Quando acordou, demorou um par de segundos a entender o que se passava. As imagens da cidade em chamas voltaram a sua memória, despertando-o à mesma velocidade que um corrente de ar frio o faria. Ainda estava calçado e vestido como na noite anterior e só um cobertor velho o resguardava. Levantou-se do sofá que lhe fora cedido pela família e olhou através da janela.
Amanhecera sem nuvens. Ao consultar o relógio, viu que já passavam muito da hora de abertura da loja. Só deu dois passos antes de perceber que com a cidade assim, não valia a pena abrir o negócio de todo. Isto era, se é que o edifício ainda estava de pé.
Depois lembrou-se dos livros. Assim que removessem os destroços, era provável que os encontrassem. Um calafrio subiu-lhe pela espinha ao recordar a pena que o esperava se fosse apanhado.
Um cheiro a ovos fritos atraiu-o à cozinha, lembrando-o que nas última coisa que comera fora uma amostra de peixe. A família tomava o pequeno-almoço e havia um lugar vazio.
– Sente-se aqui connosco, deve estar com fome – ofereceu o chefe de família, levantando-se.
– Eu não queria incomodar... – desculpou-se, olhando para a ponta dos sapatos.
– Ora essa, não incomoda nada. Tenho a certeza que se estivesse no nosso lugar faria o mesmo.
Acenou com a cabeça e sentou-se. Era uma família numerosa e, se calhar, passava dificuldades financeiras e mesmo assim partilhavam o pouco que tinham com ele. Comoveu-o essa generosidade e ficou com um nó na garganta, mal conseguindo engolir a dentada que dera no pão do dia anterior.
Ao sair para a rua ainda tinha fome, mas não conseguira aceder aos pedidos da família para comer mais. A visão diurna da rua revelava-lhe detalhes mais dramáticos que a da noite anterior. Havia entulho um pouco por todo o lado e a destruição era quase total. Todavia, o que mais o impressionou foi as faces de desespero de quem perdera tudo. Não conseguiu deixar de se sentir triste ao perceber que não eram somente perdas materiais.
A sua casa passara a quatro meias paredes e um monte de entulho. As outras duas famílias procuravam recuperar alguns haveres no meio da pilha de detritos. Pelas expressões dos seus vizinhos, não deveria haver muito que se pudesse recuperar. Nem acho que valesse a pena tentar a sua sorte, por isso sentou-se num dos blocos que fora projectado para o passeio.
A questão da noite anterior voltou-lhe a atormentar o espírito. Perguntou-se porque é que se dedicava a salvar livros enquanto as pessoas morriam à sua volta. Não quis ficar parado a cismar, por isso levantou-se a caminhou ao acaso.
A guerra contra o Sul fora declarada no Inverno de há dois anos atrás. O Porto acusava Lisboa de ter começado e, pelo que sabia, os inimigos tinham a opinião contrária. Fora a única altura da vida em que ficara contente por estar em envelhecer. Como ultrapassara a idade da recruta, não foi chamado a defender as fronteiras. Durante meses a guerra desenrolara-se com alguns incidentes que incendiavam as tensões, mas que mantinham o conflito num cauteloso impasse. Se acreditasse nas notícias, ofensiva recente do Sul quebrara esse precário equilíbrio.
– … Não iremos tolerar o ataque traiçoeiro que sofremos esta noite – ouviu da rua, a partir de uma das casas.
Aproximou-se para tentar ouvir o discurso. Pela primeira vez queria absorver cada palavra, na esperança que os governantes lhe dessem a protecção de que tanto carecia.
– Cidadãos, as perdas materiais e humanas foram avultadas. O nosso estado está de luto por tal afronta, mas, não temais! Por cada bomba que eles largaram, iremos largar dez. Por cada bala disparada, iremos disparar cem. Por cada casa, destruiremos uma rua. Por cada familiar pedido destroçaremos uma família. O inimigo trouxe a guerra às nossas portas, cabe-nos a nós mandá-la de volta para as suas cidades. Cada soldado, cada operário, cada agricultor, cada cidadão é importante! Unidos iremos fazer a vingança cair-lhes em cima e esmagá-los com a nossa justiça...
O discurso ficou-lhe gravado na memória como uma queimadura na pele. Quase hipnotizado pela doutrina totalitarista, nem reparou que os passos o levavam ao seu local de trabalho.
A livraria já não existia. Os remorsos falaram mais alto, indicando-lhe que era a punição pela sua revolta. Nem se preocupou em procurar os livros entre o entulho. Aliás, já não queria ouvir mais falar em literatura, quer fosse proibida ou autorizada. Estava farto de viver num mundo de ficção, enquanto a realidade lhe escapava a cada momento.
Entusiasmado não sabia bem com o quê, voltou à sua rua. Num autêntico acto de contrição, dedicou-se a ajudar os vizinhos a remover os destroços. Aquela tarefa árdua trouxe-lhe uma espécie de alivio que há muito tempo não sentia, como se o peso do mundo lhe tivesse saído dos ombros.
Nessa noite partilharam um jantar de enlatados que havia sido providenciado pelas autoridades. Fora uma refeição frívola mas suficiente. A promessa de reconstrução dada pelo líder da freguesia trouxera novo alento àquelas almas desesperadas. Nessas escassas horas, Carlos foi feliz, ao redescobrir a simplicidade e generosidade humana.
A felicidade estendeu-se durante o resto da semana, enquanto ajudava na limpeza e reconstrução. Ao ver um cartaz de recrutamento para uma fábrica de armamento, achou que o acaso lhe tinha indicado o caminho a seguir. Acreditou que o seu futuro durante a guerra estava decidido.
Contudo, o aparecimento de dois homens com fatos fora de moda e óculos com pelo menos vinte anos de idade indicaram-lhe que estava errado. Aceitou a pena com resignação e foi recompensado por não a ter de a suportar por mais de um mês.
FIM