quarta-feira, 20 de março de 2013

O Guarda-livros - parte 1/4


As tardes favoritas de Carlos eram as de Domingo. O movimento era pouco e podia dedicar-se à sua actividade preferida sem ser incomodado.
Caminhou pelas ruas desertas do Porto. A população ouvia a emissão de rádio em suas casas. A hora era perfeita, mais cedo havia namorados no parque e mais tarde seria suspeito. Entrou pelo portão principal semi-oculto pelo chapéu de feltro e sobretudo de gola alta, todo vestido de preto. Queria poder passar por um agente do governo. Ensinaram-lhe que quando se tratava de actividades proibidas, nada podia ser deixado ao acaso.
Passeou pelo parque, procurando uma zona sossegada. Antes de se abaixar, olhou em volta, verificando que a costa estava livre. A adrenalina entrou-lhe no sangue e o batimento cardíaco aumentou. Retirou o pé de cabra de dentro do casaco e levantou uma laje. Com uma pequena pá, fez um buraco rectangular, colocando a terra num saquinho de ráfia. Retirou o livro já embalado em várias camadas de isolamento impermeável e meteu-o no buraco. Fez uma carícia de despedida ao livro, era a sua última cópia de “Os Maias” de Eça de Queiroz. Atirou algum solo para cima e recolocou a laje, fixando-a com um pequeno martelo. Devido ao par de anos de prática, todo o processo demorara menos de um minuto.
Ao levantar-se, distinguiu pelo canto do olho uma silhueta. Sem hesitar, afastou-se dali em passo apressado. A respiração e pulsação aceleraram ainda mais. Olhou por cima do ombro. Não viu ninguém. Despejou o saco de terra num canteiro e saiu pela outra entrada. Ao virar a esquina, viu que a figura ainda o seguia à distância.
Quando os soldados entraram na livraria ele fez a única coisa que a sobrevivência lhe aconselhou: sorrira e dissera-lhe para levarem tudo o que quisessem.
A esperança que a vida iria melhorar com fim da guerra Europeia morrera nesse momento. Todavia, tudo piorara quando um governo extremista de aspirações megalómanas se apoderara do pequeno estado. Com o antigo país dividido em três, já não havia lugar para os livros que relembrassem que um dia houvera Portugal.
Haviam chegado munidos de uma lista e disseram-lhe para se manter calmo, que tudo correria bem. Prometeram-lhe até que o estado lhe daria uma compensação pelos danos. Haviam levado quatro em cada cinco livros.
Continuara a caminhar ao acaso pelas ruas até perder o vulto de vista, só depois retomou a sua rota.
Assim que chegou a casa, retirou as ferramentas que lhe pesavam horrivelmente e guardou-as na despensa. Pendurou o chapéu e casaco na entrada do piso térreo do edifício de três andares. Sentou-se no sofá e ligou o rádio para ouvir o resto da emissão.
– Cidadãos de Porto e Galiza, os nossos inimigos Portugueses tentaram mais uma vez atravessar a linha do Mondego com uma ofensiva traiçoeira. Ameaçando as nossas famílias e os nossos campos. Contudo, a heróica divisão blindada do Sul conseguiu repelir o ataque...
Só havia uma voz que odiava mais do que a do ministro da defesa: a do ministro dos assuntos internos. Sabia ser tudo propaganda para incitar ao ódio.
Com o pé de cabra levantou algumas tábuas do velho soalho. Retirou a folha amarelecida do topo. Era uma lista encriptada de todos os locais onde havia enterrado livros. Sorriu de satisfação, sem este pedaço de papel, só virando a cidade do avesso é que conseguiriam encontrá-los a todos. Nem mesmo Carlos se conseguia recordar dos cento e dois lugares que já usara.
– ...Iremos atacá-los sem piedade e mostrar-lhes que cometeram um erro grave. Quem diz que deveríamos esquecer as divergências e procurar a paz não é mais do que um agente do inimigo, infiltrado entre nós para plantar a dúvida no povo. Cidadãos, todos o que se opuserem ao nosso nobre propósito devem enfrentar as consequências dessa traição...
Nunca prestava atenção às palavras do governante, apenas ligava o rádio para ter a certeza que o vizinho de cima o ouvia e de modo a abafar os ruídos da sua actividade ilícita.
Anotou com cuidado o local com uma mistura ininteligível de números e letras. Por um momento, observou os nove livros que ainda lhe restavam. Agarrou no “Felizmente há Luar!” e envolveu-o com cuidado na película impermeável. Fixou as tábuas de volta e sentou-se de volta no sofá.
– ...Merecem a morte. Não podemos tolerar tal falta de nacionalismo! A pena será capital! Cidadãos de Porto e Galiza...
Ouviu-se uma sirene. Carlos levantou-se num pulo e desligou o rádio. Uma segunda e uma terceira tocaram também, num tom impossível de ignorar. Um ataque aéreo à cidade estava eminente.

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