segunda-feira, 5 de janeiro de 2015

Um Céu Nublado


A visão da suástica preta na enorme bandeira vermelha fez Marta estremecer. O coração da jovem falhou uma batida. Piscou os olhos.
Nada.
Não havia nenhuma bandeira. Do outro lado do largo existia apenas um enorme edifício de tijolo vermelho. Confusa, afastou-se da janela, virando-se para o quarto pintado de branco com soalho de madeira. Aproximou-se da mala, aberta no meio da divisão.



– Só pode ser cansaço – murmurou, agarrando nuns jeans.
Aterrara naquela manhã de Setembro em Hamburgo, ao abrigo do programa Erasmus. Licenciatura em História e perspectivas de emprego nulas. Não era de admirar que os pais se tivessem oposto à despesa de viver um ano na Alemanha.
Só pode ser do stress e do sono, concluiu, relembrando o ambiente de cortar à faca durante a despedida. Olhou para o portátil sobre a mesa. Estava excitada para contar aos colegas a aventura em que se metera. A dor de cabeça voltou e fê-la mudar de ideias. Atirou com os jeans para o armário e decidiu preparar o jantar.
Achtung! – Gritou uma voz masculina, vinda do exterior.
Espreitou de novo pela janela. O largo estava deserto. A respiração e a pulsação aceleraram.
Agarrou nas chaves da casa e saiu do quarto. Deteve-se a meio do corredor. Voltou para trás, agarrando num casaco de malha. As noites eram mais frias do que estava habituada em Portugal. Abandonou o apartamento, iniciando a penosa descida de quatro andares. Aqueles prédios já ali estavam desde os anos vinte. Nenhum deles tinha elevador.
Tomou nota mental para deixar de jogar Wolfenstein, reduzir na Internet e dormir mais uma hora cada noite. Uma nova cidade, uma nova vida. Uma boa altura para deixar os velhos vícios, constatou com um sorriso, galgando os degraus dois a dois.
Apesar de passar um pouco das nove da noite, a rua estava quase deserta. Contornou o prédio dirigindo-se ao largo.
Ao virar a esquina, voltou a ver a bandeira Nazi a dobrar. Duas enormes faixas vermelhas desciam do edifício de cinco andares. Meia dúzia de veículos em forma de cabeça de cachorro estavam estacionados no largo pavimentado. Calculou que tivessem pelo menos uns setenta anos.
Fechou os olhos e cerrou os punhos, tentando varrer a alucinação da cabeça. Quando os abriu, o vermelho berrante feriu-lhe os olhos. Questionou-se como seria possível, lembrando-se que tais símbolos eram proibidos.
A mão esquerda começou a tremer. Olhou em volta. Parecia que tinha recuado no tempo. Até as lâmpadas eram diferentes, só a noite nublada se mantinha.
Um jovem de uniforme preto, com uma metralhadora ao ombro e uma faixa vermelha no antebraço, patrulhava as imediações.
Quis afastar-se dali, mas os pés estava pregados ao chão. Esperou, como um rato espera que a cobra o devore, enquanto o soldado completava a ronda. Sem se conseguir mexer, susteve a respiração. Ele virou e os olhares cruzaram-se. O soldado arregalou os olhos e os dedos procuraram a coronha da arma. O coração de Marta quase lhe saltava do peito.
Fraulein, bitte…
Uma dose de adrenalina percorreu-lhe o corpo. Virou-se e começou a correr na direcção de onde viera. Ouviu o destrancar da patilha da arma.
A colisão deixou-a atordoada. Um telemóvel topo de gama caíra ao chão. Acabara de chocar com um homem de meia idade. Ainda no chão, levantou a cabeça e olhou para trás. Viu apenas um jardim vazio e escuro.
Sem se incomodar com o barafustar do homem, ficou a observar o largo, sem coragem para entrar nele. Esperou até não aguentar mais o frio. Nada mudou.

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