sexta-feira, 27 de julho de 2012

O monstro e a musa - parte 6/12

A primeira parte deste conto pode ser encontrada em: http://pedro-cipriano.blogspot.de/2012/07/o-monstro-e-musa-primeira-parte.html

A quinta parte está em:http://pedro-cipriano.blogspot.de/2012/07/o-monstro-e-musa-quinta-parte.html

 

A musa


Nós somos como arrendatários de uma quinta que cortam a cerca para lenha quando deveríamos usar as fontes infinitas da natureza – o sol, o vento e as marés.
Thomas Edison


Walter acordou quando os primeiros raios de sol entraram pela janela. Um sorriso aflorou-lhe nos lábios quando sentiu a mão de Eva sobre o seu peito. O sorriso cresceu ao relembrar a noite fantástica que havia tido com a criada.
Com cuidado, afastou o braço dela e levantou-se. Ao afastar os lençóis, não pôde evitar apreciar a forma esbelta da jovem. Sentindo crescer dentro de si um desejo intenso, resistiu à tentação de a acordar, pois não queria chegar atrasado. Pé ante pé, aproximou-se do guarda-fatos e retirou um dos uniformes de inventor que lhe fora dado. Assim que vestiu as calças, apercebeu-se que ela despertara.
– Bom dia – cumprimentou, olhando-a com um sorriso.
Havia algo nela que o empolgava. Pensara no assunto várias vezes e chegara à conclusão que só podia ser alguma coisa relacionada com a personalidade. Desde o primeiro dia, em que a rapariga fora encarregada de lhe trazer as refeições, que sentira uma atracção irresistível. Ela tinha apenas dezassete anos contudo, a nível psicológico, parecia muito mais madura. Os sentimentos pareciam ser mútuos, de modo que a relação evoluiu rapidamente para um nível mais sério. Uma ou duas vezes por semana, passavam a noite juntos.
Eva ergueu-se, expondo sensualmente os seus seios, numa atitude de clara provocação. Respondeu-lhe à saudação, enquanto passava a mão pela pele morena do seu tronco. Walter não sabia qual a razão para ela assumir um comportamento tão atrevido, todavia, ele adorava.
– Tenho que sair rapidamente. Preciso de inspeccionar os trabalhos antes de falar ao concílio – explicou o inventor, apertando os botões da camisa.
– É pena – comentou a criada, assumindo uma pose erótica e passando a mão pelos seios – Caso contrário, poderíamos brincar mais um pouco.
– Desculpa, eu gostava muito, mas tenho mesmo de ir. O que é que fazes logo à noite? – convidou, vestindo o casaco.
– Não sei... – murmurou Eva, fingindo hesitar – Depende do que tu quiseres.
Walter sentiu o corpo reagir involuntariamente quando ela passou o dedo pelos lábios.
– Sabes bem o que eu quero. Agora tenho mesmo de ir. Até logo – despediu-se, abrindo a porta.
– Espera! – ordenou-lhe, saindo da cama inesperadamente.
O beijo foi breve, todavia suficiente para lhe deixar um sabor adocicado na boca, uma sensação que normalmente o acompanhava durante uma grande parte do dia.
Quando se separaram, ele fechou cuidadosamente a porta e entrou na porta seguinte, a poucos passos. Ainda estava instalado no mesmo quarto onde o haviam colocado no primeiro dia. Como não havia uma academia de ciências no castro, um salão adjacente havia sido convertido num laboratório, onde Walter poderia testar os protótipos antes de os aplicar na realidade.
À excepção de uma fina camada de pó, as mesas estavam quase vazias, já que os experimentos falhados empilhavam-se nas prateleiras e os que haviam sido bem-sucedidos estavam instalados no terreno. Walter enfiou o molho de folhas amarelas na sua pasta de couro e, com ela debaixo do braço, saiu e voltou a trancar a porta. Abandonou o palácio pela escada de serviço, vendo-se em poucos segundos rodeado pelo movimento intenso daquela hora matinal.
Durante os últimos seis meses, pudera seguir uma rotina, como sempre fizera e tanto gostava. Esta só havia sido perturbada duas vezes: a primeira acontecera quando os seus companheiros de expedição tentaram fugir, a segunda fora quando teve de apresentar os resultados obtidos ao fim dos três primeiros meses.
A execução dos que o acompanhavam ainda lhe causava arrepios pela violência e crueldade com que fora posta em prática. Não tivera outra escolha que não fosse assistir ao cumprimento da pena. Tivera de apelar a todo o seu auto-controlo para não reagir, enquanto os seus conterrâneos eram espancados até à morte. Isso quebrara a ligação à sua vida anterior e ele tinha quase a certeza que fora orquestrado por Artur. Porém, sem provas, o melhor era manter-se em silêncio.
Apesar do nervosismo, os seus resultados haviam sido bem recebidos há três meses atrás. Pouco mais tinha do que alguns projectos e um par de protótipos funcionais. O forte dos assessores não era a ciência e, com alguma complacência de Artur, conseguira ser bem recebido. Todavia, eles haviam exigido uma aplicação prática ao fim de meio ano. Para tal, disponibilizaram-lhe uma equipa de trabalhadores e técnicos, dando-lhe igualmente liberdade total em termos de materiais a usar e de onde iria aplicar as suas criações. Prometeram-lhe também que lhe dariam a liberdade assim que fosse bem sucedido. Dentro de duas horas teria de apresentar os seus resultados e, depois de tão grande investimento, não esperava que lhe facilitassem a vida.

A sétima parte pode ser encontrada em: http://pedro-cipriano.blogspot.de/2012/07/o-monstro-e-musa-setima-parte.html

quinta-feira, 26 de julho de 2012

O monstro e a musa - parte 5/12

A primeira parte deste conto pode ser encontrada em: http://pedro-cipriano.blogspot.de/2012/07/o-monstro-e-musa-primeira-parte.html

A quarta parte está em: http://pedro-cipriano.blogspot.de/2012/07/o-monstro-e-musa-quarta-parte.html


– Precisamente! O carvão também é um recurso finito. Ainda há poucos minutos nos relembrou as consequências de uma guerra motivada por escassez energética. Quando o carvão não for suficiente para todos, haverão outras guerras – concluiu o líder, com um gesto de triunfo.
– Isso é alarmismo! Se bem me lembro, um dos génios e visionários da era nuclear disse que não sabia como seria a terceira guerra mundial, mas que a quarta seria com paus e pedras. Se compararmos o potencial bélico dessas nações beligerantes durante o grande cataclismo e o que possuímos agora, provavelmente eles nos chamar-nos-iam de primitivos – interveio Aristides, colocando um braço em frente de Artur como que impedindo-o simbolicamente de avançar.
– Meu caro Aristides, eu nunca esperei que levasses esta ameaça a sério – revelou, fazendo-lhe um sinal para que baixasse o braço.
De seguida, virou-se para os restantes.
– Não nos iludamos ao pensar que, por via das restrições tecnológicas, uma guerra à escala mundial não será tão terrível como a anterior. Pelo contrário, será mais longa e matará mais pessoas. Temo que qualquer nação que enfrente a obliteração possa cair na tentação de desenvolver e usar tecnologia proibida. Se isso acontecer, a ameaça de extinção pairará mais uma vez sobre a nossa espécie.
Walter não precisava de mais explicações, compreendera finalmente a razão para o seu sequestro. Artur sabia muito bem o que fazia, pois só um inventor com a sua especialidade e bastante capacidade poderia resolver o problema.
– Exijo saber se este homem pode ou não resolver o problema! Já estamos a prolongar esta conversa há demasiado tempo – protestou Xavier, visivelmente impaciente.
– Xavier, espera um momento, já iremos abordar esse assunto. Caro doutor Ramos, peço desculpa pela interrupção. Consegue estimar quantos habitantes tem o castro?
– Estimei que haverá cerca de vinte a trinta mil.
– É uma boa estimativa. Se juntarmos os que vivem no vale e as vilas satélite, são cento e dez mil habitantes, segundo o último censo. Consegue estimar quanto carvão é necessário por ano para manter este nível tecnológico?
Walter fez o cálculo de cabeça, ficando mais consciente do problema.
– Um quarto de milhão de toneladas por ano. Quantas minas activas possuem?
– É uma estimativa admirável, pois está muito perto dos valores oficiais. Em todo o território, há apenas uma mina – confessou Artur com um sorriso amargo. – A capacidade foi avaliada e o carvão nesse jazigo situa-se entre um milhão e um milhão e meio de toneladas. Ou seja, há energia para mais quatro a seis anos. A questão que está na sua cabeça é muito facilmente respondida, foram feitos grandes esforços para encontrar outras minas e todas praticamente infrutíferas. O carvão encontrado nos últimos dez anos não dá sequer para suprir as necessidades energéticas desta cidade durante meio ano. Aristides, conta-lhe o que ficou decidido no último concílio estratégico-militar do castro.
– Não considero apropriado contar a um estranho as nossas resoluções internas, quando nem sequer o fazemos ao comum dos cidadãos – objectou outro dos assessores, um homem baixo e redondo.
– Fábio, ele precisa de saber para melhor desempenhar o seu trabalho. Aristides, por favor, explica ao senhor Ramos quais as consequências da escassez energética.
– Entraremos em guerra, tentando expandir o território para Norte, de modo a obter as minas de carvão aí existentes.
– Porquê? – questionou Artur de um modo retórico.
– Porque caso não o façamos, estimamos que metade da população diminua pelo menos um terço, nos dez anos seguintes ao fim do carvão.
– E quais são as reservas existentes a Norte? – insistiu o líder do castro.
– Estimamos algo entre sete a oito milhões de toneladas.
– Como vê, caro doutor Ramos, a guerra seria apenas uma solução temporária. É necessário aceder e controlar outras formas de energia. Agora percebe porque está aqui? Pode explicar a estes senhores qual é a sua especialidade?
O inventor olhou os adjuntos com confiança no olhar. Passou a mão pelo cabelo para afastar o nervosismo, como costumava fazer antes de qualquer apresentação importante na Academia Imperial de Ciências.
– Eu estudo a electricidade e o seu potencial para substituir o carvão como fonte de energia.
Nesse momento, Walter ficou estupefacto com a sua própria reacção; a escolha de palavras e gestos de Artur tinham sido impressionantes. O líder do castro encontrara a alavanca certa.

A sexta parte pode ser encontrada em: http://pedro-cipriano.blogspot.de/2012/07/o-monstro-e-musa-sexta-parte.html

quarta-feira, 25 de julho de 2012

O monstro e a musa - parte 4/12

A primeira parte pode ser encontrada em: http://pedro-cipriano.blogspot.de/2012/07/o-monstro-e-musa-primeira-parte.html

A terceira parte está disponível em: http://pedro-cipriano.blogspot.de/2012/07/o-monstro-e-musa-terceira-parte.html

– O que o leva a crer que eu irei trabalhar para si? – hesitou Walter, mantendo a sua posição.
– Já tivemos a conversa das alavancas uma vez, não julgo que seja necessário repeti-la. Acho que o próprio problema poderá ser um estímulo importante. Agora siga-me, tenho a certeza que a curiosidade o está a afectar mais do que queria.
Saíram do palácio e enveredaram pela rua principal. Apesar de ser hora de ponta, a multidão abria alas para os deixar passar. O inventor viu que a cidade possuía várias fontes com água corrente, apesar se encontrar num ponto alto. Ao observar o pavimento, descobriu pequenas fissuras nas extremidades da via, o que provavelmente corresponderia a esgotos.
A conversa enigmática despertara-lhe um grande interesse. Questionava-se sobre o que é que uma cidade-estado tão avançada poderia ainda precisar. Por mais que se esforçasse, só lhe ocorria matérias de índole bélica.
Apenas meia dúzia de soldados acompanhava a comitiva. Walter perscrutava cada face e cada beco, na esperança de poder escapar à sua clausura.
– Caro Walter, se me permite que o trate assim, não acho que uma tentativa de fuga seja uma coisa sensata de se fazer. Para além de ser pouco provável que tenha sucesso, os outros prisioneiros sofrerão as represálias. Pense neste passeio como um presente – sugeriu-lhe Artur, entrecruzando os dedos numa atitude de auto-confiança.
O inventor parou e olhou-o, surpreendido. Parecia-lhe impossível aquele homem estar sempre um passo à sua frente. Apercebeu-se, tarde demais, que se o líder tinha uma suspeita, o seu comportamento confirmara-a. Só lhe restava continuar a andar e ver o que ele tinha para lhe mostrar.
Pararam de frente para uma fornalha, cujo vapor fazia movimentar uma das linhas de teleférico. A construção tinha o tamanho de uma pequena moradia. Um homem colocava regularmente carvão no forno.
– Está a ver esta fornalha? Tenho a certeza que este tipo de equipamento lhe é familiar. Pode explicar-nos como é que funciona?
Walter olhou-o zangado. Não lhe tinha mostrado nada de extraordinário e ainda queria que ele embarcasse noutro dos seus esquemas mentais.
– Porque raio é que você não vai directo ao assunto? – protestou, agitando violentamente os braços.
– Tenha calma, esse temperamento faz mal à saúde. Acho que não vai contra a sua consciência explicar o funcionamento da máquina a vapor, assim os meus assessores ficam todos com o mesmo nível de conhecimento – apaziguou-o Artur, soltando uma gargalhada ligeira.
O inventor não pode evitar rir-se também, face ao insulto que ele dera aos seus adjuntos. De algum modo, aquele homem extraía de si as emoções, como um músico fazia com um instrumento.
– A fornalha aquece a água, que é transformada em vapor. Usando a pressão daí resultante, faz-se movimentar o pistão e assim se gera um movimento circular que pode ser usado para inúmeros fins...
– Exacto, eu não explicaria melhor. Agora, peço-lhe que deixe parte da aplicação prática e que nos diga quais são os requerimentos da máquina.
– É necessária uma metalurgia suficientemente avançada para fundir as partes necessárias, água em estado líquido e carvão.
– Meu caro, julgo que observou um pouco do nosso modesto castro. Diga, qual acha ser a maior limitação que enfrentamos no uso de tal maquinaria?
– Vocês parecem possuir a técnica necessária para fundir o aço e água corrente em abundância – Walter parou e olhou Artur nos olhos.
Finalmente percebera o problema que afligia aquela comunidade.
– Falta-vos o carvão.

A continuação deste conto pode ser encontrada, ou seja, a quinta parte, pode se encontrada em http://pedro-cipriano.blogspot.de/2012/07/o-monstro-e-musa-quinta-parte.html

terça-feira, 24 de julho de 2012

O monstro e a musa - parte 3/12

A primeira parte pode ser encontrada em: http://pedro-cipriano.blogspot.de/2012/07/o-monstro-e-musa-primeira-parte.html

A segunda parte está disponível em: http://pedro-cipriano.blogspot.de/2012/07/o-monstro-e-musa-segunda-parte.html

– Eu exijo saber se este tal inventor pode resolver o nosso problema. Relembro que a sua captura foi custosa em material e homens e que ainda pode acalentar outras consequências mais graves – protestou um homem magricela à direita.
– Silêncio Xavier, observa primeiro, fala depois – comandou Artur, dispensando o ministro com um gesto. – Caro doutor Ramos, presumo que deve estar familiarizado com o que desencadeou o fim da era nuclear. Gostava que nos falasse um pouco sobre isso.
– Se é de história que quer ouvir falar, pois bem, enganou-se na especialidade. Deveria ter raptado um historiador, não um inventor – ironizou Walter, lançado um sorriso trocista a Artur.
– Como é que ele se atreve a falar assim contigo? Eu exijo que o castigues imediatamente! – exaltou-se um homem oponente de cabelo grisalho, também ele sentado à esquerda de Artur.
– Tem calma Aristides, precisamos dele vivo e inteiro – pediu Artur, repetindo o gesto que fizera para o outro ministro. – O senhor Ramos tem uma língua muito pouco domesticada, especialmente tendo em conta a sua situação precária. Agradecia que evitasse comentários jocosos enquanto estiver reunido com o concílio que rege este castro. Não se esqueça que temos os restantes membros da sua expedição como reféns.
– Não sei porque é que me está a perguntar isso. Só sei que a era nuclear terminou com o grande cataclismo.
– Já irá saber os meus motivos mas, primeiro, gostaria que nos falasse das razões desse cataclismo.
– O petróleo era um recurso finito e, quando começou a escassear, várias nações entraram em guerra pela posse das últimas reservas. O conflito escalou, transformando-se numa guerra mundial. Os conflitos mundiais duraram oito anos, em que vários milhões de pessoas pereceram. Não foram usadas armas nucleares, pois todos sabiam que isso poderia causar a extinção da espécie humana. Todavia, a aliança euro-asiática foi colocada numa posição delicada nos últimos estádios do conflito e decidiu usar o seu arsenal nuclear – relatou Walter.
De seguida, levantando-se abriu os braços com as palmas da mão viradas para o chão
– A morte desceu dos céus e o mundo antigo desapareceu, para sempre – citando a frase que era ensinada a todas as crianças
– Óptimo, eu não teria feito melhor. Deixe-me dizer-lhe que tem excelentes dotes de orador. Agora, se não se importar, podia falar-nos um pouco do que aconteceu depois do grande cataclismo?
– A maioria da população mundial morreu nesse dia. Nações inteiras foram apagadas do mapa. Os diversos líderes sobreviventes reuniram-se e decidiram destruir toda a tecnologia da era nuclear, de modo a evitar que algo semelhante pudesse voltar a acontecer.
– O Homem não deve possuir nem criar meios para se auto-destruir – citou Artur, afastando algo imaginário com a mão esquerda.
– Vejo que está bastante informado sobre o assunto...
– Poupe-nos o comentário. Já que insiste, vou directo ao assunto. Eu pretendo que recrie uma tecnologia da era nuclear.
Walter levantou-se impetuosamente e aproximou-se de Artur. Por um momento, perdera todo o medo, pois sentia que estava a servir um propósito maior.
– Bem, acho que me pode matar já. Não há nada que me convença a desenvolver tecnologia proibida e tenho a certeza que todos os outros sobreviventes são da mesma opinião. Mais facilmente abdicaremos das nossas vidas do que participaremos em tal loucura – gritou, apontando o dedo a Artur.
– Peço que se acalme – ordenou o líder, pedido, com um gesto, aos outros membros do concílio que fizessem o mesmo. – Diga-me, quais são as sete tecnologias proibidas. Sabe-as de cor?
– Claro que sei, é a primeira coisa que nos ensinam quando entramos na Academia Imperial das Ciências – constatou Walter, admirado com a aparente calma de Artur.
– Diga-as, em voz alta.
– É proibido manipular núcleos atómicos, assim como realizar fissuração e fusão nuclear. É proibido desenvolver propulsão a jacto ou qualquer outro projéctil ou veículo, tripulado ou não, que exceda a velocidade do som. É proibido construir máquinas que efectuem cálculos complexos mais rápido que a mente humana. É proibido acelerar e colidir qualquer partícula atómica e sub-atómica. É proibida a criação de compostos químicos que sejam altamente inflamáveis, corrosivos, explosivos ou tóxicos, sendo a única excepção a pólvora preta. É proibido manipular cadeias de DNA e a criação e manutenção de organismos altamente infecciosos ou letais para a espécie humana e ecossistemas em geral. São proibidas experiências psicológicas com o objectivo de ler ou manipular a mente humana. Qualquer pessoa, independentemente do estatuto, que viole ou tente alguma destas regras receberá a pena capital e todos os registos do seu trabalho devem ser imediatamente destruídos. Estas são as regras para evitar que a espécie humana se auto-destrua.
– Excelente dicção e não lhe encontrei nenhuma falha – congratulou Artur, batendo palmas.
– Contudo, julgaste-me mal, eu sei perfeitamente os limites. Somente sou bárbaro na vossa designação e não tenho ilusões megalómanas de poder. O que eu pretendo não irá violar nenhuma dessas regras.
– O que é que você pretende, então? – inquiriu Walter, confuso com mais uma reviravolta.
A face de Artur abriu-se num sorriso, enquanto se levantava e fazia sinal ao concílio para o imitar.
– Eu vou deixar que você próprio descubra. Isto é, vou-lhe mostrar o problema e você irá sugerir uma solução – anunciou o líder, apontando para a saída.

A quarta parte desta história está disponível em: http://pedro-cipriano.blogspot.de/2012/07/o-monstro-e-musa-quarta-parte.html

segunda-feira, 23 de julho de 2012

O monstro e a musa - parte 2/12

A primeira parte pode ser encontrada em: http://pedro-cipriano.blogspot.de/2012/07/o-monstro-e-musa-primeira-parte.html

Walter foi separado dos restantes prisioneiros e forçado a caminhar até ao pôr-do-sol. Dormiu ao relento e, na manhã seguinte, prosseguiram viagem depois de lhe terem dado uma magra refeição. A marcha forçada por caminhos agrestes e inclinados estava a consumir-lhe as forças. Os bois e cavalos tinham ainda mais dificuldades, pois viam-se obrigados a carregar as pesadas peças de artilharia que haviam sido capturadas.
Pelos seus cálculos, estavam a penetrar cada vez mais nos territórios selvagens. Aquela faixa montanhosa ibérica separava a Pan-Germânia da Confederação, outrora chamada de Trás-os-Montes. Nunca conseguira compreender o porquê da Confederação insistir em manter aquele enclave na península ibérica quando tinha uma boa porção da América do Sul e ricos territórios em África. Os historiadores falavam de um passado comum que acontecera há quase um milénio atrás. Para além disso, até aqueles rebeldes falavam uma língua derivada do antigo português.
O dia teria ocorrido sem incidentes, se não fosse dois dos prisioneiros terem tentado a fuga. Foram prontamente apanhados e executados sumariamente, como exemplo para os restantes. Ainda o sangue dos dois homens não tinha coagulado, já a marcha continuava.
Andaram o resto do dia e metade do seguinte, terminando a sua jornada numa cidadela, a qual se situava no topo de um planalto. Os portões abriram-se à sua chegada e os guerreiros foram recebidos com aclamações da pequena multidão.
Walter ficou maravilhado enquanto o conduziam através da cidade, a qual não era em nada primitiva. As ruas eram paralelas, estavam impecavelmente pavimentadas e encontravam-se a abarrotar com máquinas a vapor. Os edifícios eram construídos em rocha trabalhada e estavam em bom estado de conservação. Inúmeros teleféricos transportavam tanto pessoas como carga. Era admirável como uma cidade tão sofisticada poderia existir àquela altitude e aparentemente isolada de tudo o resto.
Foi levado para uma construção imponente, que deduziu ser o palácio do governador. Obrigaram-no a subir por uma estreita escada de serviço. Sem qualquer explicação, fecharam-no à chave num quarto dos andares superiores. A divisão era espaçosa e bastante melhor do que esperava. Continha uma cama, uma escrivaninha, uma cadeira, uma estante vazia e um guarda-fatos.
Sentou-se na cama e, sem dar conta, deixou-se estender nela. Adormeceu por via do cansaço, pouco depois.
Acordaram-no inesperadamente, várias horas depois, quando lhe trouxeram comida. O prato continha um pedaço de pão, um bife e alguns vegetais cozidos a vapor. Estava esfomeado, de modo que não levantou objecções quanto à qualidade do prato. Para sua surpresa, fora muito bem confeccionado. Enquanto comia, pôde admirar o pôr-do-sol, já que a varanda estava virada para Oeste. Quando terminou a refeição, levantou-se a custo, pois os músculos estavam extremamente doridos.
Estava no terceiro andar do suposto palácio e o balcão proporcionava-lhe uma vista privilegiada da cidadela. A cidade possuía uma torre de relógio no centro, em frente do que Walter supôs ser a praça principal. As colunas de fumo vindas das extremidades dos teleféricos a vapor mostravam-lhe qual era a fonte de energia de toda a cidade. Avaliou o movimento e deduziu que viveriam ali entre duas a três dezenas de milhares de almas. As muralhas eram espessas e as torres de vigia estavam guarnecidas com diversas peças de artilharia, tanto contra balões como contra outra artilharia.
Voltou para dentro, sentando-se na cama, desanimado. Era pouco provável que a Confederação luso-brasileira arriscasse atacar aquela cidade para o resgatar. O que acontecera nos últimos dias abalara profundamente as suas convicções. Não era só o cativeiro, chocava-o mais saber que os povos bárbaros eram tão civilizados como o resto da Confederação. Foi quase em completo desespero que adormeceu.
Na manhã seguinte foi acordado, pois iria ter uma audição com o governador. Fizeram-no trocar as suas roupas esfarrapadas por um uniforme novo. Deram-lhe um pedaço de pão e um copo de água. Foi então conduzido pelos corredores até ao piso térreo. Pela primeira vez, reparou que o interior do edifício também fora construído em pedra e trabalhado com inúmeros ornamentos. Os tectos continham numerosos frescos. O que mais o desconcertava era que aquelas construções pertenciam à era pós-nuclear.
O salão principal era extremamente espaçoso e a sua abóbada tinha várias centenas de metros quadrados, fazendo lembrar uma antiga catedral. Esperava ver um trono e um líder sentado nele, coroado como os antigos reis, contudo não foi isso que encontrou. O comandante estava no centro da sala, acompanhado por um punhado de homens que supôs serem ministros. Em ambos os lados, mais afastados, estavam alguns soldados.
– Meu caro, espero que tenha gostado da estadia que lhe proporcionei – cumprimentou o comandante, sem quaisquer traços de ironia.
– Quem é o senhor? – devolveu-lhe Walter, pensando que estavam a brincar com ele.
– Peço imensa desculpa, não me tinha apresentado. Deve pensar que não passo de um selvagem, não é isso que chamam às gentes deste território? Eu sou Artur Olivais e sou o líder deste castro – e virando-se para os restantes – e este é o famoso doutor Walter Ramos, o inventor que veio do além-mar.
Walter continuava confuso, questionava-se como é que um líder poderia comandar pessoalmente ataques à Confederação. Era preciso uma grande dose de imprudência para o tentar e sangue-frio para o conseguir.
Artur levantou a mão e fez um gesto. Imediatamente várias cadeiras foram dispostas, formando uma meia-lua em frente de Walter. Sentiu um movimento por trás de si e, ao olhar, descobriu que um dos criados acabara de colocar uma cadeira perto de si.
– Sentemos-nos. Acredito que temos muito que conversar – pediu Artur.

A terceira parte deste conto pode se acedida em:  http://pedro-cipriano.blogspot.de/2012/07/o-monstro-e-musa-terceira-parte.html

domingo, 22 de julho de 2012

O monstro e a musa - parte 1/12

O monstro

Nós sabíamos que o mundo nunca mais seria o mesmo. Algumas pessoas riram-se, outras choraram e a maioria ficou silenciosa. Eu lembrei-me de uma linha das escrituras hindus, o Bhagavad-Gita. Vishnu tenta convencer o príncipe a cumprir o seu dever e, para o impressionar, toma a sua forma de múltiplos braços e diz “Eu agora tornei-me a morte, o destruidor de mundos”. De um modo ou de outro, todos pensamos o mesmo.
Robert Oppenheimer, o pai da bomba atómica

Naquele fim de tarde, Walter viu o caos instalar-se nos primeiros segundos de batalha. De ambos os lados, os canhões rugiram assincronamente, enquanto o jovem corria para encontrar cobertura. Agachou-se em posição fetal, dentro duma depressão do terreno. Não podia fazer muito mais, era um inventor, não um soldado.
Enquanto a escaramuça decorria, amaldiçoou o momento em que se voluntariara para a expedição. Apesar destas montanhas pertencerem à confederação, desde cedo ficou claro que na realidade eram controladas por insurgentes.
Uma das explosões deu-se à sua direita, enchendo o buraco com pó e detritos. Tanto os olhos como as vias respiratórias foram fortemente afectadas, de modo que tossiu e lacrimejou durante minutos.
A artilharia calara-se. Finalmente tudo tinha terminado, pensou, espreitando para fora do buraco. O que viu deixou-o transtornado: a maioria dos soldados que acompanhava a expedição estava morta ou ferida; corpos mutilados e equipamento despedaçado encontravam-se espalhados um pouco por todo o lado. A consternação transformou-se em desespero quando viu que os restantes se tinham rendido. Ao olhar em volta, percebeu que estavam cercados pelos rebeldes.
Não tardou que alguns guerreiros com couraças de couro e latão o encontrassem. Com as suas espadas e lanças, obrigaram-no a sair do buraco. Enquanto o conduziam em direcção aos outros sobreviventes, ergueu a cabeça e tentou caminhar com toda a dignidade que lhe restava. Ao contrário do que esperava, não o agrediram.
Sobrara pouco mais do que uma dúzia de homens. Os inimigos observavam-nos, prontos a agir ao primeiro movimento suspeito. O momento era tenso, pois ninguém sabia o que os esperava. O que Walter tinha ouvido sobre os povos não governados fazia-o prever o pior.
Abruptamente, fez-se silêncio. Os guardas afastaram-se, permitindo-lhes ver o que lhes pareceu ser o comandante. Era um homem, de traços ibéricos e estatura mediana. Não parecia ser muito forte contudo, a sua expressão impunha respeito. Estava armado de um modo muito semelhante aos restantes soldados, à excepção dos dois arcabuzes extra que trazia à cintura.
– Quem é o doutor Walter Ramos? – perguntou, num tom de voz moderado.
O doutor não pôde evitar estremecer. Sabia que o medo que sentia saía por cada poro e que nem a suposta dignidade conseguiria manter. Já que ele permanecia estático no mesmo sítio, um dos sobreviventes empurrou-o.
– Sou eu...
– É um prazer conhecê-lo pessoalmente – explicou o homem. – Os seus serviços são-me necessários. Gostaria que você partilhasse os seus conhecimentos e o seu génio inventivo com o meu castro.
– O que o leva a pensar que eu vou fazer isso? – retorquiu Walter, soltando a sua arrogância sem pensar.
– Meu caro, creio que estará mais familiarizado com uma tal ciência, à qual antigamente davam o nome de física – fez uma pausa, olhando o prisioneiro. – Sabe melhor que ninguém que até a pedra mais pesada pode ser movida com o uso da alavanca correcta. É curioso que o mesmo se passe com os homens.
Walther não sabia como responder, acabando por permanecer em silêncio. Algo lhe dizia que aquele homem ainda tinha trunfos na manga. O tempo arrastou-se de um modo tenso.
– Então, qual vai ser a sua decisão? – insistiu o rebelde, mostrando-lhe que estava a ficar impaciente.
– Gostava de ver que alavanca é essa!
– Para ser sincero, não sei qual é a alavanca no seu caso. Se me permite, vou-lhe contar um segredo. Eu sou um grande fã do método científico e, por vezes, faço algumas experiências na minha cozinha. Provavelmente estou a aborrecê-lo com as minhas palavras, já que não deve estar muito interessado em ouvir falar da minha ciência caseira. Só queria que soubesse que irei procurar de um modo perseverante a sua alavanca. Creio que irei optar pelo método da tentativa e erro – relatou, fazendo um gesto com mão.
Dois insurgentes agarraram-no e levaram-no para mais perto do comandante.
– Não pense que me vai convencer com ameaças! – exclamou Walter, tentando controlar o medo.
– Meu caro, já deve ter ouvido falar de um jogo antigo, creio que se chamava xadrez. Era um jogo muito interessante. Para vencer era preciso antecipar as jogadas do oponente. Todavia, para se ser um mestre, era necessário cortar-lhe também as possibilidades, de modo que ele caminhasse para a armadilha por vontade própria.
–Não estou a entender... – protestou o inventor.
–Matem os prisioneiros que não se puderem colocar de pé! – ordenou com um sorriso sádico.
Vários soldados inimigos colocaram-se à sua frente, de modo que não pôde ver o que se passava. Não tardou que se ouvissem gritos de desespero e angústia. Quando terminou, o silêncio ainda conseguia ser mais sinistro.
–Meu caro, espero que isto o tenha convencido a acompanhar-me – satirizou o comandante.

A segunda parte pode ser encontrada em: http://pedro-cipriano.blogspot.de/2012/07/o-monstro-e-musa-segunda-parte.html

segunda-feira, 4 de junho de 2012

A próxima estação



Como prometido aqui:  http://pedro-cipriano.blogspot.com/2012/05/nachste-haltestelle.html esta é a versão portuguesa do conto.


Desde que acordara, naquele dia, que me parecera somente mais uma manhã como tantas outras. Porém, mal adivinhava o que estava prestes a presenciar.
Durante aqueles dias de Fevereiro, as temperaturas negativas assolavam a cidade ao longo de todo o dia. Durante a maior parte do ano, dias cinzentos e nublados eram a norma. As condições climáticas da cidade eram famosas por causarem uma onda massiva de depressão durante os meses mais frios. Claro está que eu não era excepção, passando grande parte do ano apático e desanimado.
Ao sair, apercebi-me que nevava. A onda gélida envolveu-me e o ar frio encheu-me os pulmões, não sendo das sensações matinais mais agradáveis que já havia sentido. Um manto cobria todo o espaço envolvente, enquanto pequenos flocos esvoaçavam livremente ao sabor do vento. A vontade de enfrentar aquele frio era nula. A vida era tão mais fácil dentro dos cobertores, por entre o meu mundo de sonhos. Por um momento, ponderei voltar para trás. Contudo, um vislumbre das consequências de chegar atrasado, impeliram a afastar-me mais do meu pequeno paraíso.
Ao afastar-me do edifício, a intensidade do nevão aumentou, já que este bloqueava grande parte da intempérie. Inclinei a cabeça e protegi-a com a mão enquanto a neve me castigava a face, em especial os olhos.
Da primeira vez que vi neve, recebi-a como a coisa mais maravilhosa que me havia acontecido. Estava na rua quando os primeiros flocos caíram e a magia do momento pareceu que iria captar o sentimento para o resto da minha vida. No entanto, passado pouco mais de dois meses, já não conseguia simplesmente suportá-la, com se aquele sentimento de harmonia pertencesse a outra vida. Passei pelas bicicletas, empilhadas junto à entrada, as quais ninguém se atrevia a usar com aquele temporal. Felizmente, ao contrário do dia anterior, alguém limpara o passeio e espalhara sal, o que certamente me poupou a várias quedas.
À medida que avançava, havia mais gelo e mais lama, de modo que tinha de tomar atenção constante para não cair. A caminhada não demorou mais do que cinco minutos, contudo, na minha mente pareceu demorar horas. Cheguei completamente enlameado e enregelado.
À entrada do metro, enquanto sacudia a neve que trazia sobre mim, reparei num anúncio afixado num painel. Já o tinha visto tantas vezes que normalmente nem reparava nele. Tratava-se de um morango envolvido por um preservativo, com o objectivo de alertar para o perigo da sida.
Desci as escadas, galgando dois degraus de cada vez, pois o som de fricção com os carris indiciava a recente chegada do metro. Porém, não cheguei a tempo. O ruído que ouvira fora afinal da partida, obrigando-me assim a esperar pelo próximo comboio. Verifiquei as horas, iria chegar bastante atrasado, constatei. Um sentimento de revolta aflorou-me ao peito, só me apetecendo barafustar devido à frustração que sentia.
A minha atenção foi atraída para uma jovem mulher. Não era a primeira vez que a via ali, pois desde há cerca de uma semana que a encontrava frequentemente sentada naqueles bancos, como se esperasse algo. Vestia umas calças de ganga, um comprido casaco bege e usava o seu cabelo loiro atado num rabo-de-cavalo. O que mais me intrigava na sua figura era a pele pálida e os olhos inchados de chorar. Naquele dia não era diferente, encontrando-a enrolada sobre si mesma.
– O que se passa? – perguntei, quebrando a rotina.
Ela retirou a cabeça de entre os braços e olhou-me nos olhos. A sua expressão dançou de assustada para agressiva.
– Vai-te foder! – insultou-me, com um gesto de desprezo.
Naquele momento, tive o impulso de me afastar e fingir que aquilo nunca havia acontecido, chegando mesmo a dar um passo atrás.
– Só te quero ajudar...
– Eu não preciso da tua ajuda! – exaltou-se, elevando a voz.
Por essa altura, já uma dúzia de pessoas tinha parado em redor, observando a situação.
– Qual é o teu problema? – insisti pela última vez.
– Quando se está morto, já não se tem problemas – respondeu-me com um sorriso que trazia um traço de histerismo.
A afirmação enigmática deixou-me extremamente confuso. Tentei ler-lhe o rosto, contudo, nele só encontrei um ar de resignação.
– Deixa-me ajudar-te...
– Ninguém me pode ajudar... – retorquiu, mostrando-se angustiada.
– Mas...
– Desaparece! Mete-te na tua vida! Deixa-me em paz! – gritou ela num tom agressivo e completamente fora de si.
Dei outro passo atrás. Decidi que não queria fazer mais parte daquele espectáculo, que já tinha vários espectadores. Olhei para o painel luminoso, vendo lá a minha escapatória. O metro deveria chegar à estação dentro de alguns segundos. Ela voltou a enterrar a cabeça no meio dos braços.
O som que se seguiu era característico. O metro entrou na estação acompanhado por uma grande deslocação de ar. Virei-me a tempo de ver o transporte a imobilizar-se. As portas abriram-se e algumas pessoas saíram. Fui dos primeiros a entrar, tendo direito a um lugar sentado, extremamente invulgar.
– Por favor, afaste-se do metro – pediu a voz automática do comboio.
Ouviu-se um apitar característico, enquanto as portas se fechavam. Voltei a olhá-la e, nesse momento, ela levantou a cabeça e devolveu-me o olhar com tal intensidade que não pude evitar estremecer. A sua expressão denotava uma calma como nunca tinha visto. A carruagem começou a movimentar-se lentamente, contudo depressa acelerou. Uns segundos depois, tanto ela como a estação tinham desaparecido do meu campo de visão.
A situação deixou-me pensativo, pois não fazia ideia do que se passava com ela. Era notório que precisava de ajuda mas, se não a queria, como é que alguém poderia intervir?
A meio do caminho, tive de abandonar o metro, pois a linha estava interrompida devido a obras. A partir dali tinha duas opções: mudava de linha e dava uma volta à cidade ou apanhava o autocarro de ligação. Nenhuma das opções me agradava particularmente, todavia optei pelo autocarro, por pensar que seria mais rápido. Mais do que enfrentar o nevão, detestava aquelas mudanças à minha rotina. Como era de esperar, acabei por chegar atrasado.
Durante a manhã, esqueci o sucedido. Estava convencido de que a maneira como ela me tratara não deixava grande espaço para simpatia. Ao meio-dia, tive oportunidade de voltar a casa. O nevão tinha cessado e a maior parte das ruas estava já limpa.
De modo a evitar o frio, decidi realizar o percurso mais longo de metro. Aproveitei para ler um livro e abstrair-me da realidade.
Uma estação antes do meu destino, o metro parou e fui obrigado a sair. A informação de que a linha estava cortada apanhou-me de surpresa, já que não havia qualquer manutenção planeada para aquele troço. Subi as escadas, em direcção à parte mais comercial daquela zona. Ao olhar a quantidade de pessoas que esperavam o autocarro, fiquei extremamente desanimado, já que implicava que o mesmo não passava por ali frequentemente.
Decidi então fazer o restante quilómetro a pé. Relembrei as primeiras vezes que havia tentado aquele caminho e que me havia perdido. Num acto de bom senso, retirei o mapa da minha sacola, fazendo-me ao caminho logo de seguida.
Recomeçou a nevar. Em ambos os lados da rua, as lojas de roupa e telemóveis fervilhavam de actividade. Nem o mau tempo impedia as pessoas de comprar e consumir, reflecti amargamente, que vida tão infeliz e fútil.
Um quarto de hora depois, cheguei à minha estação. Ignorando o frio, decidi não resistir à curiosidade e aproximar-me dum grupo de pessoas na paragem de autocarro.
– Desculpe, o que é que se passou para a linha de metro estar interrompida? – perguntei a uma das pessoas.
Recebi vários olhares de indiferença e mau humor. Era óbvio que estavam bastante chateados por lhes terem alterado a rotina.
– Houve um suicídio hoje de manhã, nesta estação... – respondeu-me um homem na casa dos cinquenta.
– Uma jovem atirou-se para debaixo do metro... – acrescentou uma quarentona, ajeitando o seu cesto das compras e virando-me as costas.

Este pequeno conto foi publicado na Antologia Corda Bamba. Está disponível, caso estejam interessados entrem em contacto pelo email: pedro.cipriano@desy.de
Link da eidtora: http://pastelariaestudios.blogspot.de/2012/07/corda-bamba-o-livro.html