quarta-feira, 4 de setembro de 2013

Boas Festas vindas do céu

Dezembro de 2032

O bimotor atravessava os céus nocturnos à velocidade de cruzeiro. Aos comandos do arcaico bombardeiro, Rui não pôde evitar estremecer ao reconhecer a faixa escura no solo, a terra de ninguém. Deixara os limites do seu estado.
Com as tensões a escalarem de dia para dia, não era preciso ser filósofo para perceber que a paz não podia durar. Depois do grande conflito do início de século, Portugal ficara dividido em três. O Norte aliara-se à Galiza e o Sul declarara independência, instaurando um governo neocomunista. O governo de Lisboa recusava-se a aceitar a divisão. Para o piloto, este voo era apenas mais um passo no caminho do inevitável.
Duas centenas de bombardeiros e quase uma centena de caças atravessavam a escura imensidão. O tamanho da frota inspirava confiança aos soldados, tanta quanto um número poderia dar. A tonelagem de explosivos nos compartimentos de carga chegava para atear fogo a uma grande cidade. Mesmo que o pudessem fazer, ninguém ousou questionar as ordens recebidas. Era claro que as negociações tinham falhado.
A missão que lhes fora confiada pelo general era simples: bombardear o Porto até à submissão. Era o último dia do ano e era previsível que a maioria dos soldados estivesse embriagada. A correr como planeado, não encontrariam sequer uma defesa organizada.
Consultou as horas no relógio de pulso.
― Feliz ano novo ― murmurou, esperando sobreviver para os festejos.
Haviam passado cinco minutos em território inimigo. Era certo que os radares já os tinham detectado. Em menos de meia hora estariam sobre a capital inimiga. Estremeceu ao ter consciência que haviam atravessado o ponto sem retorno.
Ainda se lembrava do período antes da guerra, quando a Europa era una e a paz reinava. As cidades cresciam, cheias de vida e actividade. A crise económica estalara enquanto dormia no berço e Lisboa fora ocupada durante a sua adolescência. Na prepotência da juventude, atirara pedras aos tanques franceses. O colapso do petróleo terminou a guerra e com ela a ocupação. Quando atingiu a idade adulta quis ser piloto, na ilusão de proteger o país. E, nesse momento, preparava-se para largar sobre outros a miséria que tão bem conhecia.
De súbito, uma avalanche de mensagens em código jorrou dos auscultadores. O inimigo reagia. Apertou os comandos com força. Não valia a pena filosofar sobre as decisões políticas quando o mais importante era voltar vivo.
Os dois caças à esquerda ganharam altitude, desaparecendo acima das nuvens. Iriam iniciar o seu jogo de gato e rato, enquanto Rui seria o queijo. Desejou poder fazer o mesmo. Aquele avião era uma presa fácil tanto para as defesas antiaéreas como para as aeronaves inimigas, mais leves e velozes. Nem a metralhadoras instaladas nas asas o deixavam mais descansado. Nos céus a agilidade era tudo, justamente aquilo que não dispunha.
Os bombardeiros mais pequenos desceram em voo picado, alvejando as artilharias. Era um duelo de vida ou morte. Rui olhou em frente, concentrando-se apenas no alvo. Os elementos mais rápidos haviam já largado bombas incendiárias visíveis a vários quilómetros, marcando o alvo principal. Sabia que tanto podiam ser fábricas como uma zona residencial. Empurrou esses pensamentos para segundo plano, concentrando-se em alinhar a trajectória com as chamas. Não interessava qual o alvo, ou se atingiriam de todo, só queria largar a carga mortífera e dar meia volta.
De súbito, a asa do avião à sua direita irrompeu em chamas. Só então viu as balas tracejantes. Os caças apareceram de seguida, atacando a nave inimiga. As chamas alastravam-se pelo bombardeiro de Francisco. Um motor parou e a aeronave começou a perder altitude, arrastada pela imensa carga, numa luta inútil para se manter no ar. Relembrou a noitada que tinham tido duas semanas antes. O compartimento de carga a abriu-se, lançando as bombas aleatoriamente. O avião começou a rodopiar, envolto em fumo, desaparecendo de vista. Não voltaria a vê-lo.
― Graças a Deus que não fui eu ― pensou, rangendo os dentes.
Os caças dos defensores foram repelidos. Dos bombardeiros encarregados de destruir as defesas não havia qualquer sinal, nem dos aviões encarregados de os proteger.
À beira de um ataque de pânico, reduziu a velocidade e a altitude. Era o momento em que estaria mais vulnerável, apenas umas centenas de metros o separavam do solo. Se fosse dia poderia ver os edifícios e até os carros nas ruas como se uma miniatura se tratasse. Imaginou o enorme perfil do avião visto do solo, engolindo em seco. Alinhou-se com o bombardeiro que seguia à frente e que mal via. Desviou-se um pouco para a direita, de modo a evitar a turbulência. Se se aproximasse demais a força de suspensão iria terminar e o avião cairia.
As chamas aproximavam-se mais lentas do que gostaria. O alvo, tão perto e ao mesmo tempo tão longe. O suor escorreu-lhe da testa. Sentiu os joelhos a fraquejar. Bastava uma bala num dos motores ou no piloto para não voltar a casa. Os braços começaram a tremer sem que os conseguisse controlar. Não havia qualquer aliado à vista. Não sabia onde estavam as defesas antiaéreas. Um caça podia aproximar-se dele pelo ângulo cego.
A respirar com dificuldade, accionou as portas do compartimento de carga, libertando os explosivos. Um. Manteve-se direito, na direcção das chamas. Dois. Combateu a tentação de mudar de altitude ou direcção. Três. As bombas haviam sido largadas. Acelerou os motores ao máximo, apontando o nariz da nave para os céus.
O avião ganhou velocidade e altitude. Cada segundo parecia uma eternidade. O perfil prateado do aeronave podia ser vista do solo. Estava vulnerável e não havia nada que pudesse fazer contra isso.
Ao atravessar as nuvens, viu-se na companhia dos outros aviões. Deu-se ao luxo de olhar mais uma vez para o relógio, passava meia hora da meia-noite. Descreveu um arco, dando meia volta e seguindo os companheiros de volta a casa. Tentou não pensar nas consequências dos seus actos, desejando que a festa esperada valesse a pena.


Este conto foi originalmente publicado no blogue Fantasy & Co.

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