Felizmente, para a maioria, o processo não era longo. Uns dias e estava terminado. Quem ditava a necessidade de reabilitação eram os agentes do Estado. Uns sujeitos que vestiam fatos fora de moda e que imiscuíam em demasia na vida das pessoas. Tudo o que não estivesse nos conformes com o que se esperava dum cidadão exemplar podia ser punido. Esses agentes eram uma polícia que estava acima da polícia. Nem eles escapavam do controlo dos seus pares. Quem realmente os liderava, ninguém sabia ao certo, já que até o presidente e ministros podiam ser investigados.
Jorge viu-se no meio do processo numa manhã do fim de Julho de 2039, enquanto vendia cupões de alimentação, na rua de Santa Catarina. Um crime que não praticava por simples desobediência, mas por necessidade. Quando os agentes o abordaram, limitou-se a levantar os braços e fixar o olhar na calçada. Talvez não lhe dessem a pena mais pesada. Não houve juiz, nem advogados, nem sequer um julgamento. Mantiveram-no na cela minúscula durante um par de dias. Depois disso, obrigaram-no a entrar num camião com outra dezena de pessoas. Ninguém ousou trocar uma única palavra sobre o que se estava a passar. Talvez soubessem o que se ia passar. Jorge não sabia.
O camião percorreu quilómetros sem fim, até que, ao pôr-do-sol, chegaram ao acampamento. O recinto estava cercado de arame farpado. Não era claro se servia para impedir a entrada ou a saída. O silêncio imperava entre eles, como o aplicar de uma regra que não fora sequer enunciada. Foram distribuídos por casernas de madeira. Havia muitos mais na mesma situação.
Como refeição foi-lhes dado uma sopa insípida. Jorge estremeceu quando lhe colocaram um uniforme militar esburacado nos braços. Viu medo e resignação nos olhares dos outros. Também eles tinham compreendido o que os esperava. Com as roupas civis, desapareceu a esperança. Nos beliches não havia nem cobertores nem colchão, obrigando-os a dormir vestidos sobre as traves de madeira.
― Toca a levantar! A vossa reabilitação começa hoje! ― rugiu uma voz.
Jorge abriu os olhos. Ainda o Sol não tinha nascido. Mais uma vez, foram metidos em camiões. A viagem não foi longa. Pararam na encosta dum monte. Jorge contou cerca de uma centena de pessoas na mesma condição.
― A vossa reabilitação é simples ― explicou-lhes o sargento. ― Do outro lado da encosta há um rio e uma ponte atravessa esse rio. Quem chegar ao outro lado da ponte é livre e todos os seus crimes são esquecidos. Quem se acobardar é fuzilado. Boa sorte!
Depois passaram-lhe as armas para as mãos. A de Jorge deveria ter pelo menos uns cinquenta anos. Duvidou que sequer funcionasse.
O grupo subiu o resto do monte e quando chegou ao topo, viu que havia trincheiras escavadas por entre as ruínas de uma povoação. A cabeça do homem que estava a seu lado explodiu, numa mistura de osso, sangue e massa encefálica. Jorge atirou-se para o chão e os outros dispersaram de imediato, abrigando-se por detrás do entulho. Ouvia-se uma metralhadora ao longe. Sentiu a face húmida. Ao passar a mão, viu uma substância pastosa vermelha. A custo, conteve o vómito. Respirou fundo três vezes e correu para a pedra seguinte, vagamente consciente que o estavam a alvejar. Uns segundos depois atirava-se para a trincheira, onde se deixou ficar, ofegante. Como ele, a maioria tinha conseguido refugiar-se ali. No entanto, alguns haviam ficado para trás e parecia improvável que se voltassem a levantar.
― O que é que estão à espera? Avancem! Quem estiver nesta trincheira daqui a um minuto é fuzilado ― ouviu um militar ameaçar.
Hesitou. O coração aos pulos no peito. Apertou o cano da arma e galgou a extremidade de forma desastrada. A terra de ninguém não era extensa, mas não oferecia qualquer protecção. Duas dezenas de metros era o que os separava da ponte. Foram de imediato alvejados. Jorge não viu outra escolha que não fosse avançar e procurar a protecção da ponte. O som dos disparos desorientava-o. Houve quem saltasse para o rio. Outros tentaram atravessar a ponte por cima.
Ele não chegou tão longe. A primeira bala acertou-lhe acima do joelho, numa explosão de dor. A segunda no ombro, fazendo-o largar a arma. As três seguintes no tórax. O corpo avançou um par de passos e caiu para a frente, à entrada da ponte. A sua reabilitação terminara.
Foto: Ana Filipa Piedade
Este conto foi publicado originalmente no blogue Fantasy & Co.
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