O monstro
Nós sabíamos que o
mundo nunca mais seria o mesmo. Algumas pessoas riram-se, outras
choraram e a maioria ficou silenciosa. Eu lembrei-me de uma linha das
escrituras hindus, o Bhagavad-Gita. Vishnu tenta convencer o príncipe
a cumprir o seu dever e, para o impressionar, toma a sua forma de
múltiplos braços e diz “Eu agora tornei-me a morte, o destruidor
de mundos”. De um modo ou de outro, todos pensamos o mesmo.
Robert Oppenheimer, o pai da bomba atómica
Naquele
fim de tarde, Walter viu o caos instalar-se nos primeiros segundos de
batalha. De ambos os lados, os canhões rugiram assincronamente,
enquanto o jovem corria para encontrar cobertura. Agachou-se em
posição fetal, dentro duma depressão do terreno. Não podia fazer
muito mais, era um inventor, não um soldado.
Enquanto
a escaramuça decorria, amaldiçoou o momento em que se voluntariara
para a expedição. Apesar destas montanhas pertencerem à
confederação, desde cedo ficou claro que na realidade eram
controladas por insurgentes.
Uma
das explosões deu-se à sua direita, enchendo o buraco com pó e
detritos. Tanto os olhos como as vias respiratórias foram fortemente
afectadas, de modo que tossiu e lacrimejou durante minutos.
A
artilharia calara-se. Finalmente tudo tinha terminado, pensou,
espreitando para fora do buraco. O que viu deixou-o transtornado: a
maioria dos soldados que acompanhava a expedição estava morta ou
ferida; corpos mutilados e equipamento despedaçado encontravam-se
espalhados um pouco por todo o lado. A consternação transformou-se
em desespero quando viu que os restantes se tinham rendido. Ao olhar
em volta, percebeu que estavam cercados pelos rebeldes.
Não
tardou que alguns guerreiros com couraças de couro e latão o
encontrassem. Com as suas espadas e lanças, obrigaram-no a sair do
buraco. Enquanto o conduziam em direcção aos outros sobreviventes,
ergueu a cabeça e tentou caminhar com toda a dignidade que lhe
restava. Ao contrário do que esperava, não o agrediram.
Sobrara
pouco mais do que uma dúzia de homens. Os inimigos observavam-nos,
prontos a agir ao primeiro movimento suspeito. O momento era tenso,
pois ninguém sabia o que os esperava. O que Walter tinha ouvido
sobre os povos não governados fazia-o prever o pior.
Abruptamente,
fez-se silêncio. Os guardas afastaram-se, permitindo-lhes ver o que
lhes pareceu ser o comandante. Era um homem, de traços ibéricos e
estatura mediana. Não parecia ser muito forte contudo, a sua
expressão impunha respeito. Estava armado de um modo muito
semelhante aos restantes soldados, à excepção dos dois arcabuzes
extra que trazia à cintura.
– Quem
é o doutor Walter Ramos? – perguntou, num tom de voz moderado.
O
doutor não pôde evitar estremecer. Sabia que o medo que sentia saía
por cada poro e que nem a suposta dignidade conseguiria manter. Já
que ele permanecia estático no mesmo sítio, um dos sobreviventes
empurrou-o.
– Sou
eu...
– É
um prazer conhecê-lo pessoalmente – explicou o homem. – Os seus
serviços são-me necessários. Gostaria que você partilhasse os
seus conhecimentos e o seu génio inventivo com o meu castro.
– O
que o leva a pensar que eu vou fazer isso? – retorquiu Walter,
soltando a sua arrogância sem pensar.
–
Meu
caro, creio que estará mais familiarizado com uma tal ciência, à
qual antigamente davam o nome de física – fez uma pausa, olhando o
prisioneiro. – Sabe melhor que ninguém que até a pedra mais
pesada pode ser movida com o uso da alavanca correcta. É curioso que
o mesmo se passe com os homens.
Walther
não sabia como responder, acabando por permanecer em silêncio. Algo
lhe dizia que aquele homem ainda tinha trunfos na manga. O tempo
arrastou-se de um modo tenso.
–
Então,
qual vai ser a sua decisão? – insistiu o rebelde, mostrando-lhe
que estava a ficar impaciente.
– Gostava
de ver que alavanca é essa!
–
Para
ser sincero, não sei qual é a alavanca no seu caso. Se me permite,
vou-lhe contar um segredo. Eu sou um grande fã do método científico
e, por vezes, faço algumas experiências na minha cozinha.
Provavelmente estou a aborrecê-lo com as minhas palavras, já que
não deve estar muito interessado em ouvir falar da minha ciência
caseira. Só queria que soubesse que irei procurar de um modo
perseverante a sua alavanca. Creio que irei optar pelo método da
tentativa e erro – relatou, fazendo um gesto com mão.
Dois
insurgentes agarraram-no e levaram-no para mais perto do comandante.
–
Não
pense que me vai convencer com ameaças! – exclamou Walter,
tentando controlar o medo.
–
Meu
caro, já deve ter ouvido falar de um jogo antigo, creio que se
chamava xadrez. Era um jogo muito interessante. Para vencer era
preciso antecipar as jogadas do oponente. Todavia, para se ser um
mestre, era necessário cortar-lhe também as possibilidades, de modo
que ele caminhasse para a armadilha por vontade própria.
–Não estou a entender... – protestou o inventor.
–Não estou a entender... – protestou o inventor.
–Matem
os prisioneiros que não se puderem colocar de pé! – ordenou com
um sorriso sádico.
Vários
soldados inimigos colocaram-se à sua frente, de modo que não pôde
ver o que se passava. Não tardou que se ouvissem gritos de desespero
e angústia. Quando terminou, o silêncio ainda conseguia ser mais
sinistro.
–Meu
caro, espero que isto o tenha convencido a acompanhar-me –
satirizou o comandante.
A segunda parte pode ser encontrada em: http://pedro-cipriano.blogspot.de/2012/07/o-monstro-e-musa-segunda-parte.html
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