sexta-feira, 20 de março de 2015

O Poeta - Parte 2 de 2

Podem ler a primeira parte aqui.


Os olhares não duraram mais do que um doloroso par de segundos. Já os jovens haviam perdido o interesse nele há alguns momentos e o coração ainda batia descompassado.
Vagueou ao acaso, tentando absorver o máximo desta realidade. As novas bandeiras faziam-lhe confusão. Ardia em curiosidade para saber o que acontecera, mas tinha receio de, ao perguntar, ser tomado como estrangeiro. Para além disso, não conversara com ninguém durante mais de uma década.
Recordou-se da última vez em que trocara impressões com o filho. Fora algures no início da década de vinte. Como era normal, ele deixara-lhe o almoço numa travessa à entrada do sótão e batera na madeira sólida. Ao abrir a porta, depara-se com um jornal ao lado da refeição.
― Tiago!
Ele voltara atrás, de olhar surpreendido.
― Obrigado pela comida ― agradeceu o idoso, acalmando-se.
― De nada, pai. Há alguma coisa de errado?
― Tiago, preferia que não me trouxesses jornais. Não me quero distrair com essas coisas. Quero conseguir concentrar-me totalmente na escrita.
― Desculpe, pai, não volta a acontecer ― ripostou o homem de meia-idade, voltando costas e desaparecendo sem esperar por uma resposta.
Depois do 11 de Setembro e do clima de Guerra Fria instalado contra um inimigo invisível e inventado pelos soberanos, Manuel perdera o interesse nas notícias. Os jornais diziam todos os dias o mesmo, interesses e interesses, excepto os seus.
Algo atraiu a sua atenção. Do outro lado da estrada havia uma livraria. Sem pensar duas vezes, atravessou a antiga faixa de rodagem, agora coberta com calçada portuguesa, e entrou no estabelecimento. Esforçou-se para mostrar um tom neutro enquanto procurava com o olhar a secção de História.
― Muito bom dia ― cumprimentou-o o lojista.
O coração falhou-lhe uma batida. Não esperava ser interpelado tão prontamente. O sotaque era-lhe familiar, mas não o que esperava de um habitante da Invicta.
― Bom dia.
O empregado, quase tão velho como ele, franziu o sobrolho.
― Em que posso ajudá-lo?
― Tem algum volume da história recente de Portugal?
O comerciante arregalou os olhos, como se tivesse acabado de ouvir algo escandaloso.
― Desculpe, mas não temos nenhum livro desse género.
Pela segunda vez nesse dia, o maxilar descaiu-lhe. Nunca antes havia estado numa livraria em que não houvesse uma secção inteira dedicada ao tema.
― Podia ter a bondade de me indicar onde se situa a prateleira de História?
Sem mais uma palavra, o homem apontou para um dos cantos da loja. Manuel mancou até lá, sem se atrever a quebrar o silêncio. De toda a estante, só metade de uma prateleira é que era dedicada a História. As lombadas não deixavam margem para dúvidas, Portugal já não existia. Nenhum livro do quarteirão disponível abordava outro assunto que não fosse a História de Porto e Galiza.
Abandonou o estabelecimento sem sequer agradecer. Procurou regressar a casa pelo mesmo caminho, precisava de retornar ao seu refúgio. Concentrado em colocar uma perna à frente da outra sem forçar demasiado os joelhos, não reparou nos dois homens que se aproximavam.
A colisão atirou-o ao chão. Os óculos saltaram e a visão ficou turva. Os dois vultos permaneciam à sua frente.
― Peço imensa desculpa ― amenizou, enquanto os dedos procuravam os óculos.
Sentiu a haste com o dedo mindinho. Puxou a armação e colocou-a sobre o nariz, recuperando a sua visão normal. Como duas torres, os dois homens vestidos com um fato quase tão antigo como o seu, observavam-no com ar de poucos amigos.
― Mostre-nos a sua identificação ― exigiu o mais alto.
― Não tenho nada ― balbuciou a tremer.
― Então vai ter que nos acompanhar até à Direcção Regional dos Assuntos Internos. Vá levante-se ou temos que o arrastar à força? ― rugiu um deles, estendendo a mão e agarrando-o pelo colarinho.
Os dois agentes conduziram-no à bruta pelas ruas até chegarem ao que Manuel recordava ser uma antiga esquadra da PSP. Sem cerimónias ou explicações, fecharam-no numa das celas.
***
Sentado na cadeira e apoiado na bengala, Manuel esperava que Tiago regressasse à cozinha. Quando este transpôs a entrada, recebeu-o com um olhar de cachorro submisso.
― Desculpa…
O filho fitou-o com uma expressão indecifrável, suspirando de seguida.
― Não percebo, juro que não percebo! ― exasperou-se, abanando a cabeça.
― Eu estava bloqueado, não escrevia nada há dias…
― Mas sair assim de casa? Sem sequer avisar? Os tempos mudaram, o nosso país já não é o mesmo. Não se pode andar pela rua sem os documentos. Aliás, o pai não pode sequer abrir a boca que vão notar que tem um sotaque diferente. O pai passou demasiado tempo fechado naquele sótão. Outra coisa que não percebo ― despejou, acabando por se sentar em frente ao pai, ofegante, como se tivesse realizado um grande esforço físico.
― Eu queria criar a maior obra da língua portuguesa…
― Essa língua já não existe, pelo menos deste lado do Mondego. Nunca devia ter permitido que passasse tanto tempo trancado naquele cubículo!
Os olhares cruzaram-se, o de um velho cansado e de um quarentão zangado.
― Valeu a pena? ― perguntou o filho.
― Como? ― admirou-se Manuel, arregalando os olhos.
― Conseguiu escrever a obra que tanto ansiava?
O idoso fitou a ponta dos sapatos, sem se atrever a levantar a cabeça.
― Não ― confessou uns momentos depois. ― E acho que nunca a irei terminar. Queria honrar uma nação que já não existe. Não só a nível soberano, territorial ou linguístico, mas aquela ideia que permaneceu durante mais de 800 anos, de um país uno que deu novos mundos ao mundo. Sem isso não vale sequer a pena terminar.
A tremer, levantou-se da cadeira, quase num esforço sobre-humano. A velhice apoderara-se dele. Olhou o filho e deu-lhe o seu melhor sorriso. Abraçaram-se por fim.
― Desperdicei vinte anos da minha vida por isto. Devo ser o maior idiota que existe mas, pelo menos, aprendi a minha lição. Espero que me perdoes…
A expressão de Tiago deixou-o mais sossegado. Não eram necessárias palavras. Depois encaminhou-se para o seu sótão, disposto a queimar tudo, até à última folha.


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