sexta-feira, 31 de agosto de 2012

O dilema de Winrich - parte 1/2



A ultima vez que Winrich tinha olhado para o relógio faltavam poucos minutos para as cinco da manhã. Na verdade eram quase sete da manhã, contudo Hitler insistira para que as tropas na Rússia operassem no horário alemão. Estava nevoeiro e tinha recentemente começado a nevar. Devido às condições meteorológicas adversas dessa quinta-feira, era impossível ver mais que alguns metros de distância a partir da janela.

Este deserto gelado não era muito diferente do deserto africano onde passara os últimos meses, concluiu, eram ambos compostos maioritariamente por vastas regiões vazias, onde não havia nem água, nem árvores, nem povoações e muito menos pessoas. Eram as condições ideias para conduzir uma ofensiva blindada, dissertou com um ar sonhador.

Ele estava sentado numa das salas reservada ao serviço de informação. O posto de comando do Sexto Exército ficava ali mesmo ao lado, no mesmo edifício. Estavam instalados numa aldeia cossaca, chamada Golubinsky, localizada na margem Oeste do rio Don, à cerca de cinquenta quilómetros da cidade.

Winrich Behr era alto e magro. Tinha vinte e quatro anos e detinha o posto de Major. Nascera em Berlim, também filho de um militar. Tinha sido transferido para a equipa operacional de Paulus no inicio de Outubro, como oficial do serviço de informação.

Antes disso tinha servido no Norte de África, onde ganhara a Cruz de Ferro de primeira categoria, que agora usava orgulhosamente ao pescoço. Era conhecido pelo seu sempre presente sentido de humor. Tinha uma face longa, com uma grande testa, com um tufo de cabelo preto no topo. Os olhos castanhos escuros transmitiam vivacidade.

As coisas era geridas aqui de maneira muito diferente da Afrika Korps. Para começar Rommel e Paulus eram muito diferentes um do outro. Paulus era um general competente, ninguém lhe podia retirar isso, contudo tinha um respeito quase sacramental das regras, o que o tornava as suas acções um tanto previsíveis. Rommel, pelo contrário, gostava de torcer e, por vezes, até quebrar as regras, não se importando muito com a hierarquia. Paulus era conhecido por jogar pelo seguro, pensando calmamente nas vantagens e riscos, enquanto Rommel estava preparado para arriscar tudo em operações ousadas, em que a brutalidade e violência eram as palavras de ordem. Por vezes parecia-lhe que Rommel tinha mais a personalidade de general do que Paulus, que ainda mostrava esporadicamente comportamentos de oficial. Se lhe pedissem para descrever numa palavra cada um dos homens, Rommel seria um artista enquanto Paulus seria um cientista. Ambas as personalidades tinham as suas vantagens e desvantagens, concluiu, e sem dúvida ambos dariam o seu melhor pela Alemanha.

A morte súbita e inesperada do general von Riechenau fora uma tragédia, que acabara por levar à promoção de Paulus, tornado-o comandante do Sexto Exército.

Ouviu o relógio assinalar as cinco da manhã.

A campanha bem sucedida em África nunca teria sido possível caso Paulus fosse o comandante, contudo, nem mesmo Rommel a conseguira levar a bom termo, apesar de ter ficado bem perto. As batalhas vitoriosas que travara, muitas vezes em inferioridade numérica e, quase sempre, com falta de abastecimento, ficariam sem dúvida na história. O único espinho na sua carreira era El Almein, onde o seu avanço fora travado. Novidades de uma nova batalha nesse local andavam na boca de todos. A verdade era dolorosa e ninguém queria acreditar que Rommel tivesse sido novamente derrotado.

Winrich ouviu o telefone tocar. Os seus pensamentos desfizeram-se imediatamente no éter, enquanto se apressava a atende-lo.

― Daqui Tenente Stöck. ― comunicaram do outro lado.

― Daqui Major Behr, estou a receber, qual é a situação?

Winrich abriu o livro onde deveria registar todas as comunicações, pegou num lápis, registou a hora e preparou-se para escrever.

O telefonema vinha da parte do vencedor da medalha de ouro nos jogos Olímpicos de 1936, em Berlim. Gerhard Stöck contara que, depois quatro lançamentos fracos, estava em quinto lugar. Contudo, nesse momento Hitler chegara ao estádio e a multidão aplaudira-o efusivamente. Isso motivou-o de tal modo que conseguiu fazer um lançamento de quase setenta e dois metros, ultrapassando o segundo lugar por mais de um metro, garantindo assim a medalha de ouro.

A prática do envio de oficiais de ligação fora proibida por Hitler contudo, os outros oficiais conseguiram convencer o General Schmidt das vantagens deste pequeno desrespeito das regras. Deste modo, Gerhard fora enviado com um rádio sem fios ao Quarto Corpo de Exército Romeno, estacionado na região a Noroeste da cidade, melhorando significativamente a comunicação entre as duas unidades.

― De acordo com a confissão de um oficial russo, capturado na área da Primeira Divisão de Cavalaria Romena, é esperado um ataque hoje as cinco da manhã.

― Já passa das cinco, há algum sinal duma ofensiva? ― respondeu Winrich, confirmando mais uma vez as horas.

― Ainda nada, tudo calmo. ― respondeu-lhe.

― Parece-me que é outro falso alarme dos romenos. Mas, ficou aqui registado.― concluiu Winrich, pensando tratar-se de outro falso alarme.

― Entendido. ― confirmou e de seguida desligou.

Winrich não sabia o que deveria fazer ou se realmente teria de fazer algo, por isso permaneceu no seu lugar, reflectindo sobre a informação recebida.



Este capítulo foi retirado do primeiro livro da trilogia de Estalinegrado, porque não estava relacionado directamente com as personagens principais. Apenas o publico aqui num exercício de pesquisa e ambientação do resto do livro.

quarta-feira, 29 de agosto de 2012

A Presença


A presença


Diário de Jessica Amaral

12 de Maio – O meu marido acordou novamente cansado, segundo ele, “ainda mais cansado do que se havia deitado”. Aparenta estar um pouco abatido. Se calhar devia obrigá-lo a consultar um médico.

13 de Maio – Ontem não consegui convencê-lo a ser consultado. Hoje farei um cozido à portuguesa para o nosso jantar. Pode ser que com o seu prato favorito ele me dê ouvidos.

14 de Maio – A visita ao médico não foi conclusiva. Não parece haver nada de errado com ele, talvez seja apenas cansaço. Vou tentar convencê-lo a trabalhar menos horas. Quase de certeza que a culpa é do patrão, aquele palhaço.

15 de Maio – Ele desmaiou no trabalho. O médico deu-lhe uma semana de baixa. Ele parece andar muito mais pálido.

16 de Maio – Ele acordou muito melhor, quase parecia outro. Está confirmado que era o trabalho que andava a dar cabo dele.

17 de Maio – Hoje ele estava abatido e apático. Vamos consultar o médico outra novamente.

18 de Maio – O médico, aliás, os médicos que o observaram ficaram admirados com o estado de saúde dele. Eles acham que deve ser algum problema metabólico. A partir de agora, ele deverá consumir o dobro das calorias para ver se isso o ajuda.

19 de Maio – Um dia com a nova dieta e já se notam alguns resultados positivos. Ele hoje até quis dar um passeio pelo parque. Está muito mais animado.

20 de Maio – O estado voltou a deteriorar-se. Não consigo compreender, vou ficar acordada durante a noite caso ele precise de alguma coisa.

21 de Maio – A noite foi muito estranha. Quando dei por mim tinha adormecido. Ao acordar, vi uma névoa azul a pairar sobre ele. O susto foi tão grande que não pude evitar gritar. Depois foi muito confuso, porque não se viu mais a névoa e ele acordou. Deve ter sido só um pesadelo.

22 de Maio – Voltei a acordar a meio da noite e voltei a ver aquela névoa azul. Algo me diz que não é um sonho e que aquilo é o responsável pela doença do meu marido.

23 de Maio – Eu não sou supersticiosa, mas esta situação deixa-me assustada. Voltei a ver o espírito. Aproximei-me para ver se era real ou não, mas quando estava perto algo me empurrou violentamente contra o sofá. Logo à noite tentarei expulsá-lo. Disseram-me para lhe atirar com água benta. Fui a igreja buscar um frasquinho dela. Esta noite estarei preparada. Deus me proteja desta influência maligna.


Jornal de Notícias, 25 de Maio

Duplo Homicídio em Tavira

Na tarde passada um casal na casa dos quarenta foi encontrado morto por uma vizinha. Não tivemos acesso ao local do crime, mas o comandante da GNR, o tenente Abílio Matos, descreveu-nos como sendo um horror e que a mulher fora desmembrada. Não houve qualquer porta arrombada ou sinais de intrusão. As autoridades descartaram a hipótese de roubo e garantiram que iriam investigar cuidadosamente o caso.

Este texto foi escrito como trabalho de um grupo de escrita.

segunda-feira, 27 de agosto de 2012

A selva

Nada deixava Guchu mais deprimido do que relembrar os três anos que passara naquele planeta azul. Poderia até ser interessante a posição de diplomata numa civilização de macacos, contudo, as suas atitudes deixavam-no quase sempre à beira de um ataque de fúria. Felizmente, a manhã estava solarenga e a comissão terminava nesse dia. O seu transporte não tardaria.

À primeira vista até se podia pensar que estávamos perante uma civilização evoluída e inteligente. Havia uma sociedade e a tecnologia desenvolvia-se a bom ritmo. Ainda bem que o tinham enviado, caso contrário iriam achar que estavam perante seres sofisticados.

A coisa mais irritante acerca daqueles macacos era sem dúvida o cuidado que tinham em manter certos rituais obsoletos. Todas aquelas formas demoradas de cumprimento esgotavam rapidamente a sua paciência.

A segunda coisa era no mínimo idiota, pois aqueles macacos adoravam manter aparências. Uma facção podia estar no limiar da pobreza ou derrota, contudo os seus líderes comportavam-se como se nada se passasse. Mais valia manter as aparências na queda do que descuidar o sorriso na vitória.

A última, e não menos ridícula, era o facto destes primatas passarem grande parte do tempo a tentarem enganar-se uns aos outros. Todas as regras e costumes eram tais que era sempre possível tirar partido do outro de maneiras muito pouco claras e nada justas. Este tipo de falcatruas era bastante frequente.

Apesar da bazófia e de se acharem com um grande poderio militar e armas devastadoras, estes mamíferos não faziam ideia do que se passava no resto do universo. Se imaginassem, nunca quereriam deixar aquela rocha periférica. No somatório de tudo, se lhe pedissem um relatório detalhado, ele poderia resumir a sua experiência, em jeito de anedota, numa palavra “inofensivo”.

Naquele momento recebeu uma mensagem, avisando-o que rebentara uma nova guerra no sector Gamma contra os lagartos e que os transportes poderiam estar condicionados durante a duração do conflito. Pouco depois recebeu outra e quase adivinhou o seu conteúdo. A missiva informava-o que acabara de ser promovido e que a sua comissão se prolongaria por outros três anos.

Frustrado, passou o resto do dia a escrever um relatório detalhado sobre o que se passara durante os últimos 36 meses. Já caíra a noite quando ele o leu e alterou pela última vez. Então, num instante de fúria, apagou todo o texto e enviou apenas “Inofensivo e primitivo. Tirem-me daqui!”.

Este texto foi escrito como trabalho de um grupo de escrita.

sexta-feira, 24 de agosto de 2012

Nem mais um passo atrás! - parte 3/3


O início está presente em: http://pedro-cipriano.blogspot.co.uk/2012/08/nem-mais-um-passo-atras-primeira-parte.html

A segunda parte pode ser encontrada em: http://pedro-cipriano.blogspot.co.uk/2012/08/nem-mais-um-passo-atras-segunda-parte.html

Os relatórios das preparações alemãs continuaram a chegar mas, como ditador autoritário, não pudera crer que a situação pudesse ficar fora do seu controlo. Quando finalmente se convenceu que a invasão era iminente, dera as ordens para ficarem em alerta máximo contra uma ofensiva. Muitos dos oficiais da marinha e do exército simplesmente ignoraram-nas, por não acreditarem nessa possibilidade. Para a maioria das unidades, a ordem não chegou sequer a tempo.
Quando as notícias catastróficas da invasão chegaram aos seus ouvidos, ele simplesmente se deixara afundar na cadeira, ficando calado. Se o avanço alemão se tivesse mantido com a mesma velocidade, teria chegado a Moscovo em poucas semanas, como fizera em França. As suas assumpções erradas e maus cálculos tinham-no levado àquele ponto, e o pior era que, em grande parte, a culpa fora sua. Durante as primeiras horas, face aos relatórios desastrosos da frente, até considerara a hipótese duma tentativa de acordo de paz com a Alemanha, concedendo os territórios dos países de Leste.
A Rússia perdera quantidades gigantescas de homens e material nos primeiros dias da guerra. Naquele momento, mais de um ano depois, estava em risco não só o plano, como também a sobrevivência da própria nação.
Ioseb soubera exactamente quais as forças dos alemães e quais as suas, previra uma vitória fácil, mas não havia sido esse o resultado. O factor surpresa, aliado a tácticas militares mais avançadas, fora decisivo. Definitivamente, tinha sobrestimado a sua força militar e subestimado a do inimigo. Tinha ignorado os sinais antes da invasão, pensando não passarem de um jogo político de Hitler para ganhar mais alguns territórios.
Ioseb ainda não se convencera totalmente que a sua interferência política no exército, durante os anos 30, pudesse ter sido o ponto de partida para esta situação, apesar de saber que algumas pessoas fossem secretamente dessa opinião.
A culpa era, sem dúvida, do exército, que não cumprira o seu propósito. Tinha enviado divisão atrás de divisão contra os alemães no ano anterior, tudo sem qualquer resultado aparente, nada tinha sido capaz de pará-los. Corriam informações controversas de que alguns russos não só se haviam rendido, como haviam escolhido lutar ao lado dos alemães. Era verdadeiramente ultrajante alguém trair assim a Terra-Mãe.
O problema da disciplina era o único que poderia resolver naquele momento, esperando que isso fosse suficiente para virar o rumo dos acontecimentos.
― Faltam-nos ordem e disciplina nas companhias, nos regimentos e nas divisões, nas unidades blindadas e nos esquadrões da Força Aérea. Esta é a nossa maior falha. Temos que introduzir a mais precisa e forte disciplina no nosso exército, se queremos salvar a situação e defender a Terra-Mãe. Não podemos mais tolerar comandantes, comissários e oficiais políticos cujas unidades deixam a defesa relaxar. Não podemos mais tolerar o facto de que comandantes, comissários e oficiais políticos deixem os cobardes mandarem no campo de batalha, que os vendilhões de pânico levem outros soldados na sua fuga e deixem o caminho aberto para os inimigos. A partir de agora, vendilhões de pânico e cobardes deverão ser mortos no local.
Ioseb iria basear-se no que os alemães haviam feito para aumentar a disciplina na Wehrmacht. Bastava copiar a solução deles e aplicá-la no exército russo. Deveriam remover as insígnias a cada um desses militares e enviá-los para batalhões penais. A ideia da redenção através do sangue agradava-lhe bastante. Se resultara com a Alemanha, porque não haveria de resultar na União Soviética?
― A partir de agora, a disciplina será aplicada rigorosamente a cada oficial, soldado e oficial político. A partir de agora, nem um passo atrás sem ordem superior. Os comandantes de companhias, batalhões, regimentos e divisões, assim como os comissários e os oficiais políticos das patentes correspondentes, que recuarem sem ordens superiores, serão denominados traidores à Terra-Mãe. Serão tratados como traidores da Terra Mãe. Isto é um chamado da nossa Terra-Mãe. Cumprir esta ordem significa defender a nossa nação, salvar a nossa Terra-Mãe, ultrapassar e destruir o nosso odiado inimigo.
Esses batalhões penais seriam colocados nas secções mais perigosas da frente. Lavariam as suas faltas com o seu sangue. Iria guardar esses batalhões com outros batalhões mais leais e mais bem armados, que disparariam contra quem tentasse fugir. Não iria deixar que os alemães atravessassem o rio Volga, era altura de mudar o rumo aos acontecimentos.
Terminou as alterações ao discurso, especialmente nos detalhes em relação às medidas a aplicar. Devolveu os papéis a Aleksandr que voltou a deixar a sala.
Duas horas mais tarde, Aleksandr voltou com o documento corrigido e dactilografado. Ioseb Stalin assinou então o documento que ficou oficialmente conhecido como ordem número 227; porém, para o comum dos soldados, a ordem ficara conhecida como “Nem mais um passo atrás!”, uma ordem que seria apreciada por poucos e temida por muitos.


FIM

Este capítulo foi retirado do primeiro livro da trilogia de Estalinegrado, porque não estava relacionado directamente com as personagens principais. Apenas o publico aqui num exercício de pesquisa e ambientação do resto do livro.

quarta-feira, 22 de agosto de 2012

Nem mais um passo atrás! - parte 2/3


A primeira parte pode ser encontrada em: http://pedro-cipriano.blogspot.co.uk/2012/08/nem-mais-um-passo-atras-primeira-parte.html

― Cada comandante, soldado e comissário tem que entender que os nossos recursos não são infinitos. O território da União Soviética não é uma vastidão selvagem, pois está povoado por pessoas: trabalhadores, aldeões, intelectuais, os nossos pais e nossas mães, esposas, irmãos e crianças. O território da Rússia capturado pelo inimigo é pão e outros recursos para o exército e cidadãos, ferro e combustível para as indústrias, fábricas que fornecem os militares com equipamento e munições; e também caminhos-de-ferro. Já não temos superioridade sobre o inimigo em recursos e abastecimento de pão. Prosseguir com a retirada significa destruirmos-nos a nós mesmos e à nossa Terra-Mãe. Cada novo pedaço de território que deixamos ao inimigo deixa-os mais fortes e, a nós, às nossas defesas e à nossa Terra-Mãe, mais fracos.
Emocionou-se ligeiramente. O seu próprio filho havia sido capturado pelos Nazis no ano anterior. Não que se sentisse realmente ligado ao seu filho Yakov, somente porque ele era o último traço da única mulher que Ioseb alguma vez amara.
Pensou como sentia a falta de Ekaterina. Perguntava-se sobre o porquê duma morte tão prematura. Após o casamento, haviam tido somente quatro anos juntos, antes de ela morrer de tifo. Os momentos que partilharam foram tão felizes como efémeros. Ioseb não conseguia ficar indiferente àquelas memórias.
Infelizmente, o filho que ela deixara no mundo não era um exemplo para ninguém. Era absolutamente humilhante relembrar o dia em que se tentara suicidar devido a um desentendimento com um rabo de saias. Nem tão pouco conseguira apontar correctamente a pistola, de modo que falhara. Pior que esse episódio era o facto de se ter deixado capturar vivo pelos alemães.
Não podia deixar-se amolecer com aqueles sentimentos nostálgicos. Também ele estivera preso em campos de concentração por três vezes, sendo libertado somente numa delas; nas outras duas, conseguira escapar pelos seus próprios meios. Yakov era um inútil, concluiu, e um traidor por se deixar capturar tão facilmente pelos Nazis. Deveria ter lutado até a morte como qualquer soldado russo que amasse a Terra-Mãe. Envergonhava-o o facto de ter um filho assim. Como pai, não fora fácil, no entanto, já há meses que tinha tomado a decisão de rejeitar todas as propostas de troca por outros prisioneiros. Não iria ter um tratamento preferencial só por ser seu filho.
Ioseb voltou ao discurso, já tinha um lema na cabeça para dar vida a esta ordem. Sabia que não seria a primeira pessoa a usar essas palavras, no entanto, cabia-lhe usá-las novamente para inspirar o povo russo, como outros líderes já haviam feito com os seus povos. Acrescentou as duas linhas no texto, lançando um slogan:
― A conclusão é que é a altura para parar de fugir. Nem mais um passo atrás! Este será o nosso lema daqui em diante.
Ele sabia que teria de aproveitar o lema que acabara de introduzir e, por isso, modificou o texto que vinha no parágrafo seguinte.
― Temos de proteger cada fortaleza, teimosamente cada metro de solo Soviético, até à última gota de sangue; agarrar cada peça do nosso solo e defendê-lo enquanto for possível. A nossa Terra-Mãe irá passar tempos difíceis. Temos que os parar e, depois, mandá-los de volta e destruir o inimigo a qualquer custo. Os alemães não são tão fortes como os vendilhões de pânico dizem. Eles estão a esticar a sua força ao limite. Aguentar o seu golpe agora significa assegurar a vitória no futuro.
Ioseb ainda se lembrava do plano original para submeter completamente a Europa: apoiar diplomaticamente os alemães, encorajando-os para uma guerra. Os banqueiros ingleses e americanos estavam a agir do mesmo modo, apoiando a Alemanha economicamente. A Rússia fizera o melhor que podia ter fazer naquele ponto: manter-se neutra. Eventualmente, quando reunissem as condições necessárias, os Nazis iriam querer vingar-se da derrota que haviam sofrido na guerra anterior, atacando a França, Polónia e talvez o Reino Unido.
O plano era deixar os europeus lutarem entre si até estarem completamente esgotados e, no fim, atacaria a Alemanha e ocuparia esses países. A Rússia seria vista como arauto da paz e a salvadora da tirania Nazi e, provavelmente, poderia ocupar efectivamente esses países ou, pelo menos, torná-los estados semi-dependentes. Era a maneira mais fácil de expandir a esfera de influência da União Soviética e espalhar os ideias do comunismo, que eram, sem dúvida, melhores que o paradigma do capitalismo.
Claramente tinha subestimado a intuição de Hitler pois, de algum modo, ele tinha previsto o seu plano e antecipado uma resposta, atacando a União Soviética duma forma inesperada.
Os alemães não haviam feito muito esforço para esconder as preparações para o ataque, o que lhe fez crer que era apenas mais uma jogada política para conseguir a cedência de alguns territórios nos países de leste. O voo de Rudolf Hess para o Reino Unido só fazia com que a suspeita duma conspiração Germano-Britânica contra a Rússia ganhasse força na sua cabeça. O facto do embaixador alemão em Moscovo ter revelado os planos de Hitler uns dias antes só fez com que a situação parecesse cada vez mais uma conspiração. Chegou ao ponto de ele ter explodido de raiva, declarando que a desinformação chegara ao nível dos embaixadores. Até ao último momento, não considerara a hipótese duma invasão alemã, e ficara com receio de provocar a Alemanha, porque sabia que ainda era muito cedo para a Rússia a desafiar.
 
A terceira parte está disponível em: http://pedro-cipriano.blogspot.co.uk/2012/08/nem-mais-um-passo-atras-terceira-e.html

Este capítulo foi retirado do primeiro livro da trilogia de Estalinegrado, porque não estava relacionado directamente com as personagens principais. Apenas o publico aqui num exercício de pesquisa e ambientação do resto do livro.

segunda-feira, 20 de agosto de 2012

Nem mais um passo atrás! - parte 1/3


O dia tinha começado para Ioseb quando Aleksandr iniciou a leitura do seu relatório sobre a queda de Rostov. Ioseb sabia que a situação era crítica, pois o país corria um sério risco de ser cortado em dois e, se isso acontecesse, não poderiam receber mais ajuda inglesa nem americana.
Tinha bebido demasiado vinho na noite anterior mas, ao contrário do que muitos pensavam, o vinho aclarava-lhe as ideias ao invés das turvar. Era certamente um vício, mas sabia que conseguia controlá-lo na perfeição. Ioseb deu por si a olhar para o cabelo de Aleksandr enquanto ele expunha a situação, tentando perceber o porquê de usá-lo penteado para a esquerda, de uma maneira que considerava verdadeiramente ridícula.
― Espera lá! Repete o que disseste. ― ordenou Ioseb, subitamente alerta.
Aleksandr repetiu enquanto Ioseb se esforçava por se concentrar, andando para a frente e para trás na sala. Ao ouvir novamente, confirmou as suspeitas fundamentadas nos fragmentos que captara da primeira leitura.
― Esqueceram-se da minha ordem para as forças armadas! ― exaltou-se subitamente, interrompendo a leitura Referia-se à ordem que dera em Agosto passado, que definia o modo de lidar com desertores.
Aleksandr ficou estático, esperando que Ioseb continuasse.
― Esqueceram-na! ― repetiu, como se quisesse convencer-se a si mesmo.
A cabeça de Aleksandr fervilhava, tentando encontrar uma boa desculpa. Não fazia parte dos seus planos ser executado por traição.
― Escreve outra nos mesmos moldes! ― ordenou, virando-se para Aleksandr.
― Para quando quer que esteja pronta? ― perguntou Aleksandr, aliviado pela súbita mudança de atitude.
― Hoje! Avisa-me directamente assim que esteja pronta! ― ordenou Ioseb, ainda pensativo.
Ioseb passou o resto da manhã a divagar mentalmente, imaginando como seria bom poder ver um filme de cowboys acompanhado pelos outros membros do partido. Não que muitos fossem realmente seus amigos, a maioria esperava somente um momento de fraqueza da sua parte para ficarem com o seu lugar. Olhou várias vezes pela janela, para vislumbrar as ruas da capital russa, as quais haviam escapado à águia Nazi no ano anterior, quase por milagre. Tinha esperança de conseguir deter a campanha dos alemães daquele ano, sem ceder muito território. A estratégia de esgotá-los ao ponto da ruptura não havia tido resultados positivos até ao momento. As divisões alemãs avançavam impiedosamente, sem terem grandes perdas materiais nem humanas. Para além disso, Estalinegrado, a cidade que fora renomeada em sua honra, estava perigosamente exposta. Não havia maneira de ficar indiferente aos acontecimentos.
Quando Aleksandr voltou, já à tarde, com um rascunho da ordem, Ioseb não perdeu tempo. Pegou na folha de papel dactilografada e começou a lê-la em voz alta, como se fosse ele mesmo a dar o discurso pessoalmente a todo o Exército Vermelho. Ajudava-o a perceber os defeitos do texto.
― O inimigo usa cada vez mais e mais recursos na frente de batalha e, não prestando atenção às perdas, movimenta-se, penetra mais fundo na União Soviética, captura novas áreas, devasta e saqueia as nossas cidades e aldeias, viola, mata e rouba o povo soviético. Algumas unidades na frente Sul, seguindo as sugestões dos vendilhões de pânico, abandonaram Rostov e Novocherkassk sem uma resistência séria, nem qualquer ordem de Moscovo, cobrindo, assim, de vergonha os seus estandartes.
Aquelas palavras iriam inflamar o patriotismo. Era um bom início, pois era necessário fundamentar a ordem. Os tempos eram demasiado difíceis e, se deixassem de obedecer às suas ordens, seria o completo desastre. Nem sempre as ordens careciam de uma explicação propriamente dita, a maioria das vezes bastava uma motivação. Invocar o patriotismo era premissa mais que suficiente para todo o tipo de exigências. Naquele momento, cada ordem fazia a diferença entre a derrota e a vitória, pois nunca a União Soviética estivera tão perto de ser derrotada, nem mesmo no Verão anterior, quando os alemães chegaram às portas de Moscovo.
― A população do nosso país, que ama e respeita o Exército Vermelho, está a ficar desapontada com ele, perdendo gradualmente a fé no mesmo. Muitos amaldiçoam o Exército por fugir para Este e deixar a população debaixo das garras dos alemães.
Isto deveria convencer, mesmo os mais pacíficos, de que a situação não se resolveria com medidas suaves, sem criticar em demasia o exército. Estava satisfeito com o resultado.
― Algumas pessoas na frente confortam-se com argumentos descuidados, afirmando que podemos continuar a fugir para Este, pois temos um território vasto com muito solo e pessoas, e que teremos sempre abundância de pão. Com tais argumentos, eles tentam justificar o seu vergonhoso comportamento na frente. Esses argumentos são totalmente falsos, errados, e só favorecem os nossos inimigos.
Fez uma pausa. Parecia-lhe adequado, deveriam mostrar a todos que os que defendiam que a situação se poderia manter daquela forma eram inimigos da nação. No entanto, esta parte do discurso não podia ser muito dura, pois tinham primeiro que ganhar a simpatia dos que ainda eram leais à nação, convencendo-os que algumas coisas teriam de ser alteradas. Só mais tarde é que iriam impor as novas regras, quando estivessem prontos a aceitá-las.
Ao ler o parágrafo seguinte, ficou desapontado. Aleksandr tinha-se limitado a citar os factos duma maneira ingénua e simplista. Não bastava revelar simplesmente a verdade, era também necessário exagerá-la um pouco, quase ao ponto duma dramatização. Fez algumas alterações ao parágrafo e voltou a lê-lo em voz alta, de modo a testar o seu efeito.

Podem encontrar a segunda parte em: http://pedro-cipriano.blogspot.co.uk/2012/08/nem-mais-um-passo-atras-segunda-parte.html


Este capítulo foi retirado do primeiro livro da trilogia de Estalinegrado, porque não estava relacionado directamente com as personagens principais. Apenas o publico aqui num exercício de pesquisa e ambientação do resto do livro.

sexta-feira, 17 de agosto de 2012

O Duende


Naquele dia Carlos não conduzia o seu habitual carro de patrulha. Não estava de serviço, nem tão pouco poderia alguma vez explicar aos seus superiores o que tinha em mente para aquele fim-de-tarde. O sol ainda ai alto quando o quarentão saiu da esquadra para procurar o Duende.

É certo e sabido que os duendes são criaturas baixas, que andam por aí a assobiar, sempre prontos a pregar alguma partida, quais crianças travessas. Tudo isso era irrelevante, já que a única coisa que interessava aquele policia de meia idade era justamente o prémio que se obtêm quando se captura uma dessas criaturas. Se por acaso alguém lhe lesse os pensamentos naquele momento, iria certamente achar que estava na presença de um lunático.

Conduziu até à zona adjacente à zona de risco. Mais não se atrevia, pois conheciam a sua face e a última coisa que queria era ser apanhado por algum gangue. Enquanto fosse dia e se mantivesse neste bairro, não haveria problemas. Estacionou perto da escola e saiu do carro. Olhou em volta e com um ar confiante colocou os óculos escuros. Era a altura do espectáculo.

A qualquer momento os alunos iriam sair das aulas e com eles apareceria o Duende. Se o apanhasse, poderia finalmente pagar as duas prestações da casa que tinha em atraso. Fez o melhor que conseguiu para se fundir no ambiente e não chamar às atenções.

Num instante o pátio da secundária e a saída foram invadidos por uma multidão jovem. Carlos começou a entrar em pânico, o que lhe parecera fácil, estava a complicar-se a olhos vistos. O tentava perscrutar cada uma das faces, mas com tanto movimento, a tarefa era praticamente impossível.

Quando estava prestes a desistir, notou algo estranho pelo canto do olho. Um baixote, vestido com trapos coloridos e um chapéu esquisito. Passaria por uma criança em ponto grande ou um jovem com problemas mentais. Assobiava e caminhava alegremente em direcção à entrada.

O agente começou a caminhar na direcção do Duende, tentando parecer casual. Todos continuavam a desempenhar descontraidamente as suas rotinas e ninguém parecia ter ainda dado pela presença de ambos. Tudo pararia se soubessem a tensão daquele momento.

– Anda comigo, precisamos de falar. – ordenou Carlos, pegando o Duende pelo braço.

– Eu não fiz nada... – respondeu-lhe o jovem, entre o surpreendido e o assustado.

– Não te vai acontecer nada se fizeres o que te mando... – e aproximando-se do ouvido do rapaz, segredou-lhe – Estou armado, por isso não tentes nenhuma graçola.

O rapaz acenou afirmativamente com a cabeça. Tudo correra como previsto, pensou o polícia enquanto os dois se dirigiam ao carro, já que somente meia dúzia de pessoas se tinha apercebido.

– Ora bem, tu tens duas hipóteses. Primeira, tu dás-me o dinheiro do produto que andas a vender. Eu não te conheço, tu não me conheces e a história acaba bem. Segunda, a história acaba mal.

Felizmente para ambos, o Duende decidira pelo final feliz e assim Carlos pode pagar uma das prestações em atraso.


Este texto foi escrito como trabalho de um grupo de escrita.

quarta-feira, 15 de agosto de 2012

O dia em que choveu fogo - parte 5/5



O início deste conto pode ser encontrado em: http://pedro-cipriano.blogspot.de/2012/08/o-dia-em-que-choveu-fogo-primeira-parte.html

A quarta parte está disponível em: http://pedro-cipriano.blogspot.de/2012/08/o-dia-em-que-choveu-fogo-quarta-parte.html

Num gesto quase mecânico, como se fosse um espectador das suas próprias acções, puxou o cordão do explosivo. Sem apreender totalmente a noção do que fizera, saltara para fora da trincheira. Correu meia dúzia de passos e estendeu-se ao comprido no chão. Esperou pela explosão.
Nada aconteceu. Percebeu que nem sequer sabia quanto tempo é que demorava depois de se puxar o cordel. Tendo em conta o estado do equipamento que lhe haviam dado, era provável que a granada nem sequer funcionasse. Outra possibilidade era de que nem sequer tivesse activado o mecanismo correctamente. No momento em que tomou consciência que os seus companheiros ainda estavam no buraco, o coração falhou-lhe uma batida. Tinha de voltar atrás e desarmar a bomba antes que ferisse alguém que não fosse suposto.
No instante em que se ia levantar, o engenho deflagrou. A luz e o som da explosão duraram apenas uma fracção de segundo. Sentiu o deslocamento violento do ar e um zumbido nos seus ouvidos. Era tarde demais. Quaisquer que fossem as consequências, não podiam mais ser evitadas.
Os outros soldados acordaram abruptamente. Durante longos momentos, houve um silêncio mortal, enquanto se escondiam nas trincheiras.
- Olhem, este aqui foi atingido – ouviu de dentro da trincheira.
Alexey pôs-se de pé e aproximou-se. Em poucos segundos, juntaram-se duas dezenas de pessoas em volta.
O braço estava desfeito, tendo os pedaços de músculo e osso sido espalhados em volta. O pescoço estava torcido num ângulo estranho e o crânio estava aberto. Parte da massa encefálica tinha sido derramada por cima da terra seca. O sangue e a poeira formavam uma pasta densa. Não havia dúvidas de que estava morto.
Ninguém levantou a hipótese de homicídio e todos culparam prontamente os alemães. Por entre os soldados, ele tremia, temendo ser apanhado a qualquer instante .
Antes de voltarem a adormecer, mudaram o corpo para dentro de uma cratera e deitaram terra sobre o sangue. Alexey apanhou vários sustos durante o processo, pois parecia-lhe que, a cada momento, o poderiam denunciar. Meia hora depois, à excepção dele e dos sentinelas, todos tinham adormecido.
Tinha acabado de matar. Ao fechar os olhos, conjurou involuntariamente a imagem do corpo desfeito. Achava que o tinha feito por necessidade, mas nem disso tinha certeza. Não era remorso que sentia, era medo de ser apanhado. A luz do dia iria revelar detalhes que tinham escapado durante a noite. O tenente não aceitaria a hipótese de acidente sem se questionar. Bastava que o interrogasse para que a verdade fosse descoberta. O terror que sentia só era comparável ao do bombardeamento. Por um momento, teve esperança de poder defender a sua posição e declarar que apenas se defendera. A ilusão durou pouco tempo, já que estava perfeitamente consciente da indiferença que existia na cadeia de comando. Culpado ou não, seria usado como exemplo para os restantes, sofrendo uma punição severa. Estremeceu violentamente ao imaginar o seu próprio fuzilamento.
Precisava de reagir, já que não queria ficar parado e esperar por aquilo que o destino lhe reservasse. Quase inconscientemente, começou a rastejar pela vala para Sul, esperando que ninguém desse conta. Suspeitando que os soldados de guarda estavam quase a dormir, atravessou por entre eles sem os alertar. Arrastou-se outras duas centenas de metros até se poder esconder por detrás de umas sebes.
Recuperou o fôlego durante um momento, apercebendo-se que tinha os cotovelos e as mãos em ferida. O véu da noite caia, dando lugar ao lusco-fusco cinzento que antecede o dia. O céu estava limpo, adivinhando outro dia quente.
Sabia que não podia esperar mais e, por isso, desatou a correr em direcção às linhas alemãs.

FIM

segunda-feira, 13 de agosto de 2012

O dia em que choveu fogo - parte 4/5


A primeira parte está aqui: http://pedro-cipriano.blogspot.de/2012/08/o-dia-em-que-choveu-fogo-primeira-parte.html
A terceira parte pode ser encontrada em: http://pedro-cipriano.blogspot.de/2012/08/o-dia-em-que-choveu-fogo-parte-35.html

Virou-se para o outro lado e tentou adormecer. Estava cansado, contudo, os nervos não o deixaram pregar olho durante longos minutos. Quando cedeu à fadiga, de lágrimas nos olhos, caiu num sono agitado.
Não sabendo ao certo se estava acordado ou a sonhar, viu o vulto do brigão a inclinar-se sobre ele e percebeu que ele iria agredi-lo. Tentou resistir, encolhendo-se ao sentir as mãos no seu pescoço. Agarrou os pulsos de quem o tentava sufocar, enquanto esperneava. Os braços do oponente pareciam feitos de aço e a pressão parecia a de uma máquina. Sentia-se asfixiar lentamente e todas a suas tentativas de se libertar tinham sido em vão. Então ouviu uma gargalhada maquiavélica e percebeu que era o fim. Quando acordou, estava coberto de suor.
A primeira coisa em que reparou foi que tudo estava muito mais silencioso. Aparentemente os combates haviam cessado e à excepção de algumas brasas incandescentes, a fogueira tinha-se extinguido. Todos dormiam tranquilamente.
Ao olhar para o brigão que dormia tranquilamente a seu lado, sentiu uma raiva enorme. Queria vingança, todavia não sabia como levá-la a cabo. Podia aproveitar-se do sono para o agredir, mas isso só lhe daria uma vantagem momentânea. Era inútil divagar sobre uma retaliação imaginária, pensou. O melhor a fazer seria dormir enquanto pudesse.
Ao virar-se, sentiu um alto sólido e desconfortável. Com os dedos, palpou o objecto, descobrindo que se trava de uma pedra. Desenterrou-a e pegou nela, notando que pesava à vontade meio quilo. De súbito, teve uma ideia. Podia servir-se de uma arma para ter vantagem. Um par de pedradas bem dadas certamente que o colocariam fora de combate. Precisava somente de uma pedra mais pesada, de modo a neutralizar o rufia no primeiro golpe. Foi isso que procurou nos momentos seguintes.
Assim que teve nas mãos uma pedra com uma aresta perigosa e um peso respeitável, olhou em volta. Todos estavam tranquilamente envolvidos nos seus sonos. Era muito arriscado aquilo que queria fazer. Provavelmente iria matá-lo e o seu maior receio era que alguém acordasse e testemunhasse o acto. Na manhã seguinte, iriam descobrir o corpo e ele seria inevitavelmente apanhado. Nesse momento, apercebeu-se que já não planeava simplesmente uma vingança, projectava um homicídio. Se pelo menos houvesse outra maneira de resolver as coisas, reflectiu. Pousou a pedra. Ocorreu-lhe que podia somente desertar. Era uma decisão de cobarde, mas também a mais fácil.
As opções eram simples, fugir ou enfrentar o problema. A escolha foi tomada rapidamente. Iria enfrentar o problema, todavia iria fazê-lo de outro modo. Só precisava de escolher um método eficaz.
Enquanto matutava no problema, os seus dedos percorriam a terra recentemente cavada. Por momentos, os seus pensamentos trilharam uns caminhos enquanto os seus dedos vagueavam por outros. Quando os dedos se depararam com a granada, os pensamentos convergiram com o tacto. Tinha encontrado a solução que procurava. Podia eliminar o rufia e fazer com que parecesse um acidente, era um plano perfeito.
Perscrutou mais uma vez as redondezas, procurando por elementos acordados. Tudo continuava calmo, talvez até estático demais.
Pegou na granada pelo cabo e encostou-a ao ombro do soldado, que não parecia ter-se apercebido de nada. Hesitou antes de puxar o cordão. Não haveria maneira de voltar atrás depois de o fazer. Sentiu um ligeiro tremor nas mãos, porventura derivado do nervoso miudinho que se apoderara do seu ser. Estava a um passo de matar. Não sabia se tinha direito de o fazer. A única certeza era de que, se não o fizesse, arriscava-se a ter o mesmo destino que projectara para o brigão.

A quinta e última parte pode ser encontrada em: http://pedro-cipriano.blogspot.de/2012/08/o-dia-em-que-choveu-fogo-parte-55.html

sexta-feira, 10 de agosto de 2012

O dia em que choveu fogo - parte 3/5


O início está disponível em: http://pedro-cipriano.blogspot.de/2012/08/o-dia-em-que-choveu-fogo-primeira-parte.html
A segunda parte pode ser encontrada aqui: http://pedro-cipriano.blogspot.de/2012/08/o-dia-em-que-choveu-fogo-segunda-parte.html

A maioria dos soldados mostrou-se um pouco mais confiante ao ouvir aquelas palavras desajeitadas, pois apelava ao seu ódio pelo inimigo. A moral não se manteve por muito tempo, sendo totalmente arrasada com o chegar dos abastecimentos. Em termos de comida, eram muito reduzidos, dando apenas um bocado de pão a cada um. Se haviam ficado desapontados com a alimentação, as armas deixaram-nos completamente desesperados. Havia apenas uma dúzia de pistolas e outra de espingardas. Munições vinham em duas caixas minúsculas. Para além disso, havia somente duas caixas de granadas. Nem o tenente conseguiu disfarçar a irritação que sentia.
- Não se preocupem, soldados. Deve ter havido algum engano. Eu irei pedir mais armas, munições e comida. Vamos ver se consigo arranjar uma ou duas peças de artilharia - prometeu apressadamente o jovem.
Quando o comandante foi à procura do comissário, as conversas que se seguiram provaram que ninguém havia acreditado na desculpa do engano. Alexey ouviu de tudo um pouco, desde insultos a propostas de fuga. Evitou participar, já que não queria arranjar mais sarilhos do que aqueles em que estava metido.
O pôr-do-sol revelou uma cidade em chamas. Os disparos de artilharia nunca cessaram por completo. Corriam rumores de que os alemães teriam já chegado ao rio, cercando a cidade e os seus defensores. Não chegaram mais abastecimentos e muito poucos dos soldados que tinham fugido durante o bombardeamento haviam regressado.
Parte das trincheiras foi reaberta e preparada para a noite. Enterraram os mortos num terreno adjacente e os feridos foram evacuados para a cidade. Finalmente, recolheram aos seus buracos no lusco-fusco.
Cansado e desmoralizado, escolheu um local para se deitar. Com um bocejo, pousou a seu lado a granada que lhe tinham dado e enrolou-se no seu cobertor, preparando-se para passar a noite. Ficara na extremidade da vala partilhada pelo resto do seu grupo de combate. No centro do buraco ardia uma fogueira que providenciava uma parca iluminação. Não havia comido o pedaço de pão que lhe calhara durante a tarde, pois receava não receber outro no dia seguinte.
Depois de cair a escuridão, tentou dormir, mas não conseguiu. As imagens dos aviões semeando a morte perturbavam-no fortemente. Não conhecia nenhum dos que havia falecido, aliás, procurara em vão pelos corpos dos três rufias. Não voltara a vê-los, por isso deduzira que haviam fugido.
Ouviu algo a seu lado. Um vulto acabara de entrar na trincheira. Quis dar o alarme, todavia o grito ficou-lhe preso na garganta. Era o líder dos rufias.
- Não precisas de ter medo, eu não vim para te fazer mal – prometeu com um tom e um sorriso que não inspiravam qualquer confiança.
Alexey não lhe respondeu, já que os seus piores receios se haviam tornado realidade.
- Estou a ver que ficaste mais esperto. Agora vais partilhar o teu pão comigo e ficamos todos amigos. Pode ser?
O tom de ameaça não lhe escapou. Sentiu a fúria a crescer dentro de si, estava farto de ser maltratado pelos brigões. Queria encontrar uma solução definitiva para aquele problema, mas não lhe ocorreu nada durante aquele momento que lhe foi dado para pensar. Queria lutar, mas sabia não estar à altura de o enfrentar.
- Então, miúdo? Ou me dás o teu pão ou vou ter que te partir os dentes.
- Já o comi... - mentiu Alexey, a tremer.
- Tu a mim não me enganas! Dá-me o pão, já! - exigiu, agarrando-o pelo colarinho.
- 'Tá bem! Eu já te dou.
Entre o humilhado e o agitado, retirou o pão do bolso e estendeu-lho. Como provocação, o outro rapaz decidiu comê-lo à sua frente. Alexey usou todo o seu auto-controlo para não o atacar. O rufia extorquiu-lhe também o cobertor e quis dormir ao seu lado, mesmo junto à extremidade da vala.

A continuação está aqui: http://pedro-cipriano.blogspot.de/2012/08/o-dia-em-que-choveu-fogo-quarta-parte.html

quarta-feira, 8 de agosto de 2012

O dia em que choveu fogo - parte 2/5


A primeira parte pode ser encontrada aqui: http://pedro-cipriano.blogspot.de/2012/08/o-dia-em-que-choveu-fogo-primeira-parte.html


Apercebendo-se de que estava a deixar-se dominar pelo pânico, abriu os olhos e forçou-se a respirar normalmente. Arriscou mais um olhar ao céu. Havia bombardeiros enormes, com um motor em cada asa. A acompanhá-los voavam unidades mais pequenas, com uma única hélice e de asas arqueadas.
Por instinto, outra explosão fê-lo encolher-se na sua toca. O ataque foi sucedido por múltiplos rebentamentos. Concluiu que estavam a arrasar as linhas defensivas da cidade, das quais fazia parte.
Passara um mês desde que fora chamado e tanto tinha mudado desde essa altura. Relembrava-se que fora um jovem cheio de convicções. Pensara que iria para a guerra para ser coberto de heroísmo e ajudar a repelir a ofensiva dos malditos Fritzes. Salvaria a cidade e o seu amor e, no fim, tudo ficaria bem. Infelizmente, a realidade era muito mais amarga do que os seus piores receios. Haviam-lhe dado somente uma pá e tivera de cavar valas durante dias a fio. De soldado não tinha nem treino, nem equipamento. Cobria-o ainda a roupa esfarrapada com que se apresentara na recruta.
O coração falhou-lhe uma batida ao pensar na sua querida Nastja. Desde que a conhecera, em Maio, que a sua vida dera uma volta enorme. Havia algo nela que o atraía e prendia, como se um véu de mistério a rodeasse. Tinham partilhado momentos fugazes e intensos. Não conseguia deixar de corar ao recordar a última noite que tinham passado juntos. Tinham feito amor naquele velho sótão de madeira abandonado, a melhor experiência da sua vida. Não queria morrer ali. Não havia olhar mais belo, nem nome mais bonito que o de Anastasia. Queria voltar para a sua amada, são e salvo. Desejava poder, mais uma vez, dormitar no seu regaço. Isso seria a sua maior felicidade.
Os pensamentos foram interrompidos pelo deflagrar de mais cargas explosivas. Encolheu-se ainda mais no buraco, como se isso pudesse aumentar as suas hipóteses de sobrevivência. Sentia-se impotente. Seria diferente se ao menos pudesse combater o inimigo cara-a-cara. Eram cobardes e dependiam das suas máquinas infernais para ganhar vantagem. De certo que não seriam tão corajosos em terra. Dava tudo para ter oportunidade de os enfrentar numa luta corpo-a-corpo.
O clamor de outra explosão fez-se ouvir tão perto que lhe deixou um zumbido nos ouvidos. Nesse instante, foi coberto com terra e detritos. Pensou que iria ficar soterrado, mas, felizmente, a quantidade não fora suficiente para tal. Ao inspirar, as suas vias respiratórias foram invadidas pela poeira que circulava no ar. Tossiu violentamente, tentando limpar a garganta. Os olhos lacrimejavam fortemente. Novas explosões fizeram-se sentir segundos depois.
Nos minutos que se seguiram, permaneceu encurvado na trincheira, coberto de terra. De súbito, tal como tinha começado, o ataque terminou. Os motores dos aviões e os rebentamentos só se ouviam à distância.
- Soldados, formar! - ouviu o seu tenente ordenar.
Alexey abriu os olhos a medo e não viu nenhuma aeronave no ar. Sacudiu a terra e ramos de tomate seco que se tinham acumulado sobre a sua cabeça, antes de se levantar e aproximar dos restantes.
Ao caminhar pelo terreno, deu-se conta das inúmeras crateras deixadas pelas bombas inimigas. Aqui e ali estavam corpos despedaçados. O cheiro a queimado infestava o ar. Evitou olhar demais, já que não queria vomitar o almoço. A bateria anti-aérea sumira e apenas um buraco com destroços espalhados em volta atestavam a sua existência. Os aviões alemães continuavam a sobrevoar o céu, fazendo-o essencialmente sobre a cidade. Sem se demorar mais, juntou-se ao grupo, permanecendo na última fila e em sentido.
- Mas que raio! Faltam aqui soldados. Tu aí, sabes contar? Conta-me os mortos e feridos. Rápido! - comandou o jovem, escolhendo um soldado da primeira fila.
Alexey olhou para a farda quase nova do seu tenente. Apesar de sujo, aquele uniforme assentava perfeitamente naquele corpo cheiinho. A barba rara denunciava a sua idade e inexperiência. Pertencer a um extracto superior da sociedade tinha a vantagem de se poder frequentar a academia militar. Todos tinham de servir a Terra-mãe, a diferença é que a maioria o fazia como soldados rasos, sem direitos nem regalias.
- Meu tenente, contei 18 feridos e 14 mortos – reportou o rapaz receoso.
- Faltam aqui mais de 50 recrutas! Se eles não estiverem de volta até ao pôr-do-sol, serão considerados desertores!
O comandante olhou para os seus soldados. Houve quem prendesse a respiração, antecipando uma punição severa.
- Nós somos uma das primeiras linhas de defesa da cidade. Os alemães estão perto e a qualquer momento poderão chegar à nossa posição. Em breve chegarão armas e rações, economizem-nas, pois não sei quando voltaremos a ter mais. Há dúvidas?
Como resposta, obteve um silêncio pesado.
- Vamos, soldados! Não vamos deixar que Estalinegrado caia! As nossas famílias moram ali - exclamou, apontando para a cidade. - Não podemos deixar que os alemães lhes ponham as mãos em cima. Eles irão violar as nossas mães e irmãs. Irão matar os nossos pais e saquear as nossas casas. Querem apoderar-se do nosso país e reduzir-nos à escravidão.

Este conto continua em: http://pedro-cipriano.blogspot.de/2012/08/o-dia-em-que-choveu-fogo-parte-35.html

segunda-feira, 6 de agosto de 2012

O dia em que choveu fogo - parte 1/5


Era o quarto Domingo de Agosto quando Alexey ouviu os altifalantes anunciarem o bombardeamento. O jovem não esperou que os aviões surgissem no céu azul, onde o Sol brilhava intensamente, largando a pá e atirando-se para o fundo da trincheira. Não tinha capacete nem arma, por isso só lhe restava aninhar-se e proteger a cabeça com as mãos.
- Atenção camaradas, um ataque aéreo está eminente! - repetia, ao longe e sem cessar, a gravação.
Esperou pelos ruídos de motores e pelo rebentar de explosões, mas, do buraco cavado num campo de tomates, ouviu apenas risos.
Desde o primeiro momento que achara que estava rodeado de idiotas. Era ridículo pensar que aquele bando de maltrapilhos, que nem sequer uniforme tinha, conseguiria parar a máquina de guerra nazi. Deduziu que se riam da sua reacção. Questionava-se como seria possível gozar com tal aviso e, por isso, achou melhor ignorar, permanecendo no seu refúgio.
- Então Sacha, estás com medo?
Reconheceu a voz como pertencendo a um dos rufias do batalhão. Cerrou os punhos e, de súbito, quis esmurrar a cara de quem o insultava.
- Ser soldado não é para meninas - ouviu outra voz familiar acrescentar.
Não iria deixar que gozassem com ele daquela maneira, erguendo-se para os enfrentar. Como previra, encarou um pequeno grupo de três recrutas, que o olhavam com um olhar divertido. O mais alto era o manda-chuva do gangue. Andava sempre acompanhado por um rapaz bastante musculado e de nariz achatado, que parecia sofrer de um atraso mental. Nunca tinha visto o outro rapaz, contudo o seu porte impunha igualmente respeito. À semelhança do restante destacamento, tinham entre 16 e 18 anos de idade.
- Idiotas! Vão chatear outro! Era bem-feita que os Fritzes vos apanhassem - devolveu Alexey, desistindo de uma punição física.
- Olha o pirralho! Parece que finalmente saiu debaixo das saias da mãe... - riu-se o de maior estatura.
Tal era a confiança, que nem se apercebeu do projéctil que vinha na sua direcção. A pedra atingiu-o na testa, causando-lhe um corte pouco profundo.
Ele não esperou pela reacção dos brigões, saltando para fora da vala e desatando a correr. Ao início, conseguira uma grande vantagem, já que os apanhara desprevenidos. Ao olhar por cima do ombro, viu que o líder vinha no seu encalço e que eles eram muito mais rápidos que ele.
Com muito esforço, acelerou, numa tentativa de o fazer desistir da perseguição. Ouvia o passo de corrida atrás de si, cada vez mais perto. Não havia nenhum comandante à vista e os outros soldados iriam simplesmente ignorar a situação. Estremeceu ao perceber que iria apanhar uma sova monumental.
No momento seguinte foi atirado ao chão, caindo com a face na poeira. O rufia tinha aterrado por cima dele. Lutou para sair debaixo do rapaz, numa tentativa coroada de insucesso, já que o peso do outro era suficiente para o manter ali. Sentiu que lhe agarravam e torciam o braço, imobilizando-o por via da dor.
- Vais apanhar tantas... - prometeu o rufia com traços de fúria na voz.
Quanto tentou virar a cara para enfrentar o seu adversário, o primeiro murro atingiu-o na bochecha. Apanhou mais dois, enquanto teve uma vaga percepção de que os restantes elementos se aproximavam. Sentiu que ele saía de cima de si. Ao tentar levantar-se, um poderoso pontapé alcançou a sua barriga e Alexey colapsou na poeira. Durante um momento rebolou, respirando com dificuldade. Sentiu medo ao ver as faces dos seus oponentes, fixando por uma fracção de segundo o sangue que corria copiosamente pela face do que fora atingido. A maioria dos soldados tinha-se refugiado nas trincheiras e não haviam quem os impedisse de o espancar até à morte. Tinha de lutar, tinha de pelo menos ganhar tempo. Tentou pontapear o líder, mas este recuou um passo, colocando-se fora do alcance do golpe. Os rapazes riram-se do seu coice falhado.
O som estridente de um trompete de Jericó fez-se ouvir. Algures, ali perto, um bombardeiro alemão mergulhava em direcção à sua presa. Todos tiveram consciência de que alguém iria morrer nos próximos segundos. Num abrir e fechar de olhos, os brigões abrigaram-se também, deixando-o sozinho.
O som despertou nele o mais profundo e inexplicável dos terrores. Fechou os olhos, não queria ver o que julgava ser o seu fim. Não se conseguia sequer mexer. Tremeu como uma criança enquanto uma lágrima lhe percorria a bochecha. Não queria morrer.
O som continuou durante alguns segundos, sendo, de seguida, substituído pelo ruído do motor do avião. De imediato, uma explosão ensurdecedora fez-se ouvir. A terra estremeceu e a onda de choque atravessou-o.
Abriu os olhos. Uma nuvem de poeira envolvia a bateria anti-aérea. Olhou para o céu e viu numerosos aviões. A cruz preta com contorno branco nas asas não deixava margem para dúvidas de que se tratava de aviões alemães. Não se via nenhuma aeronave soviética e a artilharia capaz de os abater estava silenciosa. Face ao poderio germânico, sentiu-se pequenino como uma formiga. Rastejou até ao buraco mais próximo e aninhou-se no fundo. Fechou os olhos e susteve a respiração em antecipação ao perigo. O coração batia a um ritmo desenfreado.


A segunda parte pode ser encontrada em : http://pedro-cipriano.blogspot.de/2012/08/o-dia-em-que-choveu-fogo-segunda-parte.html

sexta-feira, 3 de agosto de 2012

A alergia



Faltavam cinco minutos para a meia-noite quando Roberto acabou de armar a bomba. Desprendeu o recipiente de latão cheio de um líquido amarelo com tons esverdeados, que ficou num equilíbrio precário em cima de uma das barras laterais. Limpou o suor da testa e beijou o anel que trazia no dedo. Ajeitou o fato, colocou a cartola e afastou-se da ponte de ferro cruzado.

Àquela hora só os bêbados e as prostitutas percorriam a cidade, por isso, não achou que houvesse o risco de ser reconhecido mais tarde. Que sociedade mais decadente, pensou, sabia que cada um daqueles homens era capaz de matar por um fato de cerimónia. Não esperava que o atentado causasse muitas vítimas, já que escolhera um comboio de mercadorias numa zona ocupada por armazéns.

Enquanto caminhava pelas ruas, combatia o desejo de se enfiar por um dos becos, pois pressentia que todos os olhos estavam voltados para ele. Sabia que teria de se deslocar pelas vias principais para não chamar a atenção. Os nervos eram tantos que se assustou com uma mera buzina. Quase se riu histericamente quando viu tratar-se apenas dum veículo com rodas de coche e muitas rodas dentadas que operavam fora da carroçaria. Já mais calmo, saltou para a berma de modo a deixar passar o mostrengo a vapor conduzido por algum ricalhaço.

A noite estava abafada e o calor já se fazia sentir à várias semanas. O mundo mudava a olhos vistos e quase ninguém se parecia aperceber disso. Cada ano que passava era mais quente que o anterior, o fumo cobria as grande metrópoles e o nível do mar subia cada vez mais. Ninguém queria ouvir falar desses problemas, enquanto o seu estilo de vida pudesse ser mantido, todos eram alérgicos à mudança, como qualquer civilização que se aproxima do seu fim.

Tudo fora planeado para que o atentado fosse atribuído aos alérgicos, um grupo extremista que defendia o uso de técnicas amigas do ambiente. Estes perseguiam uma miragem semelhante à energia solar, que se supunha ter existido há quinhentos anos atrás e que se perdera no grande holocausto. Apesar de se identificar com algumas dessas ideias, Roberto nunca fizera parte de tais círculos e não contava começar naquele momento. As suas razões eram bem diferentes.

Prédios de estilo Neovitoriano passaram a ladear os dois lados da rua. Aqueles apartamentos de madeira de recortes arredondados e telhados oblíquos eram relíquias de outra era. As varandinhas cercadas de madeira branca trabalhada davam-lhe vontade de rir. Não percebia porque é que os haviam recriado, nem porque os restauravam vezes sem fim. Parecia que tinham medo de avançar no tempo, receio das incertezas do futuro e pavor de quebrar as restrições tecnológicas estabelecidas. Tudo porque outrora a espécie quase se extinguira por via das suas próprias invenções. Uma guerra nuclear não era mais possível, contudo, um desastre ambiental teria os mesmo efeitos. A humanidade estava na sua hora dourada, no seu mais importante ponto de viragem, e poucos eram os que conseguiam aperceber disso.

Parou e retirou o relógio do bolso para ver as horas. Faltavam dois minutos para o comboio se encontrar com o seu destino. Ele odiava engenhos que levassem muitas engrenagens, por isso aquele era muito simples. O tremer da ponte, aquando da passagem da locomotiva, iria lançar o recipiente cheio de nitroglicerina contra um dos postes e isso bastaria para detonar o engenho. Os maquinistas nunca se atrasavam.

Um portão preto de cemitério marcava o fim da sua caminhada. Rangeu terrivelmente quando o empurrou, dando-lhe entrada para um espaço completamente deserto e sombrio. Uma árvore frondosa dominava a paisagem, projectado estranhas sombras no pavimento. A tranquilidade do local contrastava com a inquietação que sentia. Caminhou pelo passeio central, passando pelo poço, dirigindo-se à campa da sua noiva.

Sentou-se no túmulo e acariciou a gravura do túmulo, desejando sentir novamente o toque dela. A vida não lhes fora gentil. O forte sentimento que os unia só teve como par o nefasto fim. Ela morrera atropelada por um condutor descuidado. Culpar o condutor era demasiado fácil, pois ele era apenas um produto da sociedade decadente em que estava mergulhado.

Ficara fechado em casa, sem querer comer durante dias a fio. Teria morrido ali se não tivesse recebido uma visita de um dos seus amigos. A conversa que tiveram mudou-lhe a vida, conseguira canalizar o seu desespero. Desde esse dia, Roberto ouviu falar dos alérgicos pela primeira vez e, tal como eles, passara a odiar toda a tecnologia. Passara a ser alérgico a toda a roda dentada e a todo o eixo móvel. Consumido pela mágoa, quase caiu num estado de demência, até que percebeu o que deveria fazer. Tinha de destruir estes malditos monstros com corações de corda e cérebros a vapor. O seu amigo nunca o abandonou e nem negou qualquer tipo de ajuda, nem sequer quando precisou de ajuda para levar a cabo o seu plano pernicioso.

Como previra, a explosão deu-se à meia-noite em ponto. Ouviu de seguida mais três rebentamentos. O clima seco e as matérias inflamáveis, tanto do comboio como dos armazéns, mergulhavam a cidade em chamas. As labaredas subiam mais alto do que esperava, o comboio deveria transportar algum tipo de mercadoria muito inflamável. Impávido, observou o fogo que galgava metro após metro sem que ninguém o pudesse deter.

A tragédia abateu-se sobre a cidade. O número de vítimas escalou de dezenas para a centenas e finalmente atingiu o milhar. Quarteirões inteiros foram devastados. Não houve quem duvidasse que os alérgicos fossem os responsáveis e ninguém se preocupou com o corpo que se afogara no poço do cemitério.


Este conto foi publicado na revista Nanozine ( http://nanoezine.wordpress.com/ ).
Podem efectuar download da revista aqui:  http://nanoezine.files.wordpress.com/2012/07/nanozine6_versc3a3o-impressa.pdf
Link no Goodreads: http://www.goodreads.com/book/show/15767109-nanozine-n-6
Foi comentada em: http://jackolta.blogs.sapo.pt/1996.html

quinta-feira, 2 de agosto de 2012

O monstro e a musa - parte 12/12

O início da história pode ser encontrado em: http://pedro-cipriano.blogspot.de/2012/07/o-monstro-e-musa-primeira-parte.html

A décima primeira parte pode ser encontrada em: http://pedro-cipriano.blogspot.de/2012/08/o-monstro-e-musa-decima-primeira-parte.html



Ao fim da tarde, a maciça porta de carvalho foi destrancada e Artur entrou.

– Tranquem-me e só abram quando vos der o sinal

Assim que cumpriram a ordem, ele virou-se finalmente para Walter.

– Não tentes nada de idiota – aconselhou, colocando a mão no punhal que trazia à cintura.

O inventor permaneceu sentado e limitou-se a acenar com a cabeça. O líder do castro retirou um pão da algibeira e atirou-lho. Assim que o apanhou, sem pensar duas vezes, começou a comê-lo. Não conseguia mais suportar a fome.

– Eu sei o que pensas de mim, que sou um monstro. Não é verdade? Não precisas de o confirmar. Lembras-te da analogia que eu te dei do jogo de xadrez, no nosso primeiro encontro? Porque raio é que tentaste passar-me a perna?

Walter comera demasiado depressa, de modo que interrompeu o discurso com um ataque de soluços. Artur esperou pacientemente que o inventor se acalmasse.

– Um monstro... até o meu próprio irmão ostracizei. Sabes qual foi a razão? Ele prejudicava o castro. Desde que lidero que nunca quis o poder como um fim, era apenas como um meio. A sobrevivência da minha comunidade é tudo o que me interessa. Eu sou responsável pela morte dos teus conterrâneos, já que eles nunca teriam fugido se não tivesse criado certas condições. E digo-te, durante o tempo em que liderei, nunca deixei de aplicar uma pena, independentemente da pessoa, desde que a culpa fosse estabelecida. Acho que estás a ver o que te espera. Agora diz-me, porque é que tentaste fugir?

– Eu tinha medo que descobrisse a relação amorosa que tinha com a sua filha.

Artur soltou uma gargalhada enorme.

– És um idiota, eu sempre estive um passo à tua frente. Sabia dessa relação antes de acontecer. Bastava observar a reacção dela quando eu lhe falava de ti ou cronometrar o tempo que ela passava no teu quarto. Devo dizer-te que ela foi a única pessoa que não tentei manipular. Infelizmente, nem o desafio de resolver um problema fulcral à existência humana, nem o medo, te conseguiriam prender aqui para sempre. Eu sabia disso, essa foi a razão de ter morto os outros cativos. Tudo para te impingir mais medo. A realidade é que, mais tarde ou mais cedo, eu sabia que irias fugir. No início, fiquei extremamente aliviado, pois parecia que a alavanca surgira onde eu menos esperava. Não ousei interferir, pois receava estragar tudo. Pelos vistos falhei, porque ela acabou por te incitar à fuga. Preciso de ti e não posso evitar matar-te, porque isso destruiria a ideia de justiça que tanto me custou a construir. Agora que já conheces o problema, propõe uma solução.

Walter olhou-o admirado e, em silêncio, a sua mente estava em branco. Aquele homem conseguira estar sempre vários passos à sua frente. Naquele momento, um sorriso aflorou-lhe aos lábios.

– Não preciso de propor uma solução porque você já tem uma.

– Aprendes depressa. Desisti da liderança assim que soube que havias sido capturado. O homem que irá tomar o meu lugar não tem um pulso tão forte e irá querer mostrar que é mais clemente que eu. Tal como eu, ele acredita que as tuas invenções são o melhor investimento que se pode fazer nesta altura. Ele irá castigar-te severamente, mas não ousará matar-te. A votação ainda não ocorreu, mas eu vou fazer tudo o que estiver ao meu alcance para que não surjam problemas.

– Porém... – desconfiou o prisioneiro. – Eu sei que esta oferta tem uma condição.

– Exacto. Três condições, aliás. Eu não queria falar nelas antes de saíres daqui, para ter a certeza que te vinculavas. Estou certo de que as irás aceitar de qualquer maneira. Portanto, terás de desistir da promessa de libertação e aceitar a cidadania do castro. Terás de resolver o problema energético e, por fim, casar com a minha filha.

– É tudo? – admirou-se Walter.

– Quer dizer... – confessou Artur, sorrindo – mesmo que eu te diga que sim, tu não irás acreditar em mim...


FIM

quarta-feira, 1 de agosto de 2012

O monstro e a musa - parte 11/12


A primeira parte deste conto pode ser encontrada em: http://pedro-cipriano.blogspot.de/2012/07/o-monstro-e-musa-primeira-parte.html

A décima parte pode ser acedida em: http://pedro-cipriano.blogspot.de/2012/07/o-monstro-e-musa-decima-parte.html


– Sim, só me dói um pouco o ombro – queixou-se com um gemido.

O cavalo havia tropeçado numa depressão do terreno. Ao palpar-lhe o ombro, percebeu que se tratava apenas de uma ligeira contusão. O maior problema era o cavalo que não se conseguiria levantar, pois tinha partido uma pata ao embater numa rocha. Eva aproximou-se dele e afagou-lhe a cabeça com carinho.

– Deixa o cavalo! – protestou o inventor.

– Cala-te! – ordenou a rapariga. – Não podemos deixá-lo aqui assim!

– O que é que queres fazer, ficar aqui até que nos apanhem?

– Não, dá-me só um momento.

Walter não respondeu, tentando tolerar as manias dela. Pouco depois, viu uma gorda lágrima a descer pela bochecha de Eva, enquanto esta afagava a cabeça do cavalo.

– Desculpa Elea – murmurou, beijando a testa da égua.

Subitamente, empunhou a faca que trazia ao cinto e, apontando ao pescoço, deu-lhe o golpe de misericórdia.

Seguiram caminho a galopar no outro cavalo. Porém, devido ao peso excessivo do par, este cansou-se rapidamente, tendo eles de prosseguir a trote. Quando o céu começou a clarear, estavam perto de uma vila abandonada da época do pré-Rerenascimento. Os telhados estavam caídos, carcaças de veículos antigos jaziam pelos cantos e a fauna e flora tinham invadido o espaço. Não parecia que nenhum humano ali tivesse posto os pés durante anos. O cavalo estava exausto e, por isso, consideraram que seria melhor passar o dia na cave do que fora outrora um prédio. O espaço era amplo, de modo que puderam prender o cavalo num dos pilares e instalar-se a alguma distância, para evitar o forte cheiro. Comeram restos que ela havia trazido da cozinha e adormeceram nos braços um do outro.

Walter despertou com uma voz de comando. A primeira impressão fora que a voz havia sido fabricada na sua mente. Contudo, ao ver que Eva também acordara, percebeu que estava enganado. O medo tomara conta dele, ao ponto de querer ser apenas um rato e esconder-se num canto. Ao ver a angústia no olhar dela, percebeu que não tinham saída. Paralisados pelo receio, não ousaram mexer-se, na esperança que não os encontrassem.

Tudo se revelou inútil já que, poucos minutos depois, os soldados do castro entravam no antigo estacionamento. Sem oferecer resistência, foram ambos escoltados para o exterior. Nenhum dos dois conseguiu apreciar a brisa daquela tarde de Outono. As pernas de Walter estavam como borracha, em antecipação ao momento em que iria enfrentar Artur. Apesar de saber que era apenas uma questão de tempo, suspirou de alívio ao descobrir que ele não estava naquele grupo de busca.

Durante o resto do dia, caminhou de volta para a cidade, pois não havia nenhum cavalo para ele. À noite não lhe deram nada para comer e ele sabia qual a razão. Era um homem morto. Durante a noite, não conseguiu dormir, na esperança em que houvesse uma oportunidade de fuga. Não teve sorte, já que um dos homens ficou de sentinela o tempo todo.

Eva seguia no outro extremo da fila. As vezes em que conseguira ver a sua expressão, encontrara-a sempre com os olhos vermelhos. Walter sabia que ela sofreria, mas o pai não iria castigá-la severamente. Ao fim de contas, Walter não tinha ilusões em quem Artur iria colocar as culpas.

A meio da manhã do terceiro dia, voltaram à cidade. O espírito de Walter estava completamente quebrado, pois era a segunda vez que percorria aquela rua como prisioneiro. Desta vez levaram-no para as catacumbas, por baixo do quartel militar. Trancaram-no numa cela minúscula, a qual continha somente um recipiente com água e um penico. As paredes eram de pedra nua e a luz entrava por uma fresta diminuta, que ficava acima do nível do olhar.


A parte final pode ser encontrada aqui: http://pedro-cipriano.blogspot.de/2012/08/o-monstro-e-musa-decima-segunda-e.html