sexta-feira, 25 de setembro de 2015

O Jardim do Éden - Parte 1

"Então plantou o Senhor Deus um jardim, da banda do oriente, no Éden;
e pôs ali o homem que tinha formado."
Génesis 2, 8


Cada visita à despensa relembrava Bea do problema. A divisão podia ser imensa, mas a maioria das gavetas em forma de prateleira que puxava da parede só continham pó. A garota sabia que o dia em que acabaria a comida estava a chegar. Com receio no olhar, pegou na última lata de conserva e voltou para a cozinha.
As luzes acendiam-se e apagavam-se à sua passagem. De tempos a tempos, Amir, o irmão, percorria o abrigo subterrâneo trocando as lâmpadas estragadas e afinando os velhos sensores como o pai lhe havia ensinado. Aquele sítio era mais velho que qualquer um deles. Segundo o computador central, quase sessenta e cinco anos haviam passado desde que estavam ali. O conceito de anos era estranho para ela. Cada ano eram 365 dias, outro conceito estranho. Cada vez que as luzes se apagavam e voltavam a acender passava um dia. Nunca compreendera o porquê. Os pais prometeram responder a todas questões quando fossem mais velhos, contudo, morreram sem o fazer.
― Só isso? ― perguntou Amir, que tinha uma tez um pouco mais morena que a irmã.
― É a última ― declarou ela, contendo as lágrimas.
Amir abriu-a, era atum. Bea torceu o nariz. O irmão partilhou o conteúdo acompanhando com pão que haviam feito. Ela forçou-se a engolir tudo até à última migalha.
Existiam galerias sem fim. Algumas partes estavam destruídas e outras permanentemente seladas. O computador decidia onde eles podiam ou não ir. O que acontecera nos últimos sessenta e quatro anos antes não era claro. Nem o computador central lhes dava respostas. A única coisa certa é que não havia maneira de sair.
― Bea, tenho fome ― queixou-se ele.
Ela suspirou. Apesar de ser quatro anos mais nova, parecia que tinha passado a ser a mãe dele.
― Não podemos comer mais, há que racionar ― impôs, cruzando os braços como vira a mãe fazer.
Amir calou-se e desviou o olhar. Bea sabia que tinha razão. Desde que tinham notado, há alguns meses atrás, que a comida estava a escassear, tinham decidido reduzir a quantidade diária. Os pais tinham-nos avisado que isso ia acontecer na derradeira carta. Também tinham dito que os seus corpos começariam a mudar em breve pelo que deveriam dormir separados e, sobretudo, evitar o contacto físico. Bea sabia que isso já tinha começado, não fossem pêlos terem começado a crescer em sítios estranhos e o peito aumentar de volume. Era tudo inexplicável, até o cheiro. O pior de tudo fora o sangue que aparecera há um par de meses. Não fosse a mãe uma vez ter-lhe explicado que isso iria acontecer, Bea pensaria que estava para morrer. O instinto, na forma da mãe, dizia-lhe que não devia partilhar essas coisas.
Lembrou-se do dia em que encontrara os corpos. Pareciam ter morrido em pleno sono. Eles já lhes tinham explicado o que era a morte, apesar de nunca terem presenciado nenhuma. Estavam tão calmos que pareciam quase felizes. Tentou abaná-los e até espetou as unhas no braço do pai. Já estavam frios. Deixou-se cair, com a cabeça apoiada na cama. As lágrimas e a confusão dominaram-na, até o irmão surgir atrás de si.
― Anda, eles estão mortos ― disse-lhe num fio de voz.
Nesse dia colocaram os corpos na fornalha onde deitavam todo o lixo, tal como lhes haviam pedido na folha de papel que ficara sobre a mesa. As outras coisas que estavam escritas nesse papel não faziam sentido de todo. Disseram que eles seriam herdeiros de algo que não tem valor e que veriam coisas que nunca haviam visto nas suas vidas. Lera a carta inúmeras vezes, mas acabara por a queimar num momento de fúria.
Não era só a comida que estava a escassear. Eram também os livros e as distracções em geral. Não havia muito mais que pudessem fazer que já não tivessem feito. A biblioteca principal estava selada e o computador não autorizava a sua abertura. Ficar o dia todo deitada era demasiado aborrecido.
Os passos erráticos acabaram por levá-la à sala principal, coberta de monitores que mostrava o estado de cada um dos sistemas. Uma olhada pelos ecrãs confirmou que estava tudo bem. O facto de os valores estarem próximos dos mínimos em quase todas as vertentes não a preocupava. Sempre fora assim durante a sua vida.
De súbito, apeteceu-lhe atirar o monitor mais próximo ao chão. Despedaçar cada uma daquelas maquinetas. Odiava que lhe controlassem a vida. Odiava ainda mais que os pais não lhe tivessem deixado a palavra passe. Com ela poderiam abrir qualquer porta e até mesmo alterar as definições do computador. Não compreendia porque os pais haviam feito aquilo. Quanto mais pensava no assunto, mais lhe parecia que eles se tinham matado de propósito. Haviam-nos deixado sozinhos.
Sentiu uma mão no seu ombro. Um arrepio subiu-lhe pela espinha.
― Amir! – protestou, virando-se.
― O que se passa? ― inquiriu, parecendo confuso.
― Os pais foram bem claros que não devíamos tocar-nos ― censurou.
Desde há um ano para cá, o toque dele dava-lhe sensações estranhas. Conseguia compreender que estava a ficar mais parecida com a mãe e ele com o pai. E se os pais se podiam tocar e estar sempre juntos, por que não poderiam eles?
― Dá-me um abraço, Bea ― insistiu.
Ao olhar para o irmão, viu apenas uma criança assustada. Não podia. Era errado. Saiu da sala a correr com lágrimas nos olhos. Percorreu os corredores sem olhar para trás e quando chegou ao quarto, meteu o dedo no leitor. A porta abriu-se e ela esgueirou-se para o interior. Ao meter o dedo no leitor interior, deu ordem para que a porta fosse trancada.
Atirou-se para cima da cama e deixou que as lágrimas fluíssem. Irritava-a mais que tudo nunca lhe terem dado qualquer explicação para as regras. Porque não haveriam de as poder quebrar? Não haveria castigo. Como poderia haver castigo se só estavam ali eles os dois? Pelas histórias que lera, sabia que havia mais pessoas, mas nenhuma delas alguma vez viera ali. A sensação estranha persistia nela. Como um calor indescritível.
O sinal de alarme soou nesse momento. Levantou-se da cama e limpou as lágrimas. Na sua vida só se lembrava de isso acontecer duas vezes: quando deflagrara um fogo e quando o gerador principal deixara de funcionar. Tinha de ser algo sério. Apressou-se na direcção da sala principal e, quando lá chegou, viu que em todos os monitores estava uma contagem decrescente. Dentro de uma hora algo aconteceria.



Podem ler a segunda parte do conto aqui.

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