Blogue dedicado às minhas aventuras literárias. Novos artigos todas as segundas, quartas e sextas. Rubrica especial de domingo: Chá de Domingo.
quarta-feira, 27 de março de 2013
O Guarda-livros - parte 3/4
– O livreiro não está nada bem...
– Não se preocupem, acho que sofro de claustrofobia – mentiu, apoiando-se na parede.
Respirou fundo e concentrou toda a atenção em acalmar-se.
– Não podemos fazer mais do que esperar, por isso, propunha que dividíssemos uma das conservas. As crianças devem estar com fome – sugeriu, apontando para as três latas guardadas ao canto.
A ideia foi aceite e pouco depois Carlos mastigava o seu terço de sardinha. Durante a sua juventude sonhara ser escritor, mas vicissitudes da vida tinham ditado que seria apenas livreiro. Quando a guerra entre o Norte e o Sul da Europa estalara, fora chamado a servir na fronteira Sul. Madrid e Lisboa caíram nos primeiros dias mas o resto das regiões não se submeteu, forçando os Franceses avançaram para tentar capturar o Porto. A Invicta montara uma defesa avançada e uma luta de recuos estratégicos, procurando causar o máximo de baixas no inimigo. Ajudados pelos galegos, a estratégia fora bem-sucedida e o colapso energético obrigara ao fim da ocupação. Pudera então voltar a casa e reabrir a sua loja.
O seus pensamentos foram interrompidos pelo soar das sirenes.
Ao ler a notícia no jornal, apercebeu-se que corria um enorme perigo por manter aquele caixote nas traseiras. Nesse Outono várias pessoas haviam sido presas. A lista de livros não autorizados passou a ser a lista de livros proibidos.
Nessa noite havia removido várias tábuas do soalho, escondendo lá os volumes. Sabia que no século anterior houvera outra ditadura, que durara quarenta e oito anos. Era muito tempo. Ao olhar para os tomos a que se fora afeiçoando, soube que provavelmente não viveria até ao fim deste regime e que não poderia guardá-los tanto tempo.
Deitou-se, sem conseguir pregar olho. Sabia que era uma questão de tempo até alguém decidir revistar a sua casa. Faziam-no com tanta frequência que se tornara parte de rotina. Não tinha esperanças que o esconderijo não fosse descoberto por um olho mais atento. A pena para tal infracção fazia tremer o mais corajoso dos homens. Servir dois anos num batalhão penal, desempenhando tarefas suicidas equivalia na prática à pena de morte.
Ao amanhecer a solução chegou-lhe como uma revelação. Iria esconder os livros por toda a cidade, na esperança que alguns pudessem ser encontrados no futuro. Sentiu-se vivo como não se sentia há muito tempo. Tinha uma missão a cumprir.
A artilharia respondeu em força. Carlos deu por si a roer as unhas, um hábito que pensara ter perdido há anos. Era demasiada tensão para um dia só e, ao olhar os restantes, viu que não era o único a pensar assim. O sinal de costa livre não tardou a chegar.
Deu por si a desejar a morte dos inimigos, reacendendo sentimentos nacionalistas que julgava ter ultrapassado. Conseguia ver finalmente o sentido nas palavras dos líderes. Os responsáveis por este ataque a inocentes tinham de pagar pelos seus crimes. Deu por si a desejar que fossem bombardeados com o dobro da intensidade. Sentiu-se parvo por se preocupar com meia dúzia de livros enquanto as pessoas à sua volta morriam. Para que proteger a memória de um passado comum quando eram inimigos e largavam bombas sobre a sua cidade?
Era como se tivesse acordado de um sonho perturbador. Todos os ideais se tinham invertido em poucos minutos. Portugueses eram como os franceses, ambos hostis. Deixou-se cair no degrau, cheio de remorsos. Sentia que traíra a sua nação com actos e intenções.
Naquela madrugada não havia conseguido dormir. Embrulhou o livro e saiu ao despontar do dia. Ao vaguear pelas ruas quase desertas, encontrou um local onde andavam a trocar o alcatrão por pavimento. Sem pensar duas vezes, enterrara-o com rapidez no sítio onde iriam calcetar nesse dia.
– O senhor está bem? – perguntou a menina de oito anos.
Carlos olhou-a nos olhos e o remorso voltou. Quantas raparigas da idade dela sofreriam naquele momento? Valeria a pena defender um idealismo inconsequente?
– Realmente, você está mesmo pálido – confirmou a mãe da miúda.
– Deve ser dos nervos, nunca me vi numa situação destas...
A mulher acenou como se lhe fosse responder, mas acabou por não dizer nada.
Fechou os olhos. Queria esvaziar a mente como um dos colegas do exército lhe havia ensinado. Veio-lhe à memória a imagem do que restara dele quando fora atingido por um disparo de artilharia. Passos. Abriu os olhos estonteado pondo-se à escuta. Os passos continuavam lá ao longe.
– Está alguém aqui perto! – exclamou, levantando-se.
– Socorro, estamos soterrados! – gritou a mais gorda das mulheres.
Outras vozes se juntaram numa algazarra ensurdecedora.
– Calem-se um momento, para ver se temos resposta – pediu o mais baixo dos homens.
– Já vos ouvimos, os bombeiros não tardam a chegar aqui – tranquilizaram-nos do lado de fora.
Carlos foi o último a sair do abrigo. Apesar de o prever, nada o preparou para o que encontrou. O prédio fora atingido por uma bomba e pouco mais que algumas paredes se mantinham de pé. Parte dele tinha desabado sobre o abrigo. A rua tinha sido severamente atingida e poucos eram os edifícios que não apresentavam danos. Ao longe, contrastando com a escuridão da noite, alguns fogos ardiam ainda. Ouviu gritos de dor. Não queria pensar sequer nas pessoas que haviam ficado soterradas nos escombros. Conseguiu apenas imaginar as manchetes da manhã como: “Maior bombardeamento da década”.
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