quarta-feira, 26 de setembro de 2012

A morte de David


Tinha sido uma festa daquelas, como costumavam dizer entre eles, com muito álcool, rock, alguma erva e muita loucura. Quase todos os seus amigos, conhecidos e colegas tinham estado presentes, pois era a mais importante festa académica, conhecida por queima das fitas, ou simplesmente queima. A festa tinha terminado com o despontar do dia e a escuridão havia-se desvanecido lentamente enquanto ele voltava para casa.
Precisava de se deitar rapidamente, pois sabia que estava completamente bêbado. O seu estado era tal que tinha demorou uma eternidade para conseguir encontrar as chaves do apartamento e ainda mais para abrir a porta.
Enquanto caminhava em direcção ao seu quarto, um ligeiro desvio levou-o à cozinha. Tinha a garganta seca, um dos primeiros sinais de ressaca, e precisava dum copo de água com urgência.
A cozinha estava no seu estado normal, com a loiça por lavar e os caixotes do lixo a abarrotar, com dezenas de moscas da fruta a sobrevoá-los. A falta de tempo para as limpezas não era surpreendente para seis estudantes que se comprometia tanto a ir a todas as festas como a tentar passar nos exames de todas as cadeiras. Naturalmente que existiam excepções naquela casa mas, esses também não limpavam porque não o queriam fazer sozinhos.
David demorou cerca dum minuto a encontrar um copo menos sujo que os restantes. Encheu com água da torneira e sorveu o líquido avidamente.
Ouviu passos atrás de si. Voltou-se sobressaltado, constatando que era apenas um dos rapazes que vivia consigo. Não esperava vê-lo em casa àquelas horas.
― Bom dia! ― cumprimentou.
― Bom dia. ― devolveu-lhe o rapaz com uma expressão neutra.
Dirigiu-se ao frigorífico, ainda zonzo com o efeito da bebida. Estava extremamente esfomeado, pois não comia nada há horas. Abriu a porta do frigorífico, retirou o pacote do fiambre e fechou-a de seguida com a ajuda do cotovelo. Como estava embriagado, o gesto não lhe correra como previra e a porta do frigorífico ficara entreaberta. Praguejou enquanto atirava o fiambre para cima da mesa, voltou a abrir a porta do frigorífico, fechando-a de seguida com uma velocidade excessiva.
Pegou na metade de um bico do dia anterior para fazer uma sanduíche. Olhou-a durante alguns segundos, o seu cérebro parecia demorar um eternidade para chegar à conclusão de que precisava de uma faca para abrir o pão. Percorreu a divisão com o olhar de modo descortinar onde poderia encontrar uma, descobrindo-a na mão do seu colega de apartamento.
― Podes emprestar-me essa faca por um momento? ― pediu David, tentando soar simpático.
― Agora estou a usá-la, vê se encontras outra ― respondeu-lhe o jovem, aparentemente mal-humorado.
― 'Tá bem! ― concordou David, sem ligar importância.
Virou costas e dirigiu-se ao lava loiça, procurando por alguma faca que pudesse lavar.
No momento seguinte, sentiu uma dor lancinante nas costas. Algo o tinha atingido, penetrado a sua pele e embatendo na omoplata. Sentiu os músculos serem rasgados por um movimento descendente.
― Foda-se! O que é que foi isso? ― balbuciou David confuso e com dificuldade em articular as palavras.
O golpe não fora muito profundo, todavia o sangue começou a correr ao removerem o objecto que o cortara, manchado-lhe a camisa. As pernas fraquejaram, obrigando-o a apoiar-se no balcão frio da cozinha. Como resposta, outro golpe atingiu-o novamente nas costas, desta vez atingindo uma profundidade superior.
― Aaaaaa! ― gritou de dor.
Sentiu-se em pânico ao perceber que estava a ser esfaqueado e que se não reagisse, iriam matá-lo ali mesmo. Porém, o álcool presente no sangue fazia com que os seus reflexos ficassem mais lentos. Quando a faca foi removida das suas costas conseguiu finalmente reagir. Infelizmente, ao tentar virar-se, simplesmente colapsou no chão.
As pernas não respondiam, a visão estava desfocada e ele sentia-se zonzo. A perda de sangue começava a ter os seus efeitos. Olhou para o atacante e um só pensamento lhe ocorreu: fugir, pois ele desejava a sua morte. Com um esforço tremendo, começou a arrastar-se pelo chão da cozinha em direcção à porta.
Um par de passos e o vulto aproximou-se dele. Sentiu outra facada e mais dor dor. De seguida outra e, por fim, outra. Tomado pelo pânico, David esforçava-se para ignorar a dor latejante, lutando para não perder os sentidos.
― Porquê? ― sussurrou virando-se com dificuldade, usando as últimas forças.
Como resposta, sentiu outro corte, tão profundo que provavelmente lhe perfurara os pulmões. Estava fraco e não sabia quanto mais tempo se conseguiria manter consciente. Para seu horror, o agressor deixara a faca no seu peito. A visão ficou estranhamente clara e pode ver a expressão do assassino. Os olhares cruzaram-se durante um momento, antes que atacante se colocasse em fuga.
David continuou a arrastar-se, cada vez com mais esforço. Tinha esperança de conseguir encontrar ajuda. Tentou gritar, mas não conseguiu. Via-se forçado a respirar como se tivesse corrido uma maratona.
Sentiu que estava húmido e, para seu horror, descobriu que estava a deixar um rasto de sangue à sua passagem, o seu próprio sangue. Naquele instante, a consciência de que provavelmente não iria sobreviver assolou-lhe a alma, pois a perda de sangue era excessiva. As dores estavam a diminuir de intensidade e ele percebeu que era um sinal de que o seu corpo desistia da luta.
Estupefacto, compreendeu então a razão de ter sido esfaqueado. Nunca imaginara que pudessem matá-lo por isso. O que acontecera não fora por sua vontade e nem sequer lhe dera importância. O erro fatal fora não ter reagido.
Era inútil resistir, só esperava que tudo terminasse depressa e sem mais dor. Com um sentimento de angustia profundo, vieram-lhe à mente todas as coisas que havia planeado fazer ao longo da sua vida. A sua família e os seus amigos iriam sofrer imenso, incluindo a sua namorada, Cristina, que iria morrer de desgosto quando soubesse que ele tinha morrido. Subitamente, o sentimento de profunda tristeza foi substituído por uma raiva incontrolável. O seu último desejo era que o assassino sofresse tal como ele havia sofrido. Desejava que morresse de uma forma igualmente cruel e injusta, fosse morto à traição da mesma maneira que matara.
Uma luz cegou-o. O sol havia rompido pela janela e a luminosidade invadira a cozinha. O calor do sol não chegou para balancear o frio que sentia. Olhou para a janela, apreciando o espectáculo maravilhoso e luz que o cegava. Foi com essa imagem que perdeu os sentidos.

Este texto foi escrito para ser o prologo do livro Teia de Memórias.  Todavia, decidi não incluí-lo no livro.

Nenhum comentário:

Postar um comentário