Como empregado estatal, tinha de realizar este tipo de tarefas um par de vezes por semana. Era um trabalho como qualquer outro, pensou o funcionário de meia-idade, enquanto ensopava a pilha de papel em álcool.
Meia dúzia de soldados assegurava que ninguém interferisse com o evento. No meio da multidão que se juntara, estariam à paisana outros tantos agentes da PSI, a polícia de segurança interna. E claro, havia bufos um pouco por todo o lado. Ao estado, muito pouco escapava.
Olhou para o seu relógio e viu que eram 3 da tarde. Era o momento de dar início ao espectáculo. A chama propagou-se com facilidade do fósforo para as folhas. A multidão soltou urros quase frenéticos. Nunca percebera se eram de alegria ou revolta. O fogo alastrou-se e, foi então, que os livros começaram a voar. Rui deu uns passos prudentes afastando-se da fogueira.
Uma menina, com uns dez anos de idade, que estava nas primeiras filas começou a chorar. Fora atingida por um dos muitos livros que eram arremessados para a fogueira. Os gritos aumentaram de intensidade atingindo um êxtase colectivo, bem perto das fronteiras da loucura. Algumas pessoas haviam sido atingidas pelos projécteis que cruzavam o ar e mesmo esses estariam na próxima queima. Face a esses incidentes, os soldados nem se haviam movido. Tudo aquilo era normal.
Rui ficou feliz que nenhum desses escritores fosse vivo. Assim só se queimavam os livros.
***
Rui permaneceu de olhar fixo na caixa de madeira.
O estaleiro municipal estava vazio naquele fim de tarde de Domingo. Tudo estava arrumado no seu devido lugar, só não sabia o que fazer ao livro. O governo pseudodemocrático não proibia a posse de livros. Nem tão pouco a leitura e a discussão pública era desencorajada ou punida. Era uma sociedade mais fechada do que fora na sua juventude, mas ainda não chegara a extremos. O problema é que havia livros e livros. O que estava à sua frente pertencia à lista de incineração.
Pegou nele. Parecia estar em bom estado, somente a capa estava dobrada das pontas e as folhas amareladas. Havia algo naquele livro que o fascinava e foi nesse momento que decidiu levá-lo para casa. Olhou em volta e não viu ninguém. Num ápice, guardou-o na sua mala de trabalho.
Antes de passar pelos guardas já um suor frio lhe envolvia o corpo. Devia ser só a sua cabeça a pregar-lhe uma partida, reflectiu. Qual seria a probabilidade de o livro ali ter sido colocado em jeito de armadilha? Só de considerar a possibilidade, sentiu uma tontura momentânea. Estando já fora do edifício, era impossível voltar atrás.
Os guardas mandaram-no parar. O coração disparou, não era nada vulgar isso acontecer. Pediram-lhe a identificação. Nervoso como estava, quase não conseguiu retirar o cartão de funcionário. A qualquer momento eles iriam aperceber-se que estava a esconder algo.
O mais baixo observou com cuidado a credencial e depois pediu-lhe que abrisse a mala. Rui ponderou se haveria de correr. Não valia a pena, eles não teriam dificuldade em capturá-lo. Resignado, abriu a mala, amaldiçoando o momento em que agarrara o livro. Apetecia-lhe gritar para pararem de brincar com ele e só não o fez porque ainda tinha esperança de escapar.
O polícia observou cuidadosamente o interior do saco velho e gasto. Os dois sentinelas trocaram olhares. Rui quase desmaiou, face à possibilidade de ser detido a qualquer momento.
Com um ar aborrecido o agente levantou a mão, fazendo-lhe sinal para seguir. Rui não quis acreditar e, após um momento de hesitação, atravessou o portão. Se calhar, os guardas nem sabiam que livros estavam na lista de incineração.
Caminhou pelas ruas da capital em direcção à Baixa, pois não havia transportes públicos ao Domingo. A tarde estava agradável, adornada por uma temperatura amena de início de Outono. Era quase hora de jantar. Os passeios estavam praticamente vazios e poucos eram os veículos que cruzavam o pavimento. Com essa paz, Rui pôde perder-se nos seus pensamentos.
Tanta coisa havia mudado desde a Guerra Europeia de há 18 anos atrás. Tudo começara quando se ouviu nas ruas que Lisboa fora ocupada. Mesmo sem um governo, o povo quis lutar contra o invasor estrangeiro. Contudo, nem o fim da ocupação devolveu a união ao país. Ninguém percebera com que é que aquele governo chegara ao poder. Algo semelhante acontecera em Espanha, culminando com a junção do Norte com a região da Galiza. Essa divisão era o motivo pelo qual tudo o que invocasse o período em que Portugal era só um tinha de ser destruído.
Ao abrir a porta do apartamento, as suas narinas foram invadidas por um delicioso aroma a frango guisado. Rui estava feliz por não haver escassez de galináceos nesse ano. A falta crónica de alguns bens de consumo era o preço a pagar por viver num pequeno estado isolado do resto do mundo.
A sua esposa e os três filhos já estavam sentados à mesa. A fome que o consumia fê-lo logo esquecer o livro.
A segunda parte pode ser encontrada em: http://pedro-cipriano.blogspot.pt/2012/12/eternas-palavras-parte-22.html
Este conto foi publicado no blog Fantasy & Co: http://fantasy-and-co.blogspot.pt/2012/11/eternas-palavras-12-pedro-cipriano.html
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