segunda-feira, 25 de março de 2013

O Guarda-livros - parte 2/4


Podem encontrar a primeira parte em: http://pedro-cipriano.blogspot.de/2013/03/o-guarda-livros-parte-14.html


Ao abrir as três caixas que haviam sido entregues naquela manhã, percebeu que a compensação do estado não lhe agradava. Os novos livros eram apenas versões distorcidas dos que lhe haviam sido retirados. O valor deles não chegava sequer para cobrir metade do prejuízo e escrever um agradecimento ao Ministério da Cultura fora o maior frete da sua vida.
Foi depois de almoço que encontrara um monte de livros que não havia sido inspeccionado. Olhou para a pilha sem saber se deveria seguir a sensatez ou a consciência. Só a irritação com a situação facilitou a escolha.
O som estridente impelia-o a andar. Saiu porta fora em direcção ao abrigo ao lado do edifício. Olhou para a esfera celestial de fim de tarde. Só algumas nuvens polvilhavam o céu de Setembro e dos aviões nem sinal.
Supondo que o alarme fora dado no momento certo, calculou que ainda tinha um par de minutos. Apressado voltou atrás e trancou a porta do apartamento. Não queria que andassem a bisbilhotar nas suas coisas enquanto estivesse na cave. Entretanto as outras duas famílias tinham abandonado o prédio, sendo ele o último a descer as escadas.
Até ao momento em que alguém conseguiu acender uma solitária vela a escuridão fora quase total. Assim como tinham começado, as sirenes calaram-se. Ele sabia que a razão para isso acontecer era simples, grande parte dos sistemas de defesa anti-aérea usava o som como referência.
O silêncio foi quebrado pelo metralhar de uma automática. Os motores dos aviões ouviam-se ao longe e, a cada momento, mais alto. Apesar de já contarem com isso, a queda da primeira bomba sobressaltou-os. O prédio estremeceu ligeiramente e as crianças olharam para os pais assustadas. O barulho aumentou de intensidade. A artilharia disparava de modo cadenciado e as bombas iam caindo, ora mais perto, ora mais longe.
A terra abanou e o barulho foi de tal modo ensurdecedor que ficou com um zumbido nos ouvidos. Algo caiu sobre o abrigo, fazendo com que parte do estuque se desprendesse do tecto. A poeira começou a invadir o pequeno espaço. As crianças desataram a chorar e os adultos olharam uns para os outros com um ar grave.
Lá fora a batalha pelos céus da capital continuava.
Havia sido num doce dia de Verão. Mais que o desejo de ler, só o ar quente da rua convidava a entrar na livraria. A campainha presa à porta anunciou a entrada do homem magro de meia-idade. Carlos levantou os olhos do jornal e olhou para o desconhecido.
– Boa tarde, em que posso servi-lo?
– Eu procuro alguns livros – declarou, passando-lhe um papel dobrado.
O livreiro desdobrou a folha encontrando uma única referência manuscrita.
– Minha Nossa Senhora, os Lusíadas...
O homem levou o dedo aos lábios. Ele observou-o em minúcia, desconfiado que se tratava de um agente do governo. No entanto, ao olhar nos olhos dele, viu o mesmo receio espelhado. Acabou por concluir que após mais de um ano de más vendas, não se podia dar ao luxo de desperdiçar um cliente.
– Siga-me – indicou, levando-o até à salinha adjacente onde guardava o resto da mercadoria.
O outro homem guardava alguma distância dele, ficando à porta. O medo permanecia nos seus olhos.
– O que tenho está nesta caixa, foi o que escapou quando a polícia cá esteve.
Como o cliente não se mexia, acabou por se abaixar e abrir a caixa de cartão. Um momento depois estendia-lhe um livro de capa vermelha que deveria ter um pouco mais de vinte anos de idade.
Assim que o desconhecido agarrou a mercadoria, as explosões voltaram, muitas assustadoramente próximas. As mães agarravam-se aos filhos e os pais observavam impotentes. O único conforto era ainda ouvirem a resposta ininterrupta das anti-aéreas.
O barulho cessou. O silêncio era tão pesado que lhe feria os ouvidos. Ninguém se mexeu. Sentia-se cansado, o desgaste emocional tornara-se físico. A luz extinguiu-se. Ouvia o respirar cadenciado dos outros e teve a certeza que todos podiam escutar o bater do seu coração.
As sirenes voltaram a tocar, indicando que já era seguro saírem. Carlos venceu a inércia e empurrou a porta do abrigo. Esta resistiu-lhe e após um empurrão mais forte, descobriu que estava algo a bloqueá-la. O chefe de família do andar de cima veio ajudá-lo, mas nem com o conjunto dos quatro homens disponíveis foi possível mexê-la.
– Oh meu Deus, vamos morrer soterrados... – constatou uma mulher antes de desmaiar.
Relembrou que demorara dois dias depois para se habituar à ideia. Mantivera sempre o grosso envelope junto ao peito, sem saber como usá-lo sem despertar suspeitas. Um livreiro nunca seria rico enquanto o estado atravessasse a maior recessão que havia memória.
O mesmo homem entrou na loja pouco antes do fecho. Desta feita, a lista era maior e incluía todo o tipo de livros não autorizados.
– Quero tudo o que tiver – acrescentou o homem.
Depressa perceberam que não iam conseguir sair sem ajuda, já que todo o esforço se traduzira numa pequena fresta. Lá fora ouviam-se ao longe os bombeiros. Uma das mulheres tinha conseguido reacender a vela.
– Não te preocupes querida, que já nos vêm salvar. Alguém há-de ver que a entrada do abrigo está tapada – confortou um dos maridos.
Isto só seria verdade se o ataque não tivesse sido muito severo, constatou Carlos em silêncio. Depois lembrou-se dos livros. Se se desse o caso de o procurarem em casa, poderiam encontrá-los. O coração começou a bater descontroladamente e a respiração ficou entrecortada.

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