Manuel desenhou as letras na folha.
Quatro de Março do ano da graça de 2032. Fixou o papel e as palavras não
lhe vieram. Pousou a caneta e levantou-se da cadeira, abandonando a
folha meio escrita, fruto das tentativas do dia anterior. De súbito, ao
voltear com a sua bengala no reduzido quarto nas águas furtadas, o
refúgio das duas últimas décadas pareceu-lhe uma prisão.
Mirou a porta por onde o filho lhe trazia
três refeições por dia, uma resma de papel e duas canetas por semana. O
olhar desviou-se para a janela, por onde observara as revoluções e
batalhas dos últimos anos sem grande interesse. Recusara televisão,
rádio e até mesmo jornais, ambicionando escrever a maior epopeia
portuguesa de sempre.
Largou os chinelos e procurou uns sapatos
no armário. Abaixou-se a custo, os joelhos e costas já não lhe
obedeciam como outrora. Removeu as teias de aranha da primeira caixa e
abriu-a, encontrando os seus velhos sapatos castanhos de camurça. Longe
estavam os dias em que leccionara literatura clássica na Universidade.
Num impulso, despiu a roupa gasta e tentou vestir o fato castanho que
usara diariamente. Ficava-lhe muito apertado, o que o surpreendeu, pois
não se sabia tão gordo. Completou a indumentária com a mesma gravata
azul escura de sempre.
Em passo decidido, aproximou-se da
entrada. A mão deteve-se ao tocar no puxador, apercebendo-se que não
sabia nada sobre o que estava para além da porta. Vieram-lhe à memória
os soldados e tanques na rua, os bombardeamentos nocturnos. Não fazia
ideia sequer se não haviam sido invadidos pela Alemanha e se ainda seria
possível falar português na rua. Sorriu e abanou a cabeça. Achou o
pensamento absurdo. Quando se decidira fechar ao mundo, Portugal
afundava-se com uma enorme dívida, mas com certeza não era razão
suficiente para que as pessoas falassem alemão na rua.
As falanges dos dedos fecharam-se em
torno do puxador. O trinco soltou-se e uma brecha surgiu. A porta
entreabriu-se lentamente. Nos últimos vinte anos, nunca fora mais longe.
Perdera a conta às vezes em que recuara com as escadas sombrias já à
vista. Empurrou a pesada estrutura de madeira e meteu o pé direito no
primeiro degrau. Os joelhos rangeram e uma dor atravessou-lhe a tíbia.
Segurou-se ao corrimão com a mão esquerda e apoiou a bengala. A custo
repetiu o processo, descendo lentamente até ao corredor mal iluminado.
As paredes cobertas com tinta amarela
meio descascada e adornadas por candeeiros que mais pareciam peças de
museu continuavam fiéis à sua memória. Avançou, tão rápido quanto a sua
condição lhe permitia, até ao lanço de escadas seguinte. Não encontrou
ninguém. Uma vez no rés-do-chão decidiu resistir ao impulso de bater à
porta do filho, dirigindo-se à entrada do prédio.
Ao pisar as lajes brancas, as pernas
começaram a tremer. Relembrou um dos primeiros dias de Janeiro de 2012
em que entregara uma pasta cheia de papéis ao filho.
― Deixei-te tudo como herança ―
dissera-lhe. ― Quero dedicar-me à escrita a tempo inteiro e só te peço
que me tragas comida três vezes ao dia, uma resma de folhas e duas
canetas por semana.
Ele lançara-lhe um olhar de incredulidade.
― Eu sei o que estás a pensar ―
interrompeu o seu descendente antes que este ripostasse. ― Não há nada
que me possas dizer que me irá convencer. A minha decisão é final!
De volta ao presente, atento à rua. E
pela primeira vez notou o silêncio. Esta parecia-lhe igual, com excepção
do tráfico. Não passava um único carro na que fora uma das avenidas
mais movimentadas do Porto.
Saiu. Os sapatos pousaram sobre a
calçada. O piso irregular trouxe-lhe sentimentos agridoces. Quisera ser o
maior poeta que Portugal alguma vez criara e acabara por se fechar
durante vinte anos. Não se conseguia reconhecer.
Caminhou pela rua. Havia poucos
transeuntes àquela hora e todos pareciam atarefados com qualquer
trabalho. Deviam ser umas nove da manhã e a maioria deveria estar no
trabalho. Saiu da sua rua, chegando ao que fora a rotunda da Boavista.
Piscou os olhos, deixando o maxilar descair: o monumento dera lugar a
sacos de areia empilhados que protegiam várias peças de artilharia.
Rapazes, pouco mais que garotos, estavam em sentido em frente às armas.
Um deles observava o céu com binóculos e o mais velho, que tinha uma
farda diferente, passava em revista a guarnição.
Havia algo de familiar naquela
organização. Já vira expressões semelhantes. Recordou-se então do dia em
que o pai o levara a ver um desfile. Talvez tivesse uns oito anos, não
sabia ao certo. Decerto acontecera no início dos anos setenta.
A rua estava cheia, todos queriam ver os
seus filhos. O membro mais avançado levava uma enorme bandeira de
Portugal. Todos caminhavam vestidos com os mesmos uniformes de aspecto
militar. Seria, provavelmente, uma das últimas pessoas vivas que
assistira a uma marcha da Mocidade Portuguesa.
Ao olhar para a instalação militar uma
lágrima correu-lhe pelo canto do olho. Nem sequer a bandeira hasteada no
ponto mais alto da base era a mesma. O escudo era semelhante, mas as
cores eram diferentes, apesar de estranhamente familiares. Branco e azul
claro.
― Galiza! ― exclamou, atraindo as atenções do pelotão.
Podem ler a segunda parte aqui.
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