segunda-feira, 17 de outubro de 2016

Rios de Sangue - Parte 2/2

Podem ler a primeira parte deste conto aqui.

Com a ajuda do companheiro, colocou o Zé às costas e seguiu pelos túneis, todo dobrado, para que nenhum deles pudesse ser atingido do exterior. Cada passo era doloroso. Zé murmurava coisas sem sentido. O sangue do colega ia-lhe ensopando a roupa.
― Aguenta-te pá, já estamos a chegar ― encorajou-o.
Ao chegar ao fim da trincheira, soube o que desafio estava prestes a iniciar-se. Teria de percorrer um quilómetro no meio de um ataque para chegar ao hospital. Os cozinheiros e os estafetas faziam o mesmo caminho todos os dias, mas nunca de dia. Isto equivalia a pintar um alvo nas costas. Estremeceu antes de meter o pé na escada.
A partir dali, mexeu-se o mais depressa que o peso lhe permitia. Os disparos multiplicavam-se nas suas costas. Nenhum parecia apontado para eles. Tanto pelo que sabia, bastava um. As costas doíam-lhe. Sentiu as pedras debaixo do pé moverem-se. No momento seguinte, estava em queda. O embate com o entulho expulsou-lhe o ar dos pulmões. O Zé aterrou ao lado dele.
Deixou-se ficar no chão. Estava farto desta guerra. Bastava uma bala e isto acabava. Quase ninguém conseguia cumprir o tempo de serviço com vida ou sem uma lesão permanente. Mais valia ficar ali e esperar pelo inevitável.
Veio-lhe uma lágrima ao canto do olho. A mãe iria chorar quando soubesse. E a doce Leonor também. Era demais, já não bastava a mãe ter perdido o marido e a irmã o pai naquelas margens amaldiçoadas, agora iriam perder o filho e irmão. Ou talvez dois filhos e dois irmãos. Não sabia onde andava o Francisco. Ninguém sabia. A divisão dele nunca parava no mesmo sítio.
Ouviu um gemido a seu lado. Era o Zé. A família nunca o iria perdoar se o deixasse morrer aqui. Ergueu-se, tentando não pensar na batalha que se desenrolava nas suas costas. Pegou o colega ferido ao colo e retomou o caminho. Um pé à frente do outro, foi subindo o monte. As feridas do companheiro eram profundas e o sangue corria em demasia. Apressou o passo, já se via o topo do monte. Faz um esforço, quase atingindo o passo de corrida. No cimo da elevação já se vêem o centro de comando, as artilharias, o paiol e o hospital, que não são mais do que o aproveitar das construções da antiga vila.
Um par de minutos e estava no hospital. Já tinham passado várias semanas desde que ali tinha estado. As camas encontravam-se sobrelotadas e os médicos não tinham mãos a medir. Não conseguia sequer ver as enfermeiras. Estendeu o Zé sobre uma maca. Ninguém pareceu dar de conta que chegaram.
― Alguém me ajude. Ele foi atingido por um morteiro ― protestou, em voz alta.
Por fim um dos médicos aproximou-se.
― Não é preciso gritar ― reclamou, observando o soldado. ― Pode ir, eu trato dele.
Roberto saiu, mas deixou-se ficar por ali. Já não se ouviam os disparos. Parecia que a investida terminara. Não vale a pena perguntar como é que terminou, tudo aparentava ter voltado ao normal. Excepto para os que não irão ver outro dia.
― O que é que o soldado está aqui a fazer? ― perguntou-lhe um oficial.
― Tenente ― fez-lhe continência, depois de se levantar à pressa. ― Vim trazer um companheiro ferido.
― E o que é que está à espera para voltar ao seu posto?
― Estou à espera do anoitecer ― constatou, não percebendo como é que não era óbvio.
O homem afastou-se sem lhe responder. Era provável que estivesse atarefado com qualquer coisa.
Ao pôr-do-sol, o médico veio ter com ele. Trazia uns papéis na mão.
― Entregue isto ao comandante do seu pelotão ― ordenou, virando logo costas.
Assim que ficou escuro, pôs-se a caminho junto com o cozinheiros. O passo era mais lento que os restantes e acabou por ficar para trás. Quando chegou, já a comida tinha sido distribuída. Não se preocupou, foi direito ao abrigo do tenente.
― Onde é que raio estiveste? ― inquiriu, aproximando-se da sua face.
― Levei o Zé para ser assistido ― respondeu, passando-lhe os papéis.
O tenente era mais novo, mas tinha chegado àquela posição por ter frequentado o colégio militar.
― Era só o que mais me faltava ― comentou, passando os olhos pelo formulário. ― Outra baixa. Estás dispensado.
Roberto voltou para a trincheira. Sentou-se ao lado de Fábio, que lhe passou a malga da sopa para a mão. Trocaram um olhar. Não precisava dizer-lhe que não voltariam a ver o Zé.


Este conto foi publicado originalmente no blogue Fantasy & Co.

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