O dia tinha começado para Ioseb quando Aleksandr iniciou a leitura do seu relatório sobre a queda de Rostov. Ioseb sabia que a situação era crítica, pois o país corria um sério risco de ser cortado em dois e, se isso acontecesse, não poderiam receber mais ajuda inglesa nem americana.
Tinha bebido demasiado vinho na noite anterior mas, ao contrário do que muitos pensavam, o vinho aclarava-lhe as ideias ao invés das turvar. Era certamente um vício, mas sabia que conseguia controlá-lo na perfeição. Ioseb deu por si a olhar para o cabelo de Aleksandr enquanto ele expunha a situação, tentando perceber o porquê de usá-lo penteado para a esquerda, de uma maneira que considerava verdadeiramente ridícula.
― Espera lá! Repete o que disseste. ― ordenou Ioseb, subitamente alerta.
Aleksandr repetiu enquanto Ioseb se esforçava por se concentrar, andando para a frente e para trás na sala. Ao ouvir novamente, confirmou as suspeitas fundamentadas nos fragmentos que captara da primeira leitura.
― Esqueceram-se da minha ordem para as forças armadas! ― exaltou-se subitamente, interrompendo a leitura Referia-se à ordem que dera em Agosto passado, que definia o modo de lidar com desertores.
Aleksandr ficou estático, esperando que Ioseb continuasse.
― Esqueceram-na! ― repetiu, como se quisesse convencer-se a si mesmo.
A cabeça de Aleksandr fervilhava, tentando encontrar uma boa desculpa. Não fazia parte dos seus planos ser executado por traição.
― Escreve outra nos mesmos moldes! ― ordenou, virando-se para Aleksandr.
― Para quando quer que esteja pronta? ― perguntou Aleksandr, aliviado pela súbita mudança de atitude.
― Hoje! Avisa-me directamente assim que esteja pronta! ― ordenou Ioseb, ainda pensativo.
Ioseb passou o resto da manhã a divagar mentalmente, imaginando como seria bom poder ver um filme de cowboys acompanhado pelos outros membros do partido. Não que muitos fossem realmente seus amigos, a maioria esperava somente um momento de fraqueza da sua parte para ficarem com o seu lugar. Olhou várias vezes pela janela, para vislumbrar as ruas da capital russa, as quais haviam escapado à águia Nazi no ano anterior, quase por milagre. Tinha esperança de conseguir deter a campanha dos alemães daquele ano, sem ceder muito território. A estratégia de esgotá-los ao ponto da ruptura não havia tido resultados positivos até ao momento. As divisões alemãs avançavam impiedosamente, sem terem grandes perdas materiais nem humanas. Para além disso, Estalinegrado, a cidade que fora renomeada em sua honra, estava perigosamente exposta. Não havia maneira de ficar indiferente aos acontecimentos.
Quando Aleksandr voltou, já à tarde, com um rascunho da ordem, Ioseb não perdeu tempo. Pegou na folha de papel dactilografada e começou a lê-la em voz alta, como se fosse ele mesmo a dar o discurso pessoalmente a todo o Exército Vermelho. Ajudava-o a perceber os defeitos do texto.
― O inimigo usa cada vez mais e mais recursos na frente de batalha e, não prestando atenção às perdas, movimenta-se, penetra mais fundo na União Soviética, captura novas áreas, devasta e saqueia as nossas cidades e aldeias, viola, mata e rouba o povo soviético. Algumas unidades na frente Sul, seguindo as sugestões dos vendilhões de pânico, abandonaram Rostov e Novocherkassk sem uma resistência séria, nem qualquer ordem de Moscovo, cobrindo, assim, de vergonha os seus estandartes.
Aquelas palavras iriam inflamar o patriotismo. Era um bom início, pois era necessário fundamentar a ordem. Os tempos eram demasiado difíceis e, se deixassem de obedecer às suas ordens, seria o completo desastre. Nem sempre as ordens careciam de uma explicação propriamente dita, a maioria das vezes bastava uma motivação. Invocar o patriotismo era premissa mais que suficiente para todo o tipo de exigências. Naquele momento, cada ordem fazia a diferença entre a derrota e a vitória, pois nunca a União Soviética estivera tão perto de ser derrotada, nem mesmo no Verão anterior, quando os alemães chegaram às portas de Moscovo.
― A população do nosso país, que ama e respeita o Exército Vermelho, está a ficar desapontada com ele, perdendo gradualmente a fé no mesmo. Muitos amaldiçoam o Exército por fugir para Este e deixar a população debaixo das garras dos alemães.
Isto deveria convencer, mesmo os mais pacíficos, de que a situação não se resolveria com medidas suaves, sem criticar em demasia o exército. Estava satisfeito com o resultado.
― Algumas pessoas na frente confortam-se com argumentos descuidados, afirmando que podemos continuar a fugir para Este, pois temos um território vasto com muito solo e pessoas, e que teremos sempre abundância de pão. Com tais argumentos, eles tentam justificar o seu vergonhoso comportamento na frente. Esses argumentos são totalmente falsos, errados, e só favorecem os nossos inimigos.
Fez uma pausa. Parecia-lhe adequado, deveriam mostrar a todos que os que defendiam que a situação se poderia manter daquela forma eram inimigos da nação. No entanto, esta parte do discurso não podia ser muito dura, pois tinham primeiro que ganhar a simpatia dos que ainda eram leais à nação, convencendo-os que algumas coisas teriam de ser alteradas. Só mais tarde é que iriam impor as novas regras, quando estivessem prontos a aceitá-las.
Ao ler o parágrafo seguinte, ficou desapontado. Aleksandr tinha-se limitado a citar os factos duma maneira ingénua e simplista. Não bastava revelar simplesmente a verdade, era também necessário exagerá-la um pouco, quase ao ponto duma dramatização. Fez algumas alterações ao parágrafo e voltou a lê-lo em voz alta, de modo a testar o seu efeito.
Podem encontrar a segunda parte em: http://pedro-cipriano.blogspot.co.uk/2012/08/nem-mais-um-passo-atras-segunda-parte.html
Este capítulo foi retirado do primeiro livro da trilogia de Estalinegrado, porque não estava relacionado directamente com as personagens principais. Apenas o publico aqui num exercício de pesquisa e ambientação do resto do livro.
Tinha bebido demasiado vinho na noite anterior mas, ao contrário do que muitos pensavam, o vinho aclarava-lhe as ideias ao invés das turvar. Era certamente um vício, mas sabia que conseguia controlá-lo na perfeição. Ioseb deu por si a olhar para o cabelo de Aleksandr enquanto ele expunha a situação, tentando perceber o porquê de usá-lo penteado para a esquerda, de uma maneira que considerava verdadeiramente ridícula.
― Espera lá! Repete o que disseste. ― ordenou Ioseb, subitamente alerta.
Aleksandr repetiu enquanto Ioseb se esforçava por se concentrar, andando para a frente e para trás na sala. Ao ouvir novamente, confirmou as suspeitas fundamentadas nos fragmentos que captara da primeira leitura.
― Esqueceram-se da minha ordem para as forças armadas! ― exaltou-se subitamente, interrompendo a leitura Referia-se à ordem que dera em Agosto passado, que definia o modo de lidar com desertores.
Aleksandr ficou estático, esperando que Ioseb continuasse.
― Esqueceram-na! ― repetiu, como se quisesse convencer-se a si mesmo.
A cabeça de Aleksandr fervilhava, tentando encontrar uma boa desculpa. Não fazia parte dos seus planos ser executado por traição.
― Escreve outra nos mesmos moldes! ― ordenou, virando-se para Aleksandr.
― Para quando quer que esteja pronta? ― perguntou Aleksandr, aliviado pela súbita mudança de atitude.
― Hoje! Avisa-me directamente assim que esteja pronta! ― ordenou Ioseb, ainda pensativo.
Ioseb passou o resto da manhã a divagar mentalmente, imaginando como seria bom poder ver um filme de cowboys acompanhado pelos outros membros do partido. Não que muitos fossem realmente seus amigos, a maioria esperava somente um momento de fraqueza da sua parte para ficarem com o seu lugar. Olhou várias vezes pela janela, para vislumbrar as ruas da capital russa, as quais haviam escapado à águia Nazi no ano anterior, quase por milagre. Tinha esperança de conseguir deter a campanha dos alemães daquele ano, sem ceder muito território. A estratégia de esgotá-los ao ponto da ruptura não havia tido resultados positivos até ao momento. As divisões alemãs avançavam impiedosamente, sem terem grandes perdas materiais nem humanas. Para além disso, Estalinegrado, a cidade que fora renomeada em sua honra, estava perigosamente exposta. Não havia maneira de ficar indiferente aos acontecimentos.
Quando Aleksandr voltou, já à tarde, com um rascunho da ordem, Ioseb não perdeu tempo. Pegou na folha de papel dactilografada e começou a lê-la em voz alta, como se fosse ele mesmo a dar o discurso pessoalmente a todo o Exército Vermelho. Ajudava-o a perceber os defeitos do texto.
― O inimigo usa cada vez mais e mais recursos na frente de batalha e, não prestando atenção às perdas, movimenta-se, penetra mais fundo na União Soviética, captura novas áreas, devasta e saqueia as nossas cidades e aldeias, viola, mata e rouba o povo soviético. Algumas unidades na frente Sul, seguindo as sugestões dos vendilhões de pânico, abandonaram Rostov e Novocherkassk sem uma resistência séria, nem qualquer ordem de Moscovo, cobrindo, assim, de vergonha os seus estandartes.
Aquelas palavras iriam inflamar o patriotismo. Era um bom início, pois era necessário fundamentar a ordem. Os tempos eram demasiado difíceis e, se deixassem de obedecer às suas ordens, seria o completo desastre. Nem sempre as ordens careciam de uma explicação propriamente dita, a maioria das vezes bastava uma motivação. Invocar o patriotismo era premissa mais que suficiente para todo o tipo de exigências. Naquele momento, cada ordem fazia a diferença entre a derrota e a vitória, pois nunca a União Soviética estivera tão perto de ser derrotada, nem mesmo no Verão anterior, quando os alemães chegaram às portas de Moscovo.
― A população do nosso país, que ama e respeita o Exército Vermelho, está a ficar desapontada com ele, perdendo gradualmente a fé no mesmo. Muitos amaldiçoam o Exército por fugir para Este e deixar a população debaixo das garras dos alemães.
Isto deveria convencer, mesmo os mais pacíficos, de que a situação não se resolveria com medidas suaves, sem criticar em demasia o exército. Estava satisfeito com o resultado.
― Algumas pessoas na frente confortam-se com argumentos descuidados, afirmando que podemos continuar a fugir para Este, pois temos um território vasto com muito solo e pessoas, e que teremos sempre abundância de pão. Com tais argumentos, eles tentam justificar o seu vergonhoso comportamento na frente. Esses argumentos são totalmente falsos, errados, e só favorecem os nossos inimigos.
Fez uma pausa. Parecia-lhe adequado, deveriam mostrar a todos que os que defendiam que a situação se poderia manter daquela forma eram inimigos da nação. No entanto, esta parte do discurso não podia ser muito dura, pois tinham primeiro que ganhar a simpatia dos que ainda eram leais à nação, convencendo-os que algumas coisas teriam de ser alteradas. Só mais tarde é que iriam impor as novas regras, quando estivessem prontos a aceitá-las.
Ao ler o parágrafo seguinte, ficou desapontado. Aleksandr tinha-se limitado a citar os factos duma maneira ingénua e simplista. Não bastava revelar simplesmente a verdade, era também necessário exagerá-la um pouco, quase ao ponto duma dramatização. Fez algumas alterações ao parágrafo e voltou a lê-lo em voz alta, de modo a testar o seu efeito.
Podem encontrar a segunda parte em: http://pedro-cipriano.blogspot.co.uk/2012/08/nem-mais-um-passo-atras-segunda-parte.html
Este capítulo foi retirado do primeiro livro da trilogia de Estalinegrado, porque não estava relacionado directamente com as personagens principais. Apenas o publico aqui num exercício de pesquisa e ambientação do resto do livro.
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