sexta-feira, 7 de outubro de 2016

Rios de Sangue - Parte 1/2

O dia estava calmo e o sol perto do Zénite. Para além do bombardeamento matinal e alguns tiros de aviso, não acontecera nada digno de nota. Para Roberto, fulcral era manter a cabeça abaixo da linha do solo. Tudo o resto eram detalhes.
Não havia muito para fazer, por isso, dedicou-se a desmontar e limpar a arma. O maior inimigo tinha duas armas: a morte e o aborrecimento. A transição entre uma e outra era brusca e nefasta. Tanto passavam dias aninhados naquelas poças de lama a morrer de doenças tratáveis, como em semanas de combates intensos. Uns e outros vinham e iam sem qualquer aviso. A fome e o sono eram como a paisagem, contribuíam só para o desconforto geral e já ninguém se queixava deles.
O som da metralhadora quebrou a monotonia e não anunciava nada de bom. Voltou a montar a arma e a carregá-la o mais rápido que pôde. Tinham sido eles a disparar, o que significava que o inimigo estava de novo a tentar atravessar o rio.
― E aqui vamos de novo ― comentou Igor, que se aninhara a seu lado.
Mais disparos. Ambos sabiam que não era boa ideia espreitar. Ao contrário de alguns, eles tinham tido miolos suficientes para não perderem a cabeça desse modo.
― O que se passa? ― gritou para os colegas da trincheira ao lado.
― Mais um ataque, nada de especial ― respondera-lhe de imediato.
O morteiro caiu a uns passos deles. A onda de choque derrubou-o, fazendo-o cair na lama. Um zumbido persistente apoderou-se-lhe dos ouvidos. Uma inspecção rápida mostrou-lhe que não estava ferido. Umas quantas assim e ficaria surdo. Igor já se havia recomposto. O Zé vinha da latrina e o Fábio do abrigo.
― Onde é que vocês estavam? Já perderam o início do fogo-de-artifício ― gozou Igor, atirando um murro no ombro do Zé.
Estes vinte metros estavam por conta deles. À frente ficava a terra de ninguém. Vinte metros de desolação até ao rio. As ordem eram simples: acontecesse o que acontecesse, nenhum inimigo podia jamais desembarcar.
As munições de artilharia continuavam a chover por ali. Umas mais perto que outras. Se tivesse escolha, preferia ficar nos abrigos individuais, onde o risco de ser atingido era mínimo. Eles separaram-se, indo cada um para o posto, uma saliência na vala. Por esta altura, já Igor estaria a usar o seu espelho para ver quem lá vinha. Olhou para arma. Esta lata podia ser do tempo da União Europeia, mas ainda funcionava bem. A primeira vez que encravasse podia ser o último dia da sua vida.
― Más notícias, pessoal. Eles estão a levar barcos até à praia. Não tarda que tentem atravessar ― gritou Igor, fazendo-se ouvir por cima do barulho dos disparos.
Ao longo dos anos, tinham havido centenas de investidas de ambos os lados, todas com o mesmo resultado: nenhum. Não fazia diferença quantos homens e recursos usavam. Ser destacado para um ataque era uma sentença de morte. Tanto que a expressão, que te escolham para a próxima investida, já se tornara um dos piores insultos. O pior eram os bandos de corvos que se banqueteavam nos corpos abandonados na terra de ninguém. O croquitar constante afectava até mesmo os que tinham nervos de aço.
Apesar de estarem no meio de uma ofensiva, a maior parte do tempo só podiam esperar. Uns segundos de acção e estava tudo acabado, de uma maneira ou de outra.
Outro salvo de artilharia atingiu as posições. Um dos projécteis caiu tão perto que sentiu a onda de choque nos ossos. O zumbido nos ouvidos parara por completo. Não ouvia nada. Apercebeu-se que aquilo explodira na borda da trincheira. Era raro acontecer e nada bonito de ver. O coração falhou uma batida. Caíra perto do Igor. A terra desabara naquele ponto, misturada com pedras. Viu Fábio do outro lado. Onde estava o Zé? Distinguiu um braço mutilado no meio do solo. Aproximou-se, percebendo que o resto do dono já não estava presente. A pouco foi encontrando outros pedaços ali perto. Igor não tinha salvação. O Fábio estava tentar desenterrar algo. Foi ajudá-lo. O Zé estava bastante maltratado, mas vivo. Trocou um olhar com Fábio. Ambas as alternativas eram arriscadas.
― Eu levo-o ― ofereceu-se Roberto.


Podem encontrar a segunda parte deste conto aqui.

Este conto foi publicado originalmente no Fantasy & Co.

Nenhum comentário:

Postar um comentário