sexta-feira, 29 de março de 2013

O Guarda-livros - parte 4/4


Quando acordou, demorou um par de segundos a entender o que se passava. As imagens da cidade em chamas voltaram a sua memória, despertando-o à mesma velocidade que um corrente de ar frio o faria. Ainda estava calçado e vestido como na noite anterior e só um cobertor velho o resguardava. Levantou-se do sofá que lhe fora cedido pela família e olhou através da janela.
Amanhecera sem nuvens. Ao consultar o relógio, viu que já passavam muito da hora de abertura da loja. Só deu dois passos antes de perceber que com a cidade assim, não valia a pena abrir o negócio de todo. Isto era, se é que o edifício ainda estava de pé.
Depois lembrou-se dos livros. Assim que removessem os destroços, era provável que os encontrassem. Um calafrio subiu-lhe pela espinha ao recordar a pena que o esperava se fosse apanhado.
Um cheiro a ovos fritos atraiu-o à cozinha, lembrando-o que nas última coisa que comera fora uma amostra de peixe. A família tomava o pequeno-almoço e havia um lugar vazio.
– Sente-se aqui connosco, deve estar com fome – ofereceu o chefe de família, levantando-se.
– Eu não queria incomodar... – desculpou-se, olhando para a ponta dos sapatos.
– Ora essa, não incomoda nada. Tenho a certeza que se estivesse no nosso lugar faria o mesmo.
Acenou com a cabeça e sentou-se. Era uma família numerosa e, se calhar, passava dificuldades financeiras e mesmo assim partilhavam o pouco que tinham com ele. Comoveu-o essa generosidade e ficou com um nó na garganta, mal conseguindo engolir a dentada que dera no pão do dia anterior.
Ao sair para a rua ainda tinha fome, mas não conseguira aceder aos pedidos da família para comer mais. A visão diurna da rua revelava-lhe detalhes mais dramáticos que a da noite anterior. Havia entulho um pouco por todo o lado e a destruição era quase total. Todavia, o que mais o impressionou foi as faces de desespero de quem perdera tudo. Não conseguiu deixar de se sentir triste ao perceber que não eram somente perdas materiais.
A sua casa passara a quatro meias paredes e um monte de entulho. As outras duas famílias procuravam recuperar alguns haveres no meio da pilha de detritos. Pelas expressões dos seus vizinhos, não deveria haver muito que se pudesse recuperar. Nem acho que valesse a pena tentar a sua sorte, por isso sentou-se num dos blocos que fora projectado para o passeio.
A questão da noite anterior voltou-lhe a atormentar o espírito. Perguntou-se porque é que se dedicava a salvar livros enquanto as pessoas morriam à sua volta. Não quis ficar parado a cismar, por isso levantou-se a caminhou ao acaso.
A guerra contra o Sul fora declarada no Inverno de há dois anos atrás. O Porto acusava Lisboa de ter começado e, pelo que sabia, os inimigos tinham a opinião contrária. Fora a única altura da vida em que ficara contente por estar em envelhecer. Como ultrapassara a idade da recruta, não foi chamado a defender as fronteiras. Durante meses a guerra desenrolara-se com alguns incidentes que incendiavam as tensões, mas que mantinham o conflito num cauteloso impasse. Se acreditasse nas notícias, ofensiva recente do Sul quebrara esse precário equilíbrio.
– … Não iremos tolerar o ataque traiçoeiro que sofremos esta noite – ouviu da rua, a partir de uma das casas.
Aproximou-se para tentar ouvir o discurso. Pela primeira vez queria absorver cada palavra, na esperança que os governantes lhe dessem a protecção de que tanto carecia.
– Cidadãos, as perdas materiais e humanas foram avultadas. O nosso estado está de luto por tal afronta, mas, não temais! Por cada bomba que eles largaram, iremos largar dez. Por cada bala disparada, iremos disparar cem. Por cada casa, destruiremos uma rua. Por cada familiar pedido destroçaremos uma família. O inimigo trouxe a guerra às nossas portas, cabe-nos a nós mandá-la de volta para as suas cidades. Cada soldado, cada operário, cada agricultor, cada cidadão é importante! Unidos iremos fazer a vingança cair-lhes em cima e esmagá-los com a nossa justiça...
O discurso ficou-lhe gravado na memória como uma queimadura na pele. Quase hipnotizado pela doutrina totalitarista, nem reparou que os passos o levavam ao seu local de trabalho.
A livraria já não existia. Os remorsos falaram mais alto, indicando-lhe que era a punição pela sua revolta. Nem se preocupou em procurar os livros entre o entulho. Aliás, já não queria ouvir mais falar em literatura, quer fosse proibida ou autorizada. Estava farto de viver num mundo de ficção, enquanto a realidade lhe escapava a cada momento.
Entusiasmado não sabia bem com o quê, voltou à sua rua. Num autêntico acto de contrição, dedicou-se a ajudar os vizinhos a remover os destroços. Aquela tarefa árdua trouxe-lhe uma espécie de alivio que há muito tempo não sentia, como se o peso do mundo lhe tivesse saído dos ombros.
Nessa noite partilharam um jantar de enlatados que havia sido providenciado pelas autoridades. Fora uma refeição frívola mas suficiente. A promessa de reconstrução dada pelo líder da freguesia trouxera novo alento àquelas almas desesperadas. Nessas escassas horas, Carlos foi feliz, ao redescobrir a simplicidade e generosidade humana.
A felicidade estendeu-se durante o resto da semana, enquanto ajudava na limpeza e reconstrução. Ao ver um cartaz de recrutamento para uma fábrica de armamento, achou que o acaso lhe tinha indicado o caminho a seguir. Acreditou que o seu futuro durante a guerra estava decidido.
Contudo, o aparecimento de dois homens com fatos fora de moda e óculos com pelo menos vinte anos de idade indicaram-lhe que estava errado. Aceitou a pena com resignação e foi recompensado por não a ter de a suportar por mais de um mês.

FIM



quarta-feira, 27 de março de 2013

O Guarda-livros - parte 3/4


– O livreiro não está nada bem...
– Não se preocupem, acho que sofro de claustrofobia – mentiu, apoiando-se na parede.
Respirou fundo e concentrou toda a atenção em acalmar-se.
– Não podemos fazer mais do que esperar, por isso, propunha que dividíssemos uma das conservas. As crianças devem estar com fome – sugeriu, apontando para as três latas guardadas ao canto.
A ideia foi aceite e pouco depois Carlos mastigava o seu terço de sardinha. Durante a sua juventude sonhara ser escritor, mas vicissitudes da vida tinham ditado que seria apenas livreiro. Quando a guerra entre o Norte e o Sul da Europa estalara, fora chamado a servir na fronteira Sul. Madrid e Lisboa caíram nos primeiros dias mas o resto das regiões não se submeteu, forçando os Franceses avançaram para tentar capturar o Porto. A Invicta montara uma defesa avançada e uma luta de recuos estratégicos, procurando causar o máximo de baixas no inimigo. Ajudados pelos galegos, a estratégia fora bem-sucedida e o colapso energético obrigara ao fim da ocupação. Pudera então voltar a casa e reabrir a sua loja.
O seus pensamentos foram interrompidos pelo soar das sirenes.
Ao ler a notícia no jornal, apercebeu-se que corria um enorme perigo por manter aquele caixote nas traseiras. Nesse Outono várias pessoas haviam sido presas. A lista de livros não autorizados passou a ser a lista de livros proibidos.
Nessa noite havia removido várias tábuas do soalho, escondendo lá os volumes. Sabia que no século anterior houvera outra ditadura, que durara quarenta e oito anos. Era muito tempo. Ao olhar para os tomos a que se fora afeiçoando, soube que provavelmente não viveria até ao fim deste regime e que não poderia guardá-los tanto tempo.
Deitou-se, sem conseguir pregar olho. Sabia que era uma questão de tempo até alguém decidir revistar a sua casa. Faziam-no com tanta frequência que se tornara parte de rotina. Não tinha esperanças que o esconderijo não fosse descoberto por um olho mais atento. A pena para tal infracção fazia tremer o mais corajoso dos homens. Servir dois anos num batalhão penal, desempenhando tarefas suicidas equivalia na prática à pena de morte.
Ao amanhecer a solução chegou-lhe como uma revelação. Iria esconder os livros por toda a cidade, na esperança que alguns pudessem ser encontrados no futuro. Sentiu-se vivo como não se sentia há muito tempo. Tinha uma missão a cumprir.
A artilharia respondeu em força. Carlos deu por si a roer as unhas, um hábito que pensara ter perdido há anos. Era demasiada tensão para um dia só e, ao olhar os restantes, viu que não era o único a pensar assim. O sinal de costa livre não tardou a chegar.
Deu por si a desejar a morte dos inimigos, reacendendo sentimentos nacionalistas que julgava ter ultrapassado. Conseguia ver finalmente o sentido nas palavras dos líderes. Os responsáveis por este ataque a inocentes tinham de pagar pelos seus crimes. Deu por si a desejar que fossem bombardeados com o dobro da intensidade. Sentiu-se parvo por se preocupar com meia dúzia de livros enquanto as pessoas à sua volta morriam. Para que proteger a memória de um passado comum quando eram inimigos e largavam bombas sobre a sua cidade?
Era como se tivesse acordado de um sonho perturbador. Todos os ideais se tinham invertido em poucos minutos. Portugueses eram como os franceses, ambos hostis. Deixou-se cair no degrau, cheio de remorsos. Sentia que traíra a sua nação com actos e intenções.
Naquela madrugada não havia conseguido dormir. Embrulhou o livro e saiu ao despontar do dia. Ao vaguear pelas ruas quase desertas, encontrou um local onde andavam a trocar o alcatrão por pavimento. Sem pensar duas vezes, enterrara-o com rapidez no sítio onde iriam calcetar nesse dia.
– O senhor está bem? – perguntou a menina de oito anos.
Carlos olhou-a nos olhos e o remorso voltou. Quantas raparigas da idade dela sofreriam naquele momento? Valeria a pena defender um idealismo inconsequente?
– Realmente, você está mesmo pálido – confirmou a mãe da miúda.
– Deve ser dos nervos, nunca me vi numa situação destas...
A mulher acenou como se lhe fosse responder, mas acabou por não dizer nada.
Fechou os olhos. Queria esvaziar a mente como um dos colegas do exército lhe havia ensinado. Veio-lhe à memória a imagem do que restara dele quando fora atingido por um disparo de artilharia. Passos. Abriu os olhos estonteado pondo-se à escuta. Os passos continuavam lá ao longe.
– Está alguém aqui perto! – exclamou, levantando-se.
– Socorro, estamos soterrados! – gritou a mais gorda das mulheres.
Outras vozes se juntaram numa algazarra ensurdecedora.
– Calem-se um momento, para ver se temos resposta – pediu o mais baixo dos homens.
– Já vos ouvimos, os bombeiros não tardam a chegar aqui – tranquilizaram-nos do lado de fora.
Carlos foi o último a sair do abrigo. Apesar de o prever, nada o preparou para o que encontrou. O prédio fora atingido por uma bomba e pouco mais que algumas paredes se mantinham de pé. Parte dele tinha desabado sobre o abrigo. A rua tinha sido severamente atingida e poucos eram os edifícios que não apresentavam danos. Ao longe, contrastando com a escuridão da noite, alguns fogos ardiam ainda. Ouviu gritos de dor. Não queria pensar sequer nas pessoas que haviam ficado soterradas nos escombros. Conseguiu apenas imaginar as manchetes da manhã como: “Maior bombardeamento da década”.

segunda-feira, 25 de março de 2013

O Guarda-livros - parte 2/4


Podem encontrar a primeira parte em: http://pedro-cipriano.blogspot.de/2013/03/o-guarda-livros-parte-14.html


Ao abrir as três caixas que haviam sido entregues naquela manhã, percebeu que a compensação do estado não lhe agradava. Os novos livros eram apenas versões distorcidas dos que lhe haviam sido retirados. O valor deles não chegava sequer para cobrir metade do prejuízo e escrever um agradecimento ao Ministério da Cultura fora o maior frete da sua vida.
Foi depois de almoço que encontrara um monte de livros que não havia sido inspeccionado. Olhou para a pilha sem saber se deveria seguir a sensatez ou a consciência. Só a irritação com a situação facilitou a escolha.
O som estridente impelia-o a andar. Saiu porta fora em direcção ao abrigo ao lado do edifício. Olhou para a esfera celestial de fim de tarde. Só algumas nuvens polvilhavam o céu de Setembro e dos aviões nem sinal.
Supondo que o alarme fora dado no momento certo, calculou que ainda tinha um par de minutos. Apressado voltou atrás e trancou a porta do apartamento. Não queria que andassem a bisbilhotar nas suas coisas enquanto estivesse na cave. Entretanto as outras duas famílias tinham abandonado o prédio, sendo ele o último a descer as escadas.
Até ao momento em que alguém conseguiu acender uma solitária vela a escuridão fora quase total. Assim como tinham começado, as sirenes calaram-se. Ele sabia que a razão para isso acontecer era simples, grande parte dos sistemas de defesa anti-aérea usava o som como referência.
O silêncio foi quebrado pelo metralhar de uma automática. Os motores dos aviões ouviam-se ao longe e, a cada momento, mais alto. Apesar de já contarem com isso, a queda da primeira bomba sobressaltou-os. O prédio estremeceu ligeiramente e as crianças olharam para os pais assustadas. O barulho aumentou de intensidade. A artilharia disparava de modo cadenciado e as bombas iam caindo, ora mais perto, ora mais longe.
A terra abanou e o barulho foi de tal modo ensurdecedor que ficou com um zumbido nos ouvidos. Algo caiu sobre o abrigo, fazendo com que parte do estuque se desprendesse do tecto. A poeira começou a invadir o pequeno espaço. As crianças desataram a chorar e os adultos olharam uns para os outros com um ar grave.
Lá fora a batalha pelos céus da capital continuava.
Havia sido num doce dia de Verão. Mais que o desejo de ler, só o ar quente da rua convidava a entrar na livraria. A campainha presa à porta anunciou a entrada do homem magro de meia-idade. Carlos levantou os olhos do jornal e olhou para o desconhecido.
– Boa tarde, em que posso servi-lo?
– Eu procuro alguns livros – declarou, passando-lhe um papel dobrado.
O livreiro desdobrou a folha encontrando uma única referência manuscrita.
– Minha Nossa Senhora, os Lusíadas...
O homem levou o dedo aos lábios. Ele observou-o em minúcia, desconfiado que se tratava de um agente do governo. No entanto, ao olhar nos olhos dele, viu o mesmo receio espelhado. Acabou por concluir que após mais de um ano de más vendas, não se podia dar ao luxo de desperdiçar um cliente.
– Siga-me – indicou, levando-o até à salinha adjacente onde guardava o resto da mercadoria.
O outro homem guardava alguma distância dele, ficando à porta. O medo permanecia nos seus olhos.
– O que tenho está nesta caixa, foi o que escapou quando a polícia cá esteve.
Como o cliente não se mexia, acabou por se abaixar e abrir a caixa de cartão. Um momento depois estendia-lhe um livro de capa vermelha que deveria ter um pouco mais de vinte anos de idade.
Assim que o desconhecido agarrou a mercadoria, as explosões voltaram, muitas assustadoramente próximas. As mães agarravam-se aos filhos e os pais observavam impotentes. O único conforto era ainda ouvirem a resposta ininterrupta das anti-aéreas.
O barulho cessou. O silêncio era tão pesado que lhe feria os ouvidos. Ninguém se mexeu. Sentia-se cansado, o desgaste emocional tornara-se físico. A luz extinguiu-se. Ouvia o respirar cadenciado dos outros e teve a certeza que todos podiam escutar o bater do seu coração.
As sirenes voltaram a tocar, indicando que já era seguro saírem. Carlos venceu a inércia e empurrou a porta do abrigo. Esta resistiu-lhe e após um empurrão mais forte, descobriu que estava algo a bloqueá-la. O chefe de família do andar de cima veio ajudá-lo, mas nem com o conjunto dos quatro homens disponíveis foi possível mexê-la.
– Oh meu Deus, vamos morrer soterrados... – constatou uma mulher antes de desmaiar.
Relembrou que demorara dois dias depois para se habituar à ideia. Mantivera sempre o grosso envelope junto ao peito, sem saber como usá-lo sem despertar suspeitas. Um livreiro nunca seria rico enquanto o estado atravessasse a maior recessão que havia memória.
O mesmo homem entrou na loja pouco antes do fecho. Desta feita, a lista era maior e incluía todo o tipo de livros não autorizados.
– Quero tudo o que tiver – acrescentou o homem.
Depressa perceberam que não iam conseguir sair sem ajuda, já que todo o esforço se traduzira numa pequena fresta. Lá fora ouviam-se ao longe os bombeiros. Uma das mulheres tinha conseguido reacender a vela.
– Não te preocupes querida, que já nos vêm salvar. Alguém há-de ver que a entrada do abrigo está tapada – confortou um dos maridos.
Isto só seria verdade se o ataque não tivesse sido muito severo, constatou Carlos em silêncio. Depois lembrou-se dos livros. Se se desse o caso de o procurarem em casa, poderiam encontrá-los. O coração começou a bater descontroladamente e a respiração ficou entrecortada.

quarta-feira, 20 de março de 2013

O Guarda-livros - parte 1/4


As tardes favoritas de Carlos eram as de Domingo. O movimento era pouco e podia dedicar-se à sua actividade preferida sem ser incomodado.
Caminhou pelas ruas desertas do Porto. A população ouvia a emissão de rádio em suas casas. A hora era perfeita, mais cedo havia namorados no parque e mais tarde seria suspeito. Entrou pelo portão principal semi-oculto pelo chapéu de feltro e sobretudo de gola alta, todo vestido de preto. Queria poder passar por um agente do governo. Ensinaram-lhe que quando se tratava de actividades proibidas, nada podia ser deixado ao acaso.
Passeou pelo parque, procurando uma zona sossegada. Antes de se abaixar, olhou em volta, verificando que a costa estava livre. A adrenalina entrou-lhe no sangue e o batimento cardíaco aumentou. Retirou o pé de cabra de dentro do casaco e levantou uma laje. Com uma pequena pá, fez um buraco rectangular, colocando a terra num saquinho de ráfia. Retirou o livro já embalado em várias camadas de isolamento impermeável e meteu-o no buraco. Fez uma carícia de despedida ao livro, era a sua última cópia de “Os Maias” de Eça de Queiroz. Atirou algum solo para cima e recolocou a laje, fixando-a com um pequeno martelo. Devido ao par de anos de prática, todo o processo demorara menos de um minuto.
Ao levantar-se, distinguiu pelo canto do olho uma silhueta. Sem hesitar, afastou-se dali em passo apressado. A respiração e pulsação aceleraram ainda mais. Olhou por cima do ombro. Não viu ninguém. Despejou o saco de terra num canteiro e saiu pela outra entrada. Ao virar a esquina, viu que a figura ainda o seguia à distância.
Quando os soldados entraram na livraria ele fez a única coisa que a sobrevivência lhe aconselhou: sorrira e dissera-lhe para levarem tudo o que quisessem.
A esperança que a vida iria melhorar com fim da guerra Europeia morrera nesse momento. Todavia, tudo piorara quando um governo extremista de aspirações megalómanas se apoderara do pequeno estado. Com o antigo país dividido em três, já não havia lugar para os livros que relembrassem que um dia houvera Portugal.
Haviam chegado munidos de uma lista e disseram-lhe para se manter calmo, que tudo correria bem. Prometeram-lhe até que o estado lhe daria uma compensação pelos danos. Haviam levado quatro em cada cinco livros.
Continuara a caminhar ao acaso pelas ruas até perder o vulto de vista, só depois retomou a sua rota.
Assim que chegou a casa, retirou as ferramentas que lhe pesavam horrivelmente e guardou-as na despensa. Pendurou o chapéu e casaco na entrada do piso térreo do edifício de três andares. Sentou-se no sofá e ligou o rádio para ouvir o resto da emissão.
– Cidadãos de Porto e Galiza, os nossos inimigos Portugueses tentaram mais uma vez atravessar a linha do Mondego com uma ofensiva traiçoeira. Ameaçando as nossas famílias e os nossos campos. Contudo, a heróica divisão blindada do Sul conseguiu repelir o ataque...
Só havia uma voz que odiava mais do que a do ministro da defesa: a do ministro dos assuntos internos. Sabia ser tudo propaganda para incitar ao ódio.
Com o pé de cabra levantou algumas tábuas do velho soalho. Retirou a folha amarelecida do topo. Era uma lista encriptada de todos os locais onde havia enterrado livros. Sorriu de satisfação, sem este pedaço de papel, só virando a cidade do avesso é que conseguiriam encontrá-los a todos. Nem mesmo Carlos se conseguia recordar dos cento e dois lugares que já usara.
– ...Iremos atacá-los sem piedade e mostrar-lhes que cometeram um erro grave. Quem diz que deveríamos esquecer as divergências e procurar a paz não é mais do que um agente do inimigo, infiltrado entre nós para plantar a dúvida no povo. Cidadãos, todos o que se opuserem ao nosso nobre propósito devem enfrentar as consequências dessa traição...
Nunca prestava atenção às palavras do governante, apenas ligava o rádio para ter a certeza que o vizinho de cima o ouvia e de modo a abafar os ruídos da sua actividade ilícita.
Anotou com cuidado o local com uma mistura ininteligível de números e letras. Por um momento, observou os nove livros que ainda lhe restavam. Agarrou no “Felizmente há Luar!” e envolveu-o com cuidado na película impermeável. Fixou as tábuas de volta e sentou-se de volta no sofá.
– ...Merecem a morte. Não podemos tolerar tal falta de nacionalismo! A pena será capital! Cidadãos de Porto e Galiza...
Ouviu-se uma sirene. Carlos levantou-se num pulo e desligou o rádio. Uma segunda e uma terceira tocaram também, num tom impossível de ignorar. Um ataque aéreo à cidade estava eminente.

segunda-feira, 18 de março de 2013

Fantasy & Co: Antologias grátis em formato de ebook

7 pecados


Cada um dos pecados foi explorado por um dos autores residentes em contos curtos de ficção especulativa.


Lista de contos:
“Gula” por Carina Portugal
“A Cidade Perdida – Um Conto Acerca do Orgulho” por Liliana Novais
“Ira” por Pedro Pereira
“Luxúria” por Sara Farinha
“Preguiça” por Carlos Silva
“Desejos” por Vitor Frazão
“Tudo e Nada” por Pedro Cipriano

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7 virtudes


À semelhança dos sete pecados, cada uma das virtudes foi explorada por um dos autores.


Lista de contos:
“Corpo, Alma e Coração (caridade)” por Carina Portugal
“O que não cura – satisfaz (temperança)” por Ana Ferreira
“O paciente é o mais forte” por Pedro Pereira
“Diligência” por Carlos Silva
“O documento (humildade)” por Ana Ferreira
“O Protótipo (generosidade)” por Pedro Cipriano

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Halloween


Cada um dos autores residentes foi convidado a criar uma história relacionada com o Halloween.


Lista de contos:
“A menina que não gostava de doces” por Carina Portugal
“Morte Branca” por Liliana Novais
“Bruxaria” por Pedro Pereira
“A noite de todas as sombras” por Sara Farinha
“Chekhov’s gun” por Carlos Silva
“Se uma árvore cai na floresta” por Vitor Frazão

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Universos literários


Nesta antologia cada um dos autores foi convidado a mostrar um pouco dos seus universos literários no formato de conto.


Lista de contos:
“Imtharien – O Canto da Ninfa” por Carina Portugal
“Inbicta – Vamos Pintar os Franceses de Carmim” por Ana Ferreira
“Apocalipse – A Queda de Berlim” por Pedro Pereira
“Percepção – Túmulo 62” por Sara Farinha
“Urbania – A Destilação do Absurdo” por Carlos Silva
“Ahelanae – O Primeiro Voo” por Liliana Novais
“Era Dourada – A Alvorada” por Pedro Cipriano

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sábado, 16 de março de 2013

O lago


A superfície do lago mudou ligeiramente. Pequenas luzes, semelhantes a pirilampos, pareciam vir do fundo do lago. O efeito durou apenas um momento, de modo que Alice não teve sequer a certeza que realmente acontecera.
Sentada no banco à beira da lagoa, recordou-se do que Eunice lhe dissera numa tarde igualmente fria.
― Queres que te conte um segredo? ― sussurrou a amiga, embrulhando-se mais no casaco.
― Sim, conta.
― Sabias que o lago é mágico?
― Não acredito nisso! ― protestou Alice.
― Eu já suspeitava que dissesses isso. Eu sei que não é fácil acreditar numa coisa dessas, se eu não tivesse visto, também não acreditaria.
― Mas o que é que tu viste?
― Luzes, mas não eram luzes quaisquer. Eram lindas, apetecia-me ficar a vê-las durante horas a fio, mas só duraram um momento.
Olhara a amiga sem lhe responder. Ela estivera ainda mais estranha nos últimos dias e não achou por bem contrariá-la. As duas haviam encarado para aquela massa de água, mas esta permanecia igual ao que fora durante as longas tardes em que haviam conversado naquele banco de madeira.
Alice voltou a fixar o lago, esperando que o efeito se repetisse. Esperou em vão e acabou por se fartar. Para afastar os pensamentos negativos, tentou apreciar a maravilhosa vista.
― Querida, o jantar está pronto ― ouviu o seu marido chamar.
Olhou para a entrada da casa e assentiu com a cabeça. Ao caminhar de volta, uma rabanada de vento obrigou-a a enrolar-se ainda mais no seu casaco de lã escolhido ao acaso quando saíra de casa. Em passo lento, percorreu o caminho que separava o miradouro das traseiras.
Sentia-se diferente, uma estranha alegria havia-se apoderado dela. Sem hesitar, atirou-se aos braços de Igor e beijou-o como quando tinha dezasseis anos. Ele ficou surpreendido.
― Pareces estar melhor ― elogiou-a com um sorriso ― Vem, fiz o teu prato favorito.
A grande janela da sala de jantar estava virada para o banco onde Alice se costumava sentar. Os tons avermelhados do pôr-do-sol que se reflectiam na ampla divisão transmitiram-lhe uma sensação de aconchego.
Sentaram-se na pequena mesa ao centro, de frente um para o outro. Apesar de a refeição ter ocorrido em silêncio, achou que fora o melhor que comera nos últimos meses.
― Eu hoje estou muito feliz ― anunciou, olhando o marido. ― E a comida estava maravilhosa!
― Isso são muito boas notícias, espero que melhores rapidamente.
― Eu sinto-me melhor. Sabes, às vezes sinto-me sozinha, tenho saudades de Eunice.
― Oh querida, não penses nela agora...
― Desculpa, não consigo evitar. Nós costumávamos sentar-nos e falar durante horas a fio ― relembrou Alice, à beira de um ataque de choro.
― Oh docinho, acalma-te! ― implorou Igor, abraçando-a com força.
O abraço trouxe-lhe uma sensação de aconchego. Desejou que ele a abraçasse mais vezes, como fazia há dez anos atrás.
― Não achas que o lago é muito bonito? ― perguntou-lhe com um ar sonhador.
― Claro que é muito bonito, por isso é que estamos aqui ― devolveu-lhe ele com um tom de voz ligeiramente enfadado.
Alice não acrescentou mais nada, percebera que não podia partilhar o segredo de Eunice com ele. A barreira de comunicação estragou-lhe a felicidade daquele fim-de-tarde.
― Não te esqueças dos comprimidos! ― relembrou-lhe Igor, assim que ela se levantou da mesa.
Ela deu-lhe um olhar arreliado, detestava que ele estivesse sempre a relembrá-la dos malditos medicamentos. Contrariada, aproximou-se das caixas e escolheu a dose da noite. Observou as cinco cápsulas coloridas na palma da mão. Sem pensar, atirou o de dormir para o lixo. As noites sem sonhos eram a pior parte do tratamento. Engoliu os restantes e foi-se sentar no sofá, aguardando por Igor. Ele demorou um bocado, pois estava na cozinha a lavar a loiça.
Quando olhou para o lago, voltou a vê-lo. Apesar de o sol já se ter posto, as estranhas luzes estavam reflectidas na superfície. Eram tão grandes e brilhantes que pareciam vir do próprio lago. Pareciam dançar umas com as outras num padrão tão harmonioso como desconhecido. Alice achou que era a visão mais bela que alguma vez tivera. Não tinha dúvidas de que Eunice estivera certa o tempo todo.
― Alice ― ouviu alguém chamá-la.
― Igor, chamaste-me? ― perguntou, olhando em volta, confusa.
― Não, o que é que se passou? ― ouviu responder, a partir da cozinha.
― Nada. Não se passou nada, não te preocupes!
Voltou a olhar para o lago, mas as luzes haviam desaparecido. Quando ele voltou, foram directamente para o quarto. Mudou-se para a sua camisa de dormir branca e enfiou-se no meio dos lençóis quentes. Pouco depois, ele juntou-se a ela. Falaram um pouco sobre o dia, pois o doutor havia-lhes recomendado que o fizessem com frequência. Geralmente funcionava, já que se sentia melhor. Naquela noite, pareceu ter o efeito contrário. Ardia por contar a Igor sobre o lago, como não o podia fazer, toda a conversa se tornava mais um fardo do que um alívio.
Em breve, ele dormia e Alice ficou satisfeita com a opção de não tomar o sedativo. Pensou que poderia dormir mais tarde, afinal já não trabalhava naquela maldita companhia. Ela só queria poder voltar a sonhar.
Olhou para o tecto branco durante muito tempo. Talvez fossem segundos ou talvez horas. Levantou-se da cama e Igor acordou.
― O que se passa querida?
― Nada, estou só com sede. Vou beber um copo de água.
Ele pareceu ficar satisfeito com a resposta, pois virou-se para o outro lado e voltou aos seus prazeres nocturnos. Alice tinha inveja desses pequenos pedaços de felicidade. Nunca tinha pensado muito nos sonhos até os perder.
Parou à entrada da sala. Nada a podia ter preparado para o que viu. As luzes do lago estavam brilhantes como nunca tinham estado. A luz era tão forte que até se projectava nas paredes.
― Alice, vem ter comigo ― ouviu mais uma vez.
Um estremecer de excitação percorreu-lhe a coluna. Sem pensar, abandonou a casa no seu vestido de dormir. Uma vez no exterior, correu até ao banco.
Apesar da temperatura ter descido, sentiu-se invadida por uma sensação de calor. Não conseguia despregar os olhos dos brilhos do outro mundo. O líquido frio lembrou-lhe que estava descalça, mas não se importou.
Sem hesitar, dirigiu-se ao cais de madeira, só para poder estar mais perto daquelas luzes.
― Esperei por ti desde o momento em que nasceste ― sussurrou-lhe a mesma voz.
Os pirilampos aquáticos continuaram a mexer-se. Pareciam estar tão perto e ao mesmo tempo tão longe. Naquele momento desejou agarrar um deles na mão. Uma força de atracção irresistível fez com que entrasse no barco. Remou em direcção ao centro. O movimento exigia-lhe um grande esforço. Percorridos uma dezena de metros, já lhe doíam os braços e os dedos mal podiam agarrar os remos. Mesmo assim, ela continuou.
Finalmente ficou rodeada pelas luzes. Num impulso, tocou na água e elas desapareceram.
― Alice, vem ter comigo ― insistiu a voz.
O lago ficou novamente brilhante. A intensidade era tanta que nem em sonhos vira algo assim. As reflexões deixaram-a com uma tontura ligeira. Era o momento certo, percebeu, largando o remo, que rebolou até cair borda fora.
― Sim, Alice, é o momento certo. Será o melhor momento da tua vida, eu prometo.
Alice levantou-se num equilíbrio precário. Nem a lua conseguia ter metade do brilho dos reflexos. Atirou-se para o lago. A água fria rodeou-a por completo. Ela não sabia nadar e nem o queria fazer.
As luzes estavam ainda mais brilhantes e a sua beleza avassaladora. Moviam-se em estranhos padrões nunca antes vistos. Valia a pena ter nascido só para ver aquilo, percebeu Alice.
E, como Eunice, afogou-se.