quarta-feira, 30 de dezembro de 2015

O Guia - Parte 4

Podem encontrar a primeira parte do conto aqui, a segunda aqui e a terceira aqui.

“Mas aquele que as ouve, e não as observa, é semelhante a um homem que edificou uma casa sobre a terra sem alicerces; na qual a torrente deu com ímpeto, e logo caiu; e foi grande a ruína daquela casa.”
Lucas 6, 49

Desceu pelo caminho, aproveitando o sol matinal. Parou antes da curva que dava acesso ao acampamento. Inspirou de um modo profundo. Eram vidas que estavam em jogo, não podia falhar. Ao aproximar-se das tendas, já os nativos tinham dado pela sua presença. 
- Povo da floresta, chegou a vossa hora - clamou, estendendo os braços. - Venham comigo e serão salvos.
Os adultos olharam-no e um dos homens deu um passo em frente.
- Nós não queremos a tua ajuda. Nós somos felizes e livres aqui - declarou.
Já recebera respostas iguais. Não havia dúvidas na voz. No entanto, não queria baixar os braços.
-Há um inimigo poderoso que pode atacar a qualquer momento. Eu já os vi assim como a destruição que são capazes de fazer…
O homem trocou um olhar com o outro adulto.
- Nós somos fortes. Nós podemos combatê-los.
Amir notou, pela primeira vez, agressividade na expressão. Deixara de ser bem-vindo ali. Vislumbrou as armas, lanças primitivas. Não teriam hipótese. A sua missão falhara. Esperava-o uma longa viagem com apenas os seus demónios pessoais como companhia.
Poderia insistir, mas as forças faltavam-lhe. A velhice e o cansaço tomaram conta dele. Deixou de conseguir estar direito, encurvando-se e tomando apoio no cajado. Saber o destino que os aguardava, não ajudava em nada. Virou as costas e recomeçou a subir a colina.
A meio da subida, uma corneta fez-se ouvir em todo o vale. O coração falhou-lhe uma batida. Este era o som dos seus pesadelos. Desceu de volta o mais rápido que conseguiu, perdendo o fôlego. Não havia tempo a perder, eles poderiam chegar ali a qualquer momento. Quando chegou às habitações, viu que estavam num estado de aflição. Talvez fosse disto que precisavam para serem convencidos.
-O inimigo vem aí! Precisamos de fugir - suplicou-lhes.
Ninguém sequer olhou para ele. Notou que estavam a arrumar as suas coisas. O som repetiu-se, ecoando nos montes. Não os conseguia ver. Talvez ainda estivessem longe, mas a corneta significava que já tinham sido avistados.
- Têm de fugir agora! Eles podem chegar a qualquer momento!
As palavras já não tinham qualquer efeito. Encostou-se à árvore mais próxima e deixou-se deslizar até ao chão. A humidade começou a turvar-lhe os olhos. O destino deles estava traçado. O resto das forças abandonou-o. Sabia que cada segundo que perdesse ali diminuía as suas possibilidades de sobrevivência.
Já escapara outras vezes, para mais tarde voltar e não encontrar um único sobrevivente. Os corpos mutilados acompanhavam-no para onde quer que fosse, em especial quando estava sozinho. Os seus erros perseguiam-no. Ergueu-se com dificuldade e embrenhou-se pelo monte, sem se preocupar com os arranhões que os arbustos lhe causavam. As pernas ameaçavam deixar de responder a qualquer momento e os pulmões ardiam com o esforço.
Fez uma pausa a meio da encosta, apercebendo-se de que os nativos ainda se encontravam na aldeia. Nesse momento, os cavaleiros entraram no acampamento. Os dois homens foram atingidos por flechas. Os guerreiros estavam cobertos por uma armadura completa, que não deixava sequer ver a face. As armas estavam longe de ser primitivas. A mulher que parecida com Shira foi trespassada por uma lança. Os gritos preenchiam o ar, só abafados pelos cascos dos cavalos. Não conseguiu olhar mais. Não tardaria que os cavaleiros iniciassem as buscas nos bosques mais próximos.


Amir afastou-se dos caminhos trilhados. Ao longe os sons iam-se desvanecendo. A subida transformou-se em descida. Os joelhos suplicavam-lhe que parasse. Um grito mais profundo trespassou o ar. Era uma das mulheres. Ao pensar nas crianças, um arrepio subiu-lhe pela espinha.
E nesse momento sentiu uma dor lancinante no peito. Parou. Tentou agarrar-se ao tronco mais próximo mas os dedos não lhe responderam a tempo. Caiu no chão. Tentou inspirar. O ar não entrava. A dor espalhava-se pelo braço esquerdo. A visão turvou-se. O seu último pensamento foi para Bea.

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