domingo, 22 de julho de 2012

O monstro e a musa - parte 1/12

O monstro

Nós sabíamos que o mundo nunca mais seria o mesmo. Algumas pessoas riram-se, outras choraram e a maioria ficou silenciosa. Eu lembrei-me de uma linha das escrituras hindus, o Bhagavad-Gita. Vishnu tenta convencer o príncipe a cumprir o seu dever e, para o impressionar, toma a sua forma de múltiplos braços e diz “Eu agora tornei-me a morte, o destruidor de mundos”. De um modo ou de outro, todos pensamos o mesmo.
Robert Oppenheimer, o pai da bomba atómica

Naquele fim de tarde, Walter viu o caos instalar-se nos primeiros segundos de batalha. De ambos os lados, os canhões rugiram assincronamente, enquanto o jovem corria para encontrar cobertura. Agachou-se em posição fetal, dentro duma depressão do terreno. Não podia fazer muito mais, era um inventor, não um soldado.
Enquanto a escaramuça decorria, amaldiçoou o momento em que se voluntariara para a expedição. Apesar destas montanhas pertencerem à confederação, desde cedo ficou claro que na realidade eram controladas por insurgentes.
Uma das explosões deu-se à sua direita, enchendo o buraco com pó e detritos. Tanto os olhos como as vias respiratórias foram fortemente afectadas, de modo que tossiu e lacrimejou durante minutos.
A artilharia calara-se. Finalmente tudo tinha terminado, pensou, espreitando para fora do buraco. O que viu deixou-o transtornado: a maioria dos soldados que acompanhava a expedição estava morta ou ferida; corpos mutilados e equipamento despedaçado encontravam-se espalhados um pouco por todo o lado. A consternação transformou-se em desespero quando viu que os restantes se tinham rendido. Ao olhar em volta, percebeu que estavam cercados pelos rebeldes.
Não tardou que alguns guerreiros com couraças de couro e latão o encontrassem. Com as suas espadas e lanças, obrigaram-no a sair do buraco. Enquanto o conduziam em direcção aos outros sobreviventes, ergueu a cabeça e tentou caminhar com toda a dignidade que lhe restava. Ao contrário do que esperava, não o agrediram.
Sobrara pouco mais do que uma dúzia de homens. Os inimigos observavam-nos, prontos a agir ao primeiro movimento suspeito. O momento era tenso, pois ninguém sabia o que os esperava. O que Walter tinha ouvido sobre os povos não governados fazia-o prever o pior.
Abruptamente, fez-se silêncio. Os guardas afastaram-se, permitindo-lhes ver o que lhes pareceu ser o comandante. Era um homem, de traços ibéricos e estatura mediana. Não parecia ser muito forte contudo, a sua expressão impunha respeito. Estava armado de um modo muito semelhante aos restantes soldados, à excepção dos dois arcabuzes extra que trazia à cintura.
– Quem é o doutor Walter Ramos? – perguntou, num tom de voz moderado.
O doutor não pôde evitar estremecer. Sabia que o medo que sentia saía por cada poro e que nem a suposta dignidade conseguiria manter. Já que ele permanecia estático no mesmo sítio, um dos sobreviventes empurrou-o.
– Sou eu...
– É um prazer conhecê-lo pessoalmente – explicou o homem. – Os seus serviços são-me necessários. Gostaria que você partilhasse os seus conhecimentos e o seu génio inventivo com o meu castro.
– O que o leva a pensar que eu vou fazer isso? – retorquiu Walter, soltando a sua arrogância sem pensar.
– Meu caro, creio que estará mais familiarizado com uma tal ciência, à qual antigamente davam o nome de física – fez uma pausa, olhando o prisioneiro. – Sabe melhor que ninguém que até a pedra mais pesada pode ser movida com o uso da alavanca correcta. É curioso que o mesmo se passe com os homens.
Walther não sabia como responder, acabando por permanecer em silêncio. Algo lhe dizia que aquele homem ainda tinha trunfos na manga. O tempo arrastou-se de um modo tenso.
– Então, qual vai ser a sua decisão? – insistiu o rebelde, mostrando-lhe que estava a ficar impaciente.
– Gostava de ver que alavanca é essa!
– Para ser sincero, não sei qual é a alavanca no seu caso. Se me permite, vou-lhe contar um segredo. Eu sou um grande fã do método científico e, por vezes, faço algumas experiências na minha cozinha. Provavelmente estou a aborrecê-lo com as minhas palavras, já que não deve estar muito interessado em ouvir falar da minha ciência caseira. Só queria que soubesse que irei procurar de um modo perseverante a sua alavanca. Creio que irei optar pelo método da tentativa e erro – relatou, fazendo um gesto com mão.
Dois insurgentes agarraram-no e levaram-no para mais perto do comandante.
– Não pense que me vai convencer com ameaças! – exclamou Walter, tentando controlar o medo.
– Meu caro, já deve ter ouvido falar de um jogo antigo, creio que se chamava xadrez. Era um jogo muito interessante. Para vencer era preciso antecipar as jogadas do oponente. Todavia, para se ser um mestre, era necessário cortar-lhe também as possibilidades, de modo que ele caminhasse para a armadilha por vontade própria.
–Não estou a entender... – protestou o inventor.
–Matem os prisioneiros que não se puderem colocar de pé! – ordenou com um sorriso sádico.
Vários soldados inimigos colocaram-se à sua frente, de modo que não pôde ver o que se passava. Não tardou que se ouvissem gritos de desespero e angústia. Quando terminou, o silêncio ainda conseguia ser mais sinistro.
–Meu caro, espero que isto o tenha convencido a acompanhar-me – satirizou o comandante.

A segunda parte pode ser encontrada em: http://pedro-cipriano.blogspot.de/2012/07/o-monstro-e-musa-segunda-parte.html

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