“Por que me chamais, Senhor, Senhor, e não fazeis o que vos mando?”
Lucas 6, 46
Quando o idoso chegou ao acampamento, todos se juntaram para o ouvir. Vinha descalço, coberto com uma manta grosseira. O cabelo era branco e longo, escasseando no topo. A barba tinha anos e formava emaranhados permanentes. O que eles não sabiam era que ele vagueara durante vários dias pelas florestas, só para encontrar este grupo.
Eram uns vinte, incluindo as crianças. Vestiam peles de animais e envergavam lanças primitivas. Assim que o avistaram, Amir sabia que tinha a sua atenção. Não recebiam muitas visitas. A sua excitação e nervosismo eram quase palpáveis. Era um bom sinal não se terem mostrado hostis.
— Povo da floresta – a sua voz trovejante assustou os mais novos que eram a maioria. — Ouçam o que vos digo! Estão a aproximar-se tempos de mudança e vós tereis de fazer uma escolha. — Parou para voltar a encher o peito de ar. – A escolha é simples: abandonar o vosso meio de vida primitivo e vir comigo para a civilização ou ficar e esperar que a decadência vos leve.
Como resposta, obteve apenas silêncio. Não iria ser fácil. Não era a primeira vez que interpelava os povos livres e, se tivesse forças, não seria a última. Virou costas e voltou para a floresta.
Ainda faltava um par de horas para o sol se pôr. Apesar de ter vivido numa cidade nos últimos anos, conseguia sobreviver melhor na floresta do que qualquer um dos membros desta tribo. À sua esquerda encontrou uma árvore com frutos comestíveis e foi dela que se alimentou. Olhou para as árvores, tentando escolher uma boa candidata para passar a noite. Não precisava de tenda enquanto houvesse um ramo que suportasse o seu peso. Também, na sua idade não precisava de um grande sono.
Os passos levaram-no à encosta da qual se podia ver o acampamento. Contou-os. Havia cinco adultos e catorze crianças. Teriam problemas genéticos se não se juntassem ao resto da civilização. Suspirou, deixando-se cair sobre a camada de folhas na sobra de um carvalho centenário. Ali não o podiam ver. Aliviado, deixou correr uma lágrima. E autorizou que outras a seguissem. As crianças faziam-lhe isso.
Obrigou-se a recompor-se depressa, não fosse o caso de algum dos nativos o ter seguido. Era interessante observar os seus costumes. Quase todos os grupos que encontrara eram caçadores recolectores. A ideia de agricultura ainda não tinha chegado a estes lados. Se não fosse o legado dos pais, não teria chegado à cidade. Não haveria cidade de todo.
Estão a empilhar lenha. É um bom sinal, devem conhecer o fogo, mas não o arco. Será um choque se se mudarem para a civilização, contudo o preço de ficarem é caro demais. Um dos mais velhos, usou um mecanismo que raspa madeira em madeira. Teria de ser paciente, constatou Amir. Apreciou uma das mulheres. Pele clara e cabelos negros longos e entrançados. Baixa, mas forte. Lembrou-lhe uma das suas esposas. Sentiu que lhe faltava um pedaço no peito. Fora a sua terceira mulher e perecera com uma febre. As doenças dizimavam-nos. Uma mãe que tivesse dez filhos iria morrer depois de enterrar pelo menos metade. Não havia explicação.
— Shira — murmurou, relembrando-se do nome.
O aperto no peito aumentou. Às vezes preferia não se lembrar. Desejava esquecer-se de quem era e deslizar para o nada sem dor nem arrependimento. Contudo, não o podia fazer. A Humanidade dependia dele, mais do que gostaria.
Finalmente o fogo ateou-se e as chamas ergueram-se. A caçada não havia sido numerosa. Três peças do tamanho de ratos era tudo o que iriam comer. Talvez tivessem encontrado alguma fruta, esperou. Ao início, aceitara muitas vezes a hospitalidade das tribos, até perceber que eles lhe estavam a dar aquilo que não podiam dar. A comida escasseava. A agricultura era uma questão de vida ou morte. Encenou mentalmente as palavras que lhes iria dizer amanhã. Já o fizera tantas vezes que perdera a conta, mas era sempre o mesmo desafio. Não os podia deixar ver o velho frágil que se escondia por detrás daquela voz poderosa.
Toda a tribo se reuniu em volta da fogueira. Trouxeram algumas folhas e uns frutos escuros. Um pouco melhor, mas não seria suficiente. O Inverno deve ser complicado. Estão a partilhar, uma qualidade importante.
Quis levantar-se, no entanto as pernas já não aguentavam como haviam aguentado antes. Ao mexer-se, sentiu os joelhos a estalar. Setenta e três anos era a sua conta. Vivera mais do que qualquer pessoa que conhecesse. Ainda se sentia com força para viver mais dez anos. Todavia, já vira jovens e vigorosos serem levados numa questão de horas. Malditas febres inexplicáveis. As pernas estavam dormentes e quando se tentou pôr de pé, sentiu fortes tonturas. Se calhar não comera o suficiente durante o dia. No entanto, o estômago parecia não aceitar mais nada. O sol punha-se, era altura de subir à árvore e encaixar-se o melhor que podia entre os ramos. Bastava uns metros acima do solo para a temperatura ser mais amena.
O esplendor avermelhado do pôr-do-sol foi um festim para a sua visão. A tribo ignorou-o por completo. Acontecia-lhes todos os dias. Amir não perdia um único, mesmo na cidade. Magicava se não era isso que o mantinha vivo. Depois de se encaixar entre os três ramos que o iriam suportar durante a noite, o último pensamento do dia foi aquela tribo de selvagens. Os tempos estavam a mudar e quem não mudasse com eles, iria perecer.
Podem continuar a ler este conto nesta ligação.
Nenhum comentário:
Postar um comentário