segunda-feira, 16 de março de 2015

O Poeta - Parte 1 de 2

Manuel desenhou as letras na folha. Quatro de Março do ano da graça de 2032. Fixou o papel e as palavras não lhe vieram. Pousou a caneta e levantou-se da cadeira, abandonando a folha meio escrita, fruto das tentativas do dia anterior. De súbito, ao voltear com a sua bengala no reduzido quarto nas águas furtadas, o refúgio das duas últimas décadas pareceu-lhe uma prisão.
Mirou a porta por onde o filho lhe trazia três refeições por dia, uma resma de papel e duas canetas por semana. O olhar desviou-se para a janela, por onde observara as revoluções e batalhas dos últimos anos sem grande interesse. Recusara televisão, rádio e até mesmo jornais, ambicionando escrever a maior epopeia portuguesa de sempre.
Largou os chinelos e procurou uns sapatos no armário. Abaixou-se a custo, os joelhos e costas já não lhe obedeciam como outrora. Removeu as teias de aranha da primeira caixa e abriu-a, encontrando os seus velhos sapatos castanhos de camurça. Longe estavam os dias em que leccionara literatura clássica na Universidade. Num impulso, despiu a roupa gasta e tentou vestir o fato castanho que usara diariamente. Ficava-lhe muito apertado, o que o surpreendeu, pois não se sabia tão gordo. Completou a indumentária com a mesma gravata azul escura de sempre.
Em passo decidido, aproximou-se da entrada. A mão deteve-se ao tocar no puxador, apercebendo-se que não sabia nada sobre o que estava para além da porta. Vieram-lhe à memória os soldados e tanques na rua, os bombardeamentos nocturnos. Não fazia ideia sequer se não haviam sido invadidos pela Alemanha e se ainda seria possível falar português na rua. Sorriu e abanou a cabeça. Achou o pensamento absurdo. Quando se decidira fechar ao mundo, Portugal afundava-se com uma enorme dívida, mas com certeza não era razão suficiente para que as pessoas falassem alemão na rua.
As falanges dos dedos fecharam-se em torno do puxador. O trinco soltou-se e uma brecha surgiu. A porta entreabriu-se lentamente. Nos últimos vinte anos, nunca fora mais longe. Perdera a conta às vezes em que recuara com as escadas sombrias já à vista. Empurrou a pesada estrutura de madeira e meteu o pé direito no primeiro degrau. Os joelhos rangeram e uma dor atravessou-lhe a tíbia. Segurou-se ao corrimão com a mão esquerda e apoiou a bengala. A custo repetiu o processo, descendo lentamente até ao corredor mal iluminado.
As paredes cobertas com tinta amarela meio descascada e adornadas por candeeiros que mais pareciam peças de museu continuavam fiéis à sua memória. Avançou, tão rápido quanto a sua condição lhe permitia, até ao lanço de escadas seguinte. Não encontrou ninguém. Uma vez no rés-do-chão decidiu resistir ao impulso de bater à porta do filho, dirigindo-se à entrada do prédio.
Ao pisar as lajes brancas, as pernas começaram a tremer. Relembrou um dos primeiros dias de Janeiro de 2012 em que entregara uma pasta cheia de papéis ao filho.
― Deixei-te tudo como herança ― dissera-lhe. ― Quero dedicar-me à escrita a tempo inteiro e só te peço que me tragas comida três vezes ao dia, uma resma de folhas e duas canetas por semana.
Ele lançara-lhe um olhar de incredulidade.
― Eu sei o que estás a pensar ― interrompeu o seu descendente antes que este ripostasse. ― Não há nada que me possas dizer que me irá convencer. A minha decisão é final!
De volta ao presente, atento à rua. E pela primeira vez notou o silêncio. Esta parecia-lhe igual, com excepção do tráfico. Não passava um único carro na que fora uma das avenidas mais movimentadas do Porto.
Saiu. Os sapatos pousaram sobre a calçada. O piso irregular trouxe-lhe sentimentos agridoces. Quisera ser o maior poeta que Portugal alguma vez criara e acabara por se fechar durante vinte anos. Não se conseguia reconhecer.
Caminhou pela rua. Havia poucos transeuntes àquela hora e todos pareciam atarefados com qualquer trabalho. Deviam ser umas nove da manhã e a maioria deveria estar no trabalho. Saiu da sua rua, chegando ao que fora a rotunda da Boavista. Piscou os olhos, deixando o maxilar descair: o monumento dera lugar a sacos de areia empilhados que protegiam várias peças de artilharia. Rapazes, pouco mais que garotos, estavam em sentido em frente às armas. Um deles observava o céu com binóculos e o mais velho, que tinha uma farda diferente, passava em revista a guarnição.
Havia algo de familiar naquela organização. Já vira expressões semelhantes. Recordou-se então do dia em que o pai o levara a ver um desfile. Talvez tivesse uns oito anos, não sabia ao certo. Decerto acontecera no início dos anos setenta.
A rua estava cheia, todos queriam ver os seus filhos. O membro mais avançado levava uma enorme bandeira de Portugal. Todos caminhavam vestidos com os mesmos uniformes de aspecto militar. Seria, provavelmente, uma das últimas pessoas vivas que assistira a uma marcha da Mocidade Portuguesa.
Ao olhar para a instalação militar uma lágrima correu-lhe pelo canto do olho. Nem sequer a bandeira hasteada no ponto mais alto da base era a mesma. O escudo era semelhante, mas as cores eram diferentes, apesar de estranhamente familiares. Branco e azul claro.
― Galiza! ― exclamou, atraindo as atenções do pelotão.


Podem ler a segunda parte aqui.

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