quarta-feira, 26 de dezembro de 2012

Presente aos meus leitores - 2012

Decidi criar uma compilação com os três textos mais visitados durante o ano de 2012. O ebook já não está disponível.

A distribuição é permitida (e encorajada), desde que dêem o devido crédito aos intervenientes. Espero que gostem!

segunda-feira, 24 de dezembro de 2012

O fruto proibido - parte 2/2


A primeira parte do conto está disponível em: http://pedro-cipriano.blogspot.pt/2012/12/o-fruto-proibido-parte-12.html

O navio a vapor cruzava o imenso oceano que dividia os dois continentes. No convés, embalado pelo mar, a mente do cientista divagava no imenso espaço dos pensamentos. Tentou concentrar-se, pois queria de tomar uma decisão.
Não tinha dúvidas que a tecnologia descrita no livro mudaria o mundo. Com ela podia produzir quantidades imensas de energia e a dependência do carvão terminaria. Acreditava que, depois de quinhentos anos de inquisição tecnológica, o mundo merecia uma idade dourada. Contudo, ignorar as prescrições tecnológicas podia colocar a civilização num estado em que se destruiria a si mesma.
Com esse pensamento, debruçou-se sobre a amurada e retirou o livro da sacola. Sem hesitar, atirou-o para o oceano.
Ao voltar para os seus aposentos ficou cada vez mais agitado. Esperava por um alívio que não veio. Mesmo não tendo o livro, o conhecimento impelia-o a agir.
As nuvens negras de fuligem que todas as manhãs se abatiam sobre a cidade eram prova de que este não era o caminho certo. Cada duas toneladas desse ouro negro custava em média uma vida humana. Humberto tinha o poder de mudar isso, só precisava de reproduzir o gerador descrito pelo livro.

***

Ao ligar a centrifugadora, o barulho tornou o ambiente do laboratório insuportável.
A meia noite passara há um par de horas e ele estava sozinho na academia. Era a única maneira de conseguir prosseguir com o seu projecto. Humberto decidiu fazer uma pausa mas, mesmo no corredor, não conseguiu desligar-se mentalmente da sua experiência. Desejava ter uma centrifugadora mais poderosa.
Ouviu a porta do edifício abrir-se com um estrondo. Pareceu-lhe que alguém acabara de forçar a entrada no edifício. Passos ecoaram. Eram muitos pés em movimento.
O coração do cientista começou a bater mais depressa. Soube de imediato qual era a razão de estarem ali. Tentou relaxar nos segundos que restavam antes de eles chegarem. Não tirava apontamentos nem comentara as suas experiências com mais ninguém. Tentou convencer-se que que tudo ficaria bem.
Vários polícias de casaco azul e botões dourados cercaram. Os capacetes ovais faziam com que parecessem mais altos do que realmente eram. Humberto teve de usar toda a sua força de vontade para não mostrar o quão assustado estava.
– Doutor Carvalho, você está sob detenção por infringir as restrições tecnológicas – anunciou o que tinha o maior bigode.
Sem mais explicações, foi escoltado da academia até uma carrinha prisional de rodas gigantes. Assim que as portas duplas se fecharam, os pistons a vapor a colocaram a em movimento. Atravessaram metade da cidade construída em estilo Neovitoriano até chegarem a um imponente estrutura de talhe clássico. Fora levado ao Tribunal Imperial porque quisera dar à Confederação uma fonte quase inesgotável de energia.
Foi conduzido pelos corredores trabalhados. O edifício demorara mais de um século a ser erguido e a aura da construção deixava-o ainda mais desconfortável. Ao entrar na sala de julgamentos, encontrou o tribunal já reunido. Humberto começou a tremer.
– Doutor Carvalho, você é presente neste tribunal por violar as restrições tecnológicas. O que tem a dizer em sua defesa? – acusou o ancião vestido numa toga negra.
– Eu não violei nenhuma restrição! – protestou o cientista, tentado não gritar.
– Ainda não, mas os seus experimentos mostram clara intenção de o fazer. Ou nega que pretende fazer fissuração nuclear?
– Não nego. Eu apenas queria dar à humanidade uma fonte de energia alternativa. Como sabe, o mundo precisa urgentemente disso...
– Não duvido das suas boas intenções, mas a lei é inviolável. Ambos sabemos que não é este o caminho. Tenho muita pena, mas terei de aplicar a pena capital...
– Não chega abandonar o projecto?
– Quem me dera... – sorriu amargamente o Juiz. – O maior perigo não é o experimento, é o conhecimento que tem. Custa-me saber que iremos perder uma mente brilhante, contudo, a sobrevivência da humanidade o exige. Todo o material relativo à experiência deve ser destruído imediatamente e a pena aplicada dentro da próxima meia hora. A sessão está encerrada!
Até ao momento em que foi fuzilado, Humberto não conseguiu sentir rancor, somente tristeza por a humanidade continuar nas trevas.


Este conto foi publicado na Nanozine 7: http://nanoezine.wordpress.com/

sexta-feira, 21 de dezembro de 2012

O fruto proibido - parte 1/2

Humberto estava nervoso. Impaciente, esperava que os engenheiros a abrissem, relembrando a sua chegada à Ibéria duas semanas antes. Naquelas terras selvagens havia caminhado durante quatro dias antes de o grupo encontrar a cidade. Muitas expedições haviam passado por ali no entanto, nenhuma havia investigado a vegetação a fundo.
Os especialistas obrigaram-no a recuar. Iriam usar o último recurso para abrir a porta blindada.
O entusiasmo inicial havia-se desfeito quando encontraram as ruínas dos subúrbios. A metrópole havia sido varrida por uma explosão termo-nuclear e volvidos cinco séculos, somente os restos das fundações poderiam interessar aos escavadores de relíquias inúteis. Para um cientista curioso como Humberto, não havia ali nada de interesse. Apesar da desmotivação geral, a desmatação prosseguiu. No meio da pequena selva havia algumas estruturas que haviam resistido à passagem dos séculos. Mas, nem mesmo nos edifícios menos danificados havia algo que pagasse o salário diário de um soldado. A sorte mudou quando um grupo de soldados, que procurava um sítio mais abrigado para dormir, encontrou a cave.
O portão aguentara os assaltos dos técnicos durante toda a manhã. Só quando o sol já atravessara o zénite é que o conseguiram remover, com recurso a explosivos.
Ainda o pó pairava quando Humberto ignorou as convenções de segurança e penetrara no interior da casamanta. Outros o seguiram e cedo descobriram que teriam de proteger as vias respiratórias com as camisolas sob o risco de sufocar com poeira. Com os olhos a lacrimejar, atravessou a entrada que dava para um longo corredor. Parou, tentando lidar com a desilusão. Parecia ser apenas uma estrutura militar do último conflito mundial.
O cientista relembrou o que havia aprendido sobre a Terceira Guerra Mundial. A opinião geral colocava-a como a pior coisa que acontecera à humanidade desde o seu Génesis. Quase uma década de combates contínuos e sangrentos culminaram numa breve guerra atómica. O Verão nuclear queimou grande parte da superfície, matando mais de cinco biliões de seres humanos. O Inverno artificial matou quatro em cada cinco pessoas durante o primeiro ano. A escuridão fora a maior prova da capacidade de adaptação e sobrevivência do homo sapiens sapiens. As trevas duraram mais 70 anos e a noite parcial mais de um século. Não se sabe muito sobre esses anos e ainda menos sobre o que existia antes.
A estrutura era mais extensa do que à primeira vista parecia. Prolongava-se por várias dezenas de metros de corredores labirínticos e tinha pelo menos outros dois níveis.
– Venham ver isto! À sério, larguem tudo o que estão a fazer e venham ver isto! – chamaram, enquanto Humberto examinava uma divisão destinada ao alojamento.
– O que foi? – gritam da outra extremidade, criando um eco surreal.
– Estás bem? – ouviu-se um arqueólogo perguntar.
A situação deixou-o curioso. Ainda confuso com a direcção pouco clara do som, Humberto encaminhou-se para onde a origem lhe pareceu ser mais provável. Uns metros encontrou-se com um dos colegas e no fim bastou seguir a pequena multidão que se acumulara à entrada.
Ar seco e rarefeito fluía do estranho compartimento. Os murmúrios subiram gradualmente de tom. Como todos pareciam estar com medo de entrar, Humberto furou pelo entre os colegas e estacou à entrada.
Os seus olhos depararam-se com uma biblioteca. Uma sala quadrangular, com o comprimento duma carruagem de locomotiva. Estava repleta de prateleiras de livros. Era, provavelmente, a maior que havia sido encontrada durante as duas últimas duas décadas. Os olhos de Humberto maravilharam-se com a descoberta, ao imaginar o conhecimento fantástico que podia ser obtido.
Assim que recuperaram do espanto inicial, os cientistas e arqueólogos organizaram-se de um modo sistemático. Impulsionados pela descoberta, iniciaram de imediato o registo e triagem dos volumes que, para o cientista de meia-idade, eram o maior tesouro do passado. Com eles podiam reproduzir as invenções do passado tendo em conta a restrições tecnológicas.
Foi numa dessas sessões que ele encontrou algo que não estava à espera. Era um manual universitário. Folheou-o casualmente e começou a ler um parágrafo ao acaso. O coração parou por um momento. Piscou os olhos e releu novamente. Avançou algumas páginas e recuou o dobro. Tudo parecia bater certo. Estremeceu ao tomar consciência do poder que aquele feixe de papel encerrava.
Estacou com o livro na mão. A tecnologia que tinha em mãos era proibida e arriscava a pena a morte. Ponderou se valeria a pena arriscar a vida para o mundo ter a possibilidade de entrar numa nova era dourada. Sabia que o livro seria destruído assim que os outros o encontrassem. Por impulso, decidiu guardar a decisão para mais tarde, enfiando o livro na sua mala.

A segunda parte deste conto está disponível em: http://pedro-cipriano.blogspot.pt/2012/12/o-fruto-proibido-parte-22.html

Este conto foi publicado na Nanozine 7: http://nanoezine.wordpress.com/

quarta-feira, 19 de dezembro de 2012

O protótipo

Ao entrar na sala, Armin viu que o painel de administradores da empresa o aguardava em silêncio.
– Bom dia, meus senhores – anunciou, com um sorriso como eles poucas vezes tinham visto.
Os assessores levantaram-se para o cumprimentar.
– Tenho boas notícias. O protótipo em que estávamos a trabalhar teve o seu primeiro teste positivo – anunciou, observando cuidadosamente o painel executivo.
– E os custos? – perguntou um dos gestores.
– Cada unidade vai custar-nos cerca de 60 mil, a maioria dos componentes é tecnologia comum.
– Isso significa que qualquer pessoa o pode replicar em casa?
– Discordo – comentou um deles, com óculos de aro e uma gravata verde – acho difícil reverterem a engenharia. Só outra companhia o poderia fazer, mas com isso podemos nós bem, basta registar a patente.
– Eu concordo. Hoffman, qual o preço alvo de mercado sugerido?
– As estimativas apontam para 1.1 milhões.
Fez-se silêncio na sala.
– Meus senhores, está na hora de voltarem ao trabalho – ordenou, terminando a reunião.
Todos saíram. Uma vez sozinho na sala sentiu-se desapontado, fora o projecto mais importante da sua vida, mas não se considerava realizado agora que o completara. O protótipo iria revolucionar as viagens espaciais, tornando-as suficientemente baratas para uma família de classe média poder comprar a sua própria nave. O veículo era tão fácil de construir que o poderiam fazer num dos países de terceiro mundo a preços irrisórios. Seria um dos homens mais ricos do planeta, como o seu pai sempre desejara.
Levantou-se e saiu. Àquela hora a sede da sua multinacional fervilhava de actividade. Ao caminhar até ao seu escritório, foi cumprimentado com sorrisos, sinal de que as boas notícias se espalhavam depressa. Nem isso conseguiu sanar o mau humor que se apoderara dele. Por alguma razão, a ideia de passar de multi-milionário para multi-bilionário não era tão apelativa como julgara.
Entrou no escritório decorado num estilo conservador. Sentou-se no seu cadeirão de couro e poisou as folhas que trazia na mão em cima da secretaria com quatro séculos. Num impulso, pegou no telefone.
– Carmen, traga-me um café e avise que não estou disponível durante a próxima hora.
Andou ao acaso pela sala. Numa mesinha ao lado, um empregado colocara os jornais do dia, já abertos nas notícias que considerava mais importantes. Olhou para os títulos. O nível do mar tinha subido um centímetro no último ano. A China tinha ameaçado usar o seu poder nuclear se as divergências com os USA não fossem resolvidas. Os níveis de metais pesados no ar tinham aumentado 8% no ano corrente. A divisão blindada turca passara a fronteira da Grécia, iniciando mais uma guerra.
Sonhou que com a invenção da sua companhia poderia até ser o homem do ano. Mas nem isso o deixou melhor. Sentia um vazio, talvez por ter dedicado tanto tempo àquele projecto.
A secretária entrou e poisou a caneca na mesa, saindo de seguida, quase sem ruído.
Imaginou as vendas dispararem, quando inúmeras famílias tentassem escapar para as colónias na Lua ou Marte. Achou que já ninguém acreditava que os problemas da Terra se pudessem resolver.
Contudo, a sua consciência atormentava-o, como se tivesse cometido um crime. Mais uma vez pegou no telefone.
– Ingo, lembras-te daquela formação que querias dar ao pessoal de IT? Quero que a dês agora. A presença de todos é obrigatória.
– Mas isso não vai deixar ninguém a tratar dos nossos servidores.
– Deixa só um ou dois de serviço e depois dás-lhe a formação mais tarde.
Fez aparecer a sala de reuniões no ecrã virtual que projectava em frente à sua secretária. Esperou que todos os especialistas se sentassem para afastar a projecção para a direita e abrir outra. Introduziu as credenciais e acedeu às ligações do servidor onde guardavam os projectos. Sorriu, encontrara o que procurava. Filtrou as ligações, ignorando as que vinham de fontes seguras, e deparou-se com meia dúzia de ataques ao sistema. Coçou o queixo. Uma vinha de um proxy familiar. Procurou as referências.
Na projecção lateral, a formação começara.
Olhou para os resultados e entendeu imediatamente o que se estava a passar. Um grupo de hackers internacionais tentava obter os projectos da empresa.
A sua consciência só lhe deu uma opção. Com a sua chave de administração, deu-lhes acesso total. Em breve, o projecto estaria disponível para todos.


Este conto foi publicado no blog Fantasy & Co: http://fantasy-and-co.blogspot.pt/2012/12/o-prototipo-genorosidade-pedro-cipriano.html

segunda-feira, 17 de dezembro de 2012

The Writer's Twist


Um pequeno clip inspirado no livro "Teia de Memórias" realizado e produzido por Ana Piedade.

sexta-feira, 14 de dezembro de 2012

45º Demonstração pública anual da Academia Real de Ciências

Decorreu no fim-de-semana de 4 e 5 de Agosto do presente ano, na Academia Real de Ciências, a 45º Demonstração pública anual de protótipos. O prestigiado evento contou com mais de uma centena de inventores do foro nacional e cerca de cinquenta mil visitantes vindos de várias partes do mundo.
Seguindo a tradição dos anos passados, os organizadores decidiram tomar em conta os hábitos noctívagos de grande parte dos cavalheiros que os visitaram. O pavilhão abriu as portas ao meio dia de Sábado, altura pela qual vários grupos de entusiastas se aglomeravam perto da entrada.
Cada um dos cientistas apresentou uma das invenções que realizou no último ano. As apresentações foram simples, de linguagem apropriada ao cidadão comum, ao mesmo tempo que não alienou a restante comunidade científica.
Durante toda a exposição, cada uma das criações foi avaliada individualmente. O júri foi presidido pelo príncipe herdeiro, D. Orlando, acompanhado por grandes personalidades do mundo empresarial e da ordem dos engenheiros. Os factores determinantes para a escolha do vencedor foram a originalidade, relevância e potencial comercial. À saída, cada um dos visitantes foi convidado a escrever no seu bilhete o número da invenção que mais interesse lhe despertou. Os votos foram posteriormente contabilizados e o resultado dado a conhecer ao júri.
Durante o segundo dia, as portas estiveram abertas entre o meio-dia e as seis da tarde. No entanto, a afluência ultrapassou o dobro do dia anterior, registando-se longas filas na bilheteira, a partir das nove da manhã, com um tempo médio de espera de cerca de uma hora para os mais atrasados.
A famosa gala de entrega dos prémios começou às dez da noite, com a actuação da Orquestra Mecânica da Academia Real de Música, interpretando Mozart. Os espectadores foram de seguida presenteados pela adaptação de Romeu e Julieta, encenada pela Companhia Nacional de Bailado.
Passava da meia-noite quando os vencedores foram anunciados. Em terceiro lugar ficou uma invenção chamada de “Inversor de corrente”, criada por Luís le Creux. No segundo lugar do pódio ficou Francisco Ramires, com um “Forno super-eficiente”. O vencedor foi Daniel Ribeiro, que apresentou uma criação denominada “Poço de produção de ar comprimido”. Todos os vencedores receberam os diplomas pela mão do nosso príncipe Orlando.
Entre os membros da organização, os inventores e os espectadores, a opinião de que o evento foi produtivo é unânime. Aguarda-se com expectativa a próxima edição.

Esta notícia fictícia foi publicada no Almanaque de Steampunk 2012 da Clockwork Portugal: http://www.clockworkportugal.com/p/blog-page.html

quarta-feira, 12 de dezembro de 2012

Eternas Palavras - parte 2/2

A primeira parte deste conto pode ser encontrada em: http://pedro-cipriano.blogspot.pt/2012/12/eternas-palavras-parte-12.html


A discussão começou na manhã seguinte, ainda antes do pequeno-almoço.
– Tu és louco! Queres desgraçar-nos a todos! – acusou a mulher roliça de meia-idade, num tom mais agudo do que os seus ouvidos podiam suportar.
Ele olhara-a espantado através da porta da casa-de-banho.
– Olha que tu não te faças desentendido, carago! Porque é que trouxeste um livro proibido para casa? – prosseguiu Cidália, aproximando-se de Rui e baixando o tom.
– Não sei! – balbuciou, sem conseguir continuar a barbear-se.
– Como não sabes? Eu é que não sei! Tu nem sequer gostas de ler!
– Foi um impulso! – defendeu-se, encolhendo os ombros.
– E por causa dum impulso metes a família toda em perigo?
– Não pensei nisso...
– Tu nunca pensas em nada. Digo-te mais, o livro aqui em casa é que não fica.
– Mas...
– Não há mas nem meio mas, carago! Para casa com o livro é que não voltas.
– Como é que me vou livrar dele? Não posso simplesmente colocá-lo no lixo...
– Arranja-te! É o teu problema! – sentenciou a esposa, virando-lhe as costas.


***


Rui arrastava-se por entre a multidão. Era a hora de ponta matinal e o livro ainda estava na sua mala. Antes de sair, olhara para ele com um estranho sentimento de nostalgia. Era o “Viagens na Minha Terra” de Almeida Garrett. Nunca o tinha lido, nem tinha vontade de o fazer. Só não conseguia suportar a ideia de que iria ser destruído.
Aquele governo começava a oprimi-lo. Por causa da guerra tivera de abandonar o seu curso de engenharia. Servira duas vezes na linha do Mondego, primeiro contra os Franceses e depois contra os Lusitanos. A única recompensa que recebera fora um partido único e autoritário, permanentemente no poder.
De súbito, recebeu um encontrão violento e desequilibrou-se. Arrastou-se inclinado para a esquerda até cair num buraco.
– Cuidado, carago! – alguém gritou.
Rui tentava colocar-se de pé quando vários metros de terra se precipitaram sobre ele. De imediato perdeu os sentidos.


***


A primeira coisa que lhe ocorreu quando voltou a si foi a surpresa de ainda estar vivo. Estava coberto de lama até à cintura e a têmpora esquerda doía-lhe. Uma jovem enfermeira prestava-lhe auxílio no passeio e vários curiosos observavam.
Num instante de clareza, lembrou-se do livro e procurou pela mala. O nervosismo cresceu ao perceber que não estava com ele. Sabia que se caíra nas mãos de alguma autoridade ou bufo estava perdido. Constatou que talvez tivesse sido melhor ser enterrado vivo.
– Olha, a minha mala? – perguntou à trigueirinha de cabelos encaracolados.
– Qual mala? – inquiriu a enfermeira, piscando os olhos.
– Eu tinha uma mala comigo! – exaltou-se, levantando-se.
– Não sei de nada! E você vai ficar quieto até o médico chegar.
Mais vale enterrado que queimado, repetiu para si mesmo para se acalmar. Pelo menos ainda poderia ser encontrado mais tarde.
Pouco depois chegou o médico. Devido ao seu estado, Rui acabou por ser transportado para o hospital. Deveria permanecer internado até à manhã seguinte para observações.
Ao fim da tarde chegaram os agentes da PSI. Ambos vestiam fatos coçados pela idade e tinham óculos do período pré-guerra. As gravatas de cores díspares completavam o conjunto que duas décadas antes seria ridículo. Contudo, naquele momento, eram o pior pesadelo de Rui.
– Senhor Mendes, precisamos de falar consigo.
Forçou um sorriso. Achava que fora demasiado ingénuo ao pensar que poderia escapar. Porventura se confessasse de livre vontade, a pena não fosse tão pesada, assumiu desalentado. Ergueu a face e fitou -os. Enfrentaria o destino com dignidade.
– Nós achamos que o que lhe aconteceu não foi um acidente. Achamos que as suas funções como queimador de livros tiveram bastante relevância neste caso. Provavelmente você foi alvo de um atentado, mas pode ficar descansado que iremos encontrar o culpado e castigá-lo.
Rui respirou de alívio, tornara-se um rebelde sem querer.

Este conto foi publicado no blog Fantasy & Co: http://fantasy-and-co.blogspot.pt/2012/11/eternas-palavras-22-pedro-cipriano.html

segunda-feira, 10 de dezembro de 2012

Eternas Palavras - parte 1/2

Rui despejou o conteúdo da última caixa no meio da praça. As pessoas convergiam em passo lento para o amontoado de livros. Um monte que havia sido escrito por Pessoa, Eça, Saramago, Camões, Torga e muitos outros. Na sua maioria eram edições antigas, quase desengonçadas, mas havia também bastantes em bom estado.
Como empregado estatal, tinha de realizar este tipo de tarefas um par de vezes por semana. Era um trabalho como qualquer outro, pensou o funcionário de meia-idade, enquanto ensopava a pilha de papel em álcool.
Meia dúzia de soldados assegurava que ninguém interferisse com o evento. No meio da multidão que se juntara, estariam à paisana outros tantos agentes da PSI, a polícia de segurança interna. E claro, havia bufos um pouco por todo o lado. Ao estado, muito pouco escapava.
Olhou para o seu relógio e viu que eram 3 da tarde. Era o momento de dar início ao espectáculo. A chama propagou-se com facilidade do fósforo para as folhas. A multidão soltou urros quase frenéticos. Nunca percebera se eram de alegria ou revolta. O fogo alastrou-se e, foi então, que os livros começaram a voar. Rui deu uns passos prudentes afastando-se da fogueira.
Uma menina, com uns dez anos de idade, que estava nas primeiras filas começou a chorar. Fora atingida por um dos muitos livros que eram arremessados para a fogueira. Os gritos aumentaram de intensidade atingindo um êxtase colectivo, bem perto das fronteiras da loucura. Algumas pessoas haviam sido atingidas pelos projécteis que cruzavam o ar e mesmo esses estariam na próxima queima. Face a esses incidentes, os soldados nem se haviam movido. Tudo aquilo era normal.
Rui ficou feliz que nenhum desses escritores fosse vivo. Assim só se queimavam os livros.


***


Rui permaneceu de olhar fixo na caixa de madeira.
O estaleiro municipal estava vazio naquele fim de tarde de Domingo. Tudo estava arrumado no seu devido lugar, só não sabia o que fazer ao livro. O governo pseudodemocrático não proibia a posse de livros. Nem tão pouco a leitura e a discussão pública era desencorajada ou punida. Era uma sociedade mais fechada do que fora na sua juventude, mas ainda não chegara a extremos. O problema é que havia livros e livros. O que estava à sua frente pertencia à lista de incineração.
Pegou nele. Parecia estar em bom estado, somente a capa estava dobrada das pontas e as folhas amareladas. Havia algo naquele livro que o fascinava e foi nesse momento que decidiu levá-lo para casa. Olhou em volta e não viu ninguém. Num ápice, guardou-o na sua mala de trabalho.
Antes de passar pelos guardas já um suor frio lhe envolvia o corpo. Devia ser só a sua cabeça a pregar-lhe uma partida, reflectiu. Qual seria a probabilidade de o livro ali ter sido colocado em jeito de armadilha? Só de considerar a possibilidade, sentiu uma tontura momentânea. Estando já fora do edifício, era impossível voltar atrás.
Os guardas mandaram-no parar. O coração disparou, não era nada vulgar isso acontecer. Pediram-lhe a identificação. Nervoso como estava, quase não conseguiu retirar o cartão de funcionário. A qualquer momento eles iriam aperceber-se que estava a esconder algo.
O mais baixo observou com cuidado a credencial e depois pediu-lhe que abrisse a mala. Rui ponderou se haveria de correr. Não valia a pena, eles não teriam dificuldade em capturá-lo. Resignado, abriu a mala, amaldiçoando o momento em que agarrara o livro. Apetecia-lhe gritar para pararem de brincar com ele e só não o fez porque ainda tinha esperança de escapar.
O polícia observou cuidadosamente o interior do saco velho e gasto. Os dois sentinelas trocaram olhares. Rui quase desmaiou, face à possibilidade de ser detido a qualquer momento.
Com um ar aborrecido o agente levantou a mão, fazendo-lhe sinal para seguir. Rui não quis acreditar e, após um momento de hesitação, atravessou o portão. Se calhar, os guardas nem sabiam que livros estavam na lista de incineração.
Caminhou pelas ruas da capital em direcção à Baixa, pois não havia transportes públicos ao Domingo. A tarde estava agradável, adornada por uma temperatura amena de início de Outono. Era quase hora de jantar. Os passeios estavam praticamente vazios e poucos eram os veículos que cruzavam o pavimento. Com essa paz, Rui pôde perder-se nos seus pensamentos.
Tanta coisa havia mudado desde a Guerra Europeia de há 18 anos atrás. Tudo começara quando se ouviu nas ruas que Lisboa fora ocupada. Mesmo sem um governo, o povo quis lutar contra o invasor estrangeiro. Contudo, nem o fim da ocupação devolveu a união ao país. Ninguém percebera com que é que aquele governo chegara ao poder. Algo semelhante acontecera em Espanha, culminando com a junção do Norte com a região da Galiza. Essa divisão era o motivo pelo qual tudo o que invocasse o período em que Portugal era só um tinha de ser destruído.
Ao abrir a porta do apartamento, as suas narinas foram invadidas por um delicioso aroma a frango guisado. Rui estava feliz por não haver escassez de galináceos nesse ano. A falta crónica de alguns bens de consumo era o preço a pagar por viver num pequeno estado isolado do resto do mundo.
A sua esposa e os três filhos já estavam sentados à mesa. A fome que o consumia fê-lo logo esquecer o livro.


A segunda parte pode ser encontrada em: http://pedro-cipriano.blogspot.pt/2012/12/eternas-palavras-parte-22.html

Este conto foi publicado no blog Fantasy & Co: http://fantasy-and-co.blogspot.pt/2012/11/eternas-palavras-12-pedro-cipriano.html

segunda-feira, 3 de dezembro de 2012

A solução


O desfiladeiro aproximou-se. A maquilhagem estava toda borratada. Lá ao fundo, num mar revoltado e tempestuoso, estava a solução para os seus problemas. Já não havia lágrimas na sua face. Sentia uma calma como há muito tempo não desfrutava. Deu mais um passo em frente, ficando à beira do abismo. Debruçou-se sobre o oceano e olhou-o com atenção. Uma chuva miudinha começou a cair.

Ela sabia que era possível uma pessoa morrer por amor. Era um bom dia para isso voltar a acontecer. Não compreendia como é que ele a trocara por ela. Fosse como fosse, tinha de resolver o problema e iria fazê-lo naquele momento. Só havia uma coisa a fazer. Doía-lhe o coração só de pensar nas pessoas que iriam sofrer com a decisão dela. Se ainda fosse outra pessoa, ainda poderia esquecer ou ignorar. Desde sempre haviam sido as melhores amigas. Suprimiu as lágrimas e afastou-se da borda.

Abriu a porta do carro que estava parado a uma dezena de metros. Debruçando-se sobre o corpo da amiga libertou o travão de mão. O carro começou a descer o pelo terreno inclinado. Ela ficou a vê-lo precipitar-se pelo desfiladeiro.


Este conto foi escrito como desafio de um grupo de escrita.