouviu uma das mulher perguntar.
Até a ouvir, tivera dúvidas de que falassem a mesma língua. Não era comum, mas j+a lhe acontecera. Teria de insistir. Teria de os fazer ver.
- Se quereis que os vossos filhos e filhas vivam, terão de vir comigo. Que ficar irá morrer.
Os olhares ficaram desconfiados. Amir achou que era melhor deixá-los por agora. Voltou ao seu refugio devagar, parando sempre que encontrava algo comestível. Sentia-se cansado. Não podia ficar mais do que um dois dias. Se eles não viessem, teria de os abandonar ao seu destino certo e sangrento. Estremeceu ao pensar nisso. Apesar de tudo, ele não mereciam isso. Ninguém merecia isso. Não tinha palavras para descrever os horrores que havia presenciado.
Vagueou, até encontrar um curso de água onde matou a sede. Voltou ao seu posto e ficou a mirá-los. Havia um par de peles maiores a secar ao sol. Era impressionante terem conseguido matar um animal tão grande com as suas armas primitivas. Talvez o tivessem encontrado morto. Os dois homens, os prováveis pais daquela prole, saíram com as suas lanças pouco depois. Será que sabiam que havia cada vez menos animais? O cataclismo também os havia dizimado. Havia alguns que já não via há mais de dez anos. Sem sabe se já teriam morto o último. Por isso é que a agricultura era a única forma subsistência. Tudo o resto estava condenado ao fracasso.
Olhou-os com ternura no olhar. Lembravam-lhe os seus filhos. De certo modo, se o seguissem, seriam seus filhos. Iriam renascer para uma vida melhor.
O calor aumentava, de modo que procurou a sombra de uma árvore. Mesmo ali, as gotículas de água formavam-se na sua testa. Sentia-se indolente. Acabou por adormecer.
O sonho levou-o à cidade. As muralhas tinham desaparecido. Eles vinham aí. Ordenou que se trancassem nas suas casas. As portas e as paredes eram massivas. Estavam assustados. Tentou confortá-los, para descobrir que nem sequer o ouviam. As crianças choravam e os adultos abraçavam-nas. Então algo começou a embater contra a porta. O barulho era ensurdecedor. Não se conseguia mexer. Tentou dar ordens, descobrindo que ficara sem voz. Ninguém procurava a sua ajuda sequer, como haviam feito nos últimos vinte e tal anos. As pancadas aumentavam de intensidade. A madeira começou a rachar, como se de simples galhos se tratasse. A porta desabou num estrondo e eles entraram.
Acordou sobressaltado. Estava banhado em suor. Apercebeu-se que tremia. Na sua cabeça sabia que era um sonho, mas parecia-lhe tão real. Tanto pelo que sabia, podia estar a ocorrer neste exacto momento.
Fraco mas determinado, levantou-se. Estava na hora de dizer à tribo aquilo que vira. Se isso não os convencesse, não saberia o que o poderia fazer.

Podem continuar a ler este conto nesta ligação.

segunda-feira, 21 de dezembro de 2015

O Guia - Parte 1

“Por que me chamais, Senhor, Senhor, e não fazeis o que vos mando?”
Lucas 6, 46

Quando o idoso chegou ao acampamento, todos se juntaram para o ouvir. Vinha descalço, coberto com uma manta grosseira. O cabelo era branco e longo, escasseando no topo. A barba tinha anos e formava emaranhados permanentes. O que eles não sabiam era que ele vagueara durante vários dias pelas florestas, só para encontrar este grupo.
Eram uns vinte, incluindo as crianças. Vestiam peles de animais e envergavam lanças primitivas. Assim que o avistaram, Amir sabia que tinha a sua atenção. Não recebiam muitas visitas. A sua excitação e nervosismo eram quase palpáveis. Era um bom sinal não se terem mostrado hostis.
— Povo da floresta – a sua voz trovejante assustou os mais novos que eram a maioria. — Ouçam o que vos digo! Estão a aproximar-se tempos de mudança e vós tereis de fazer uma escolha. — Parou para voltar a encher o peito de ar. – A escolha é simples: abandonar o vosso meio de vida primitivo e vir comigo para a civilização ou ficar e esperar que a decadência vos leve.
Como resposta, obteve apenas silêncio. Não iria ser fácil. Não era a primeira vez que interpelava os povos livres e, se tivesse forças, não seria a última. Virou costas e voltou para a floresta.
Ainda faltava um par de horas para o sol se pôr. Apesar de ter vivido numa cidade nos últimos anos, conseguia sobreviver melhor na floresta do que qualquer um dos membros desta tribo. À sua esquerda encontrou uma árvore com frutos comestíveis e foi dela que se alimentou. Olhou para as árvores, tentando escolher uma boa candidata para passar a noite. Não precisava de tenda enquanto houvesse um ramo que suportasse o seu peso. Também, na sua idade não precisava de um grande sono.
Os passos levaram-no à encosta da qual se podia ver o acampamento. Contou-os. Havia cinco adultos e catorze crianças. Teriam problemas genéticos se não se juntassem ao resto da civilização. Suspirou, deixando-se cair sobre a camada de folhas na sobra de um carvalho centenário. Ali não o podiam ver. Aliviado, deixou correr uma lágrima. E autorizou que outras a seguissem. As crianças faziam-lhe isso.
Obrigou-se a recompor-se depressa, não fosse o caso de algum dos nativos o ter seguido. Era interessante observar os seus costumes. Quase todos os grupos que encontrara eram caçadores recolectores. A ideia de agricultura ainda não tinha chegado a estes lados. Se não fosse o legado dos pais, não teria chegado à cidade. Não haveria cidade de todo.
Estão a empilhar lenha. É um bom sinal, devem conhecer o fogo, mas não o arco. Será um choque se se mudarem para a civilização, contudo o preço de ficarem é caro demais. Um dos mais velhos, usou um mecanismo que raspa madeira em madeira. Teria de ser paciente, constatou Amir. Apreciou uma das mulheres. Pele clara e cabelos negros longos e entrançados. Baixa, mas forte. Lembrou-lhe uma das suas esposas. Sentiu que lhe faltava um pedaço no peito. Fora a sua terceira mulher e perecera com uma febre. As doenças dizimavam-nos. Uma mãe que tivesse dez filhos iria morrer depois de enterrar pelo menos metade. Não havia explicação.
— Shira — murmurou, relembrando-se do nome.
O aperto no peito aumentou. Às vezes preferia não se lembrar. Desejava esquecer-se de quem era e deslizar para o nada sem dor nem arrependimento. Contudo, não o podia fazer. A Humanidade dependia dele, mais do que gostaria.
Finalmente o fogo ateou-se e as chamas ergueram-se. A caçada não havia sido numerosa. Três peças do tamanho de ratos era tudo o que iriam comer. Talvez tivessem encontrado alguma fruta, esperou. Ao início, aceitara muitas vezes a hospitalidade das tribos, até perceber que eles lhe estavam a dar aquilo que não podiam dar. A comida escasseava. A agricultura era uma questão de vida ou morte. Encenou mentalmente as palavras que lhes iria dizer amanhã. Já o fizera tantas vezes que perdera a conta, mas era sempre o mesmo desafio. Não os podia deixar ver o velho frágil que se escondia por detrás daquela voz poderosa.
Toda a tribo se reuniu em volta da fogueira. Trouxeram algumas folhas e uns frutos escuros. Um pouco melhor, mas não seria suficiente. O Inverno deve ser complicado. Estão a partilhar, uma qualidade importante.
Quis levantar-se, no entanto as pernas já não aguentavam como haviam aguentado antes. Ao mexer-se, sentiu os joelhos a estalar. Setenta e três anos era a sua conta. Vivera mais do que qualquer pessoa que conhecesse. Ainda se sentia com força para viver mais dez anos. Todavia, já vira jovens e vigorosos serem levados numa questão de horas. Malditas febres inexplicáveis. As pernas estavam dormentes e quando se tentou pôr de pé, sentiu fortes tonturas. Se calhar não comera o suficiente durante o dia. No entanto, o estômago parecia não aceitar mais nada. O sol punha-se, era altura de subir à árvore e encaixar-se o melhor que podia entre os ramos. Bastava uns metros acima do solo para a temperatura ser mais amena.
O esplendor avermelhado do pôr-do-sol foi um festim para a sua visão. A tribo ignorou-o por completo. Acontecia-lhes todos os dias. Amir não perdia um único, mesmo na cidade. Magicava se não era isso que o mantinha vivo. Depois de se encaixar entre os três ramos que o iriam suportar durante a noite, o último pensamento do dia foi aquela tribo de selvagens. Os tempos estavam a mudar e quem não mudasse com eles, iria perecer.



Podem continuar a ler este conto nesta ligação.

sexta-feira, 2 de outubro de 2015

O Jardim do Éden - Parte 2

Podem ler a primeira parte do conto aqui.

E o Senhor Deus fez brotar da terra toda qualidade de árvores agradáveis à vista e boas para comida,
bem como a árvore da vida no meio do jardim,
e a árvore do conhecimento do bem e do mal.
Génesis 2, 9



Olhou para o irmão.
― O que fizeste?
Ele olhou-a com um ar amedrontado.
― Nada, juro, nada! Estava aqui e a contagem começou.
― O que é que isto significa? ― insistiu, levantando a voz.
― Não faço ideia. Sei tanto como tu!
O olhar percorreu os monitores: todos tinham a mesma contagem decrescente excepto um. Tinha lá qualquer coisa escrita. Os dois irmãos aproximaram-se. A missiva estava assinada pelo pai e dizia-lhes que em breve a sua vida iria mudar. Tinha chegado o momento de lhes mostrar o passado e dava-lhes a palavra passe para desbloquear o computador central. Amir foi mais rápido que ela, apropriando-se da cadeira e introduzindo a palavra passe no terminal. As credenciais foram aceites, passando a ter privilégios de administrador. O barulho calou-se de imediato.
Bea deu uma volta à sala, tentando conciliar os factos na sua cabeça. Sobretudo não gostava do tom misterioso do pai. O nervosismo miúdo habitual ameaçava tomar conta dela.
― Olha o que eu encontrei! Há aqui milhares de ficheiros que estavam escondidos... ― anunciou Amir, bastante excitado.
Bea olhou para o monitor, onde uma parte da lista interminável preenchia todo o espaço. Os títulos eram um tanto crípticos. Havia um ficheiro para cada um dos que havia habitado ali. Eram perto de uma centena. Excepto eles os dois, todos tinham morrido e sido deitados no incinerador. Muitos também haviam nascido ali, mas os mais antigos não. Descobriram que Amir tinha dezasseis anos e Bea doze. Tudo aquilo era muito estranho.
A revelação apareceu-lhes como um choque. Há sessenta e cinco anos atrás, o mundo tinha sucumbido a uma guerra apocalíptica, que o tinha deixado devastado e incapaz de sustentar vida humana. Tinha havido uma noite total durante anos. Eles eram os bisnetos dos que se haviam refugiado no abrigo quando o cataclismo acontecera. As últimas linhas informavam que as portas estavam programadas para se abrirem quando os níveis de gases tóxicos e radioactividade fossem aceitáveis, ou seja, passado sessenta e cinco anos.
Os irmãos olharam-se, tentando captar as implicações. Quando aquela contagem decrescente chegasse ao fim, poderiam sair dali. Só tinham visto algumas imagens e filmes do mundo exterior. Sabiam que era imenso e pouco mais. Bea não conseguia decidir se estava excitada ou amedrontada com as possibilidades.
Ainda tinham algum tempo antes de as portas se abrirem. O resto dos ficheiros ensinava a caçar, fazer abrigos e outras coisas que não compreendiam para que serviam. Leram-nos a correr, saltando a maioria.
Os últimos cinco minutos passaram-nos em frente à porta blindada, como se pudessem fazer com que se abrisse mais depressa. Bea olhou para o irmão. Parecia determinado. Teve a certeza que ele não sentia os mesmos receios. Num impulso deu-lhe a mão, mexendo freneticamente os dedos dos pés.
As sirenes recomeçaram a apitar, estridentes, e as luzes vermelhas a piscar furiosas. Os segundos esgotavam-se. A contagem chegou a zero. As luzes e as sirenes desligaram-se. Não aconteceu mais nada. Olharam um para o outro. Amir tomou a iniciativa e puxou a alavanca da porta. À abertura da primeira frincha entrou uma porção de ar. As duas imensas lajes metálicas deslizaram com lentidão. Bea sentiu frio. Do fundo vinha uma luz azul e tudo o resto estava mergulhado na escuridão. Assim que a abertura era larga o suficiente, saíram os dois.
À direita e à esquerda algo se mexeu. Havia algumas plantas que trepavam pelas paredes. Bea demorou algum tempo a encontrar a palavra que definia o espaço: Hangar Subterrâneo. A luz exterior cegava-a. Não se comparava a nenhum dos filmes que tinha visto. As cores eram muito mais vivas. De mãos dadas, correram para o exterior.
Sob o céu azul, viram-se rodeados de vegetação. Mal podiam andar. Ouviu-se o canto de uma ave. Algo rastejou um pouco mais à frente. Havia tantas árvores e arbustos diferentes que não sabia os nomes de quase nenhuns. Havia também ervas e flores. Tudo entrelaçado e misturado. Um festim para o olhar. Os cheiros deixaram-na inebriada e os sons em êxtase. Tocou nas folhas, sentido-as vivas e frescas. Passou os dedos pelas suaves pétalas. Um insecto voador passou num voo rasante à sua cabeça. Cada planta tinha um cheiro único. Ao fundo via-se uma montanha. As nuvens do céu tinham padrões que lhe lembravam objectos. Avançaram, sem se importar com os arranhões. Ocorreu-lhe uma palavra capaz de descrever aquilo: paraíso.
Ao passar sobre uma planta espinhosa, reconheceram as bagas escuras.
― Sim Bea, são comestíveis, o pai ensinou-me ― confirmou Amir, retirando uma e levando-a à boca.
Ela fez o mesmo. O sabor era tão intenso e a textura era única. Era melhor que qualquer coisa que já comera. Mais à frente reconheceram outra árvore com frutos comestíveis. E assim foram andando, experimentado cada uma. Até os frutos amargos lhe eram agradáveis.
Quando chegaram à margem de um lago, Bea sentou-se numa pedra.
― Anda! ― pediu o irmão.
― Não posso, as pernas doem-me.
Nunca andara tanto em tão pouco tempo. Bea achegou-se à beira da água e bebeu. Ao erguer-se a mão de Amir tocou-lhe no ombro. Estremeceu. Os braços dele envolveram-na. O coração disparou. Sabia que era errado, mas não conseguia resistir-lhe. Havia algo dentro de si mais forte. Os pêlos do braço eriçaram-se. Os lábios de ambos tocaram-se, como muitas vezes tinham visto os pais fazerem. Por estranho que fosse, a boca dele sabia melhor que os frutos. Se calhar não é errado, pensou, enquanto as mãos do irmão desciam até à sua cintura. Um fervilhão de sensações assaltava-a a cada toque deles.
Despiram as roupas e exploraram-se mutuamente de um modo desajeitado. Inebriada com o odor, acariciou a barba que lhe crescia na face. Sentiu-se húmida. Hesitou e acabou por retrair a mão. Os dedos dele envolveram-lhe o seio direito. A sensação surpreendeu-a tanto que se deixou levar. A cada momento tensão crescia. Era viciante. Por fim, os corpos uniram-se num frenesim, num misto de dor e prazer que não conseguiam interromper. Sentiu contracções incontroláveis e uma sensação desconhecida atingiu-lhe a cabeça. Sentiu que algo era depositado dentro de si. Amir parou e deitou-se a seu lado.
As lágrimas começaram a correr-lhe pela face. Bea começou a chorar também. Abraçaram-se. Ambos haviam compreendido o que os pais não queriam que acontecesse. Ela lembrou-se da palavra que definia a situação: pecado.