quarta-feira, 2 de novembro de 2016

Nanowrimo 2016 - Dia 2: Pré-histórico!

Foi outro dia pre-histórico. Escrita: muito pouco!


A manhã foi passada a descansar dos últimos dias. À tarde fui à gruta de Font de Gaume. É um sítio espectacular, uma das poucas grutas com pinturas paleolíticas originais. À noite tentei retomar a escrita, mas acabei por ler notas e preparar-me para o desafio: já é um clássico eu meter-me nisto sem a devida preparação. O dia rendeu-me 26 palavras.

terça-feira, 1 de novembro de 2016

Nanowrimo 2016 - Dia 1: Aos trambolhões!

O primeiro dia deste desafio foi atípico!


É normal eu iniciar os desafios literários em grande, com uma boa contagem de palavras no primeiro dia. Não foi isso que aconteceu. Estive o dia todo fora, em visita à gruta de Lascaux e ao Castelo de Commarque, ambos em França! à noite, tentei iniciar o desafio, descobrindo que estava muito mal preparado. Acabei por escrever apenas o título e pouco mais num documento, totalizando umas míseras 7 palavras.

segunda-feira, 31 de outubro de 2016

A Reabilitação

Felizmente, para a maioria, o processo não era longo. Uns dias e estava terminado. Quem ditava a necessidade de reabilitação eram os agentes do Estado. Uns sujeitos que vestiam fatos fora de moda e que imiscuíam em demasia na vida das pessoas. Tudo o que não estivesse nos conformes com o que se esperava dum cidadão exemplar podia ser punido. Esses agentes eram uma polícia que estava acima da polícia. Nem eles escapavam do controlo dos seus pares. Quem realmente os liderava, ninguém sabia ao certo, já que até o presidente e ministros podiam ser investigados.
Jorge viu-se no meio do processo numa manhã do fim de Julho de 2039, enquanto vendia cupões de alimentação, na rua de Santa Catarina. Um crime que não praticava por simples desobediência, mas por necessidade. Quando os agentes o abordaram, limitou-se a levantar os braços e fixar o olhar na calçada. Talvez não lhe dessem a pena mais pesada. Não houve juiz, nem advogados, nem sequer um julgamento. Mantiveram-no na cela minúscula durante um par de dias. Depois disso, obrigaram-no a entrar num camião com outra dezena de pessoas. Ninguém ousou trocar uma única palavra sobre o que se estava a passar. Talvez soubessem o que se ia passar. Jorge não sabia.
O camião percorreu quilómetros sem fim, até que, ao pôr-do-sol, chegaram ao acampamento. O recinto estava cercado de arame farpado. Não era claro se servia para impedir a entrada ou a saída. O silêncio imperava entre eles, como o aplicar de uma regra que não fora sequer enunciada. Foram distribuídos por casernas de madeira. Havia muitos mais na mesma situação.
Como refeição foi-lhes dado uma sopa insípida. Jorge estremeceu quando lhe colocaram um uniforme militar esburacado nos braços. Viu medo e resignação nos olhares dos outros. Também eles tinham compreendido o que os esperava. Com as roupas civis, desapareceu a esperança. Nos beliches não havia nem cobertores nem colchão, obrigando-os a dormir vestidos sobre as traves de madeira.
― Toca a levantar! A vossa reabilitação começa hoje! ― rugiu uma voz.
Jorge abriu os olhos. Ainda o Sol não tinha nascido. Mais uma vez, foram metidos em camiões. A viagem não foi longa. Pararam na encosta dum monte. Jorge contou cerca de uma centena de pessoas na mesma condição.
― A vossa reabilitação é simples ― explicou-lhes o sargento. ― Do outro lado da encosta há um rio e uma ponte atravessa esse rio. Quem chegar ao outro lado da ponte é livre e todos os seus crimes são esquecidos. Quem se acobardar é fuzilado. Boa sorte!
Depois passaram-lhe as armas para as mãos. A de Jorge deveria ter pelo menos uns cinquenta anos. Duvidou que sequer funcionasse.
O grupo subiu o resto do monte e quando chegou ao topo, viu que havia trincheiras escavadas por entre as ruínas de uma povoação. A cabeça do homem que estava a seu lado explodiu, numa mistura de osso, sangue e massa encefálica. Jorge atirou-se para o chão e os outros dispersaram de imediato, abrigando-se por detrás do entulho. Ouvia-se uma metralhadora ao longe. Sentiu a face húmida. Ao passar a mão, viu uma substância pastosa vermelha. A custo, conteve o vómito. Respirou fundo três vezes e correu para a pedra seguinte, vagamente consciente que o estavam a alvejar. Uns segundos depois atirava-se para a trincheira, onde se deixou ficar, ofegante. Como ele, a maioria tinha conseguido refugiar-se ali. No entanto, alguns haviam ficado para trás e parecia improvável que se voltassem a levantar.
― O que é que estão à espera? Avancem! Quem estiver nesta trincheira daqui a um minuto é fuzilado ― ouviu um militar ameaçar.
Hesitou. O coração aos pulos no peito. Apertou o cano da arma e galgou a extremidade de forma desastrada. A terra de ninguém não era extensa, mas não oferecia qualquer protecção. Duas dezenas de metros era o que os separava da ponte. Foram de imediato alvejados. Jorge não viu outra escolha que não fosse avançar e procurar a protecção da ponte. O som dos disparos desorientava-o. Houve quem saltasse para o rio. Outros tentaram atravessar a ponte por cima.
Ele não chegou tão longe. A primeira bala acertou-lhe acima do joelho, numa explosão de dor. A segunda no ombro, fazendo-o largar a arma. As três seguintes no tórax. O corpo avançou um par de passos e caiu para a frente, à entrada da ponte. A sua reabilitação terminara.


Foto: Ana Filipa Piedade

Este conto foi publicado originalmente no blogue Fantasy & Co.

sexta-feira, 28 de outubro de 2016

O Campo

Para além do muro ficava o campo proibido. E a bola de Fábio foi lá parar.
― Oh raios! Já é a terceira bola que vai lá parar este mês ― resmunga, atirando um cachaço ao Alberto. ― E a culpa é tua! Podias ter mais cuidado! Amanhã trazes tu a bola!
Fábio sabia que não podia passar para o outro lado e muito menos ir brincar lá. Todos os pais eram unânimes. Acontecesse o que acontecesse, não poderiam passar para além do muro. Era perigoso. Infelizmente, ao lado ficava o único local onde ainda podiam jogar futebol depois da escola.
― Grande bola! Era só um rolho de trapos ― defende-se o Alberto, tentando devolver a agressão de um modo desajeitado.
― Não interessa, quem estraga velho, paga novo! Amanhã trazes uma bola! São as regras! ― impôs o rapaz.
Os colegas acenam o seu apoio.
― Sabem que mais? Vocês são uns mariquinhas, eu vou saltar ao muro e buscar a porcaria da bola.
― Não tinhas coragem! ― espicaça o Hugo, o mais gordo.
― Já vão ver se tenho ou não. Vou lá buscar a bola e vou agora. Vocês, como são uns mijões, podem ficar aí à espera.
Dito isto, eleva-se para o muro, com a ajuda dos braços, apoiando os cotovelos e alçando uma perna. No instante seguinte desaparece do outro lado. Os colegas não deixam escapar o desafio e sobem também ao muro. Vêem a mesma imensa área que ninguém pisara durante mais de uma década. A erva crescia frondosa e pequenos arbustos tomavam conta do local. Já o tinham observado várias vezes, mas nenhum tivera a coragem de descer para o outro lado.
No meio da vegetação, Fábio procura a bola.
― Nunca percebi porque é que os adultos não nos querem aqui – questiona-se o Hugo. ― Isto é um sítio porreiro para tanta coisa!
― Se calhar havia aqui alguma coisa má e agora já não há – deduz o Paulo.
― Talvez, talvez…
― Olhem, o Alberto está lá em baixo e ainda não lhe aconteceu nada. Não podemos ficar aqui e deixar que ele goze connosco ― constata o Fábio.
O grupo salta para a terra de ninguém. Assim que pisam o tapete verde, riem-se. Iriam ter uma história para contar aos colegas no dia seguinte. Os mais velhos iam roer-se de inveja. Iriam ser os heróis da escola.
― Eu ouvi dizer que aqui foi a linha da frente durante a Grande Guerra Europeia, eles nunca conseguiram entrar no Porto ― explica o Carlos.
― Tchii, isso já foi há mais de dez anos. Será que há armas por aqui perdidas? ― imagina o Paulo.
― Às tantas…
― Se houver, eu aposto que…
Uma explosão corta o ar. O impacto da onda de choque é imediato. Os ouvidos ficam a zumbir. Vêem pedaços de terra, vegetação, e não sabem bem mais o quê, voar. Ouvem gritos estridentes. A trupe corre na direcção do som, detendo-se a alguns metros do amigo.
O choque é tal, que correm na direcção oposta. Nenhum deles hesita em abandonar Alberto. O único pensamento é galgar o muro em direcção à segurança. Ninguém jamais iria esquecer do corpo mutilado e desfeito do amigo.
Durante outra geração ninguém iria passar para além do muro.


Este conto foi originalmente publicado no blogue Fantasy & Co.

quarta-feira, 26 de outubro de 2016

Crítica: O Guarda-Livros

Este conto foi publicado em Maio e Junho de 2013 no Fantasy & Co. Enquanto escritor, foi um dos meu favoritos dessa fase, pois reflecte alguns dos meus receios para o futuro. Vou deixar-vos algumas das críticas que recebi.




E também a opinião de Inês Montenegro:


segunda-feira, 24 de outubro de 2016

Arraia

A noite desce sobre a serra como um manto, escondendo no seu âmago falésias rochosas e vales gelados. O vento assobia por entre granitos milenares. O quarto minguante da lua e as estrelas não deixam distinguir mais que algumas sombras.
Sou um desses vultos. Não sei quantos à minha volta serão reais. Parece que estou sempre a ouvir passos. Paro e olho para trás. Só o vento sopra. Estremeço e aperto o casaco contra o peito. Retomo a marcha, apoiado no cajado, caminhando tão rápido quanto a inclinação me permite.
Não faço ideia de quanto falta. A última refeição foi há dois dias. Tive sorte, o velho pastor para além de me dar janta e pernoita, ainda me deu indicações precisas do caminho a seguir. Não devo ser o primeiro que ele acolhe. Vi a foto de um rapaz pendurada ao lado de uma cruz. Trocamos um olhar e bastou. Não precisámos de dizer mais nada. Espero que nunca o descubram. Esforço-me por afastar esse pensamento da cabeça.
Deixei um bilhete na mesa da cozinha para a minha mãe. Apenas uma palavra: arraia. É o que precisa de saber. Como terá reagido? Talvez um dia o saiba. Espero que compreenda que não tenho outra escolha. Meio ano depois de o meu pai ter sido chamado, um tiro de morteiro deixou-o a uma distância que não pode ser vencida. Tiago, o meu irmão mais velho, foi dado como desaparecido faz este Natal um ano. O Vítor, o nosso vizinho de cima, ficou paraplégico numa derrocada. Parece que ainda lhe ouço os nocturnos, a fenderem a noite. E, como eles, tantos outros. Tinha de escapar. Não foi o mais brilhante dos planos, atravessar a serra no Inverno, no entanto o tempo estava a esgotar-se. Faço dezasseis anos daqui a um mês. Não deve demorar nem uma semana para que chegue a convocatória.
Chego ao topo da elevação. Ouço uivos à distância. O pastor tinha razão, não estou sozinho. A aldeia mais próxima fica a mais de dez quilómetros. Ninguém se aventura por aqui. Só cabras, pastores e a Divisão Hermínia. Avanço pelo meio das giestas, tão altas que me fustigam a face. As pálpebras pesam-me e os músculos doem-me, mas sei que se adormecer no meio deste frio, é possível que não acorde. Cada restolhar da vegetação faz-me saltar o coração. De acordo com o que o pastor me disse, devo estar nas Pedras Cruéis.
Os primeiros flocos batem-me nas pálpebras. Sou obrigado a parar num equilíbrio precário. Ergo os dedos gelados para proteger a face. Parece-me demasiado íngreme para descer. O fundo tanto pode estar a meio metro como a meia centena. O vento entra na roupa como se as costuras estivessem mal cosidas. Tremo ainda mais violentamente. Apalpo a roupa, sei que não tem muitos buracos. Volto atrás. De novo no topo, procuro a estrela polar. Segundo o velho, estou perto do ponto mais alto do país que se fragmentou há duas décadas. Aprendi na escola que Pena Tervinca passou a ser o mais alto.
Sigo pelo meio das urzes, a tentar evitar o vento. A minha atenção prende-se no piar de uma coruja vindo de uma árvore próxima. A vegetação agita-se. Sustenho a respiração. Um vulto veloz desaparece à minha direita. Aperto mais o cajado. Não sei se o conseguia soltar com os dedos assim enregelados.
Foi há dois meses que passámos a usar a velha Ponte Dona Maria. Nem tivemos outra escolha: a do Infante foi atingida num bombardeamento. Tivemos sorte: o nosso prédio foi dos poucos que escapou intacto. Quem me dera estar no quente da cozinha.
Quando a lua atinge o seu zénite, encontro-me à beira de um lago. Ao ver a água, apercebo-me da garganta seca. Mergulho a mão no líquido glacial e levo-a à boca. O frio espalha-se-me pelas entranhas. Recomeço a tremer. Bebo mais uma vez.
Passos ressoam nas pedras. Ergo-me e tento voltar à vegetação. Tropeço e caio num zimbro. Esbracejo para me libertar e, quando o consigo, escondo-me nos arbustos. O coração está a galope. Sustenho a respiração. Será que estou a imaginar coisas? Afasto-me dali o mais rápido que consigo. Os ramos castigam-me a cara. Não sei onde pára o cajado.
Quando dou por mim, estou no topo de outra elevação. Dor de burro, cortes nas mãos e na cara. Nada de grave. Cruzo os braços sobre o peito, apertando a roupa contra o corpo. A neve continua a cair, os flocos a acumularem-se sobre tudo. Ergo o olhar. Luzes ao fundo. O que serão? É melhor evitá-las, não vou arriscar. Por cima deste frágil manto branco que me envolve, uma nuvem cobre a lua.
– … não faço ideia – diz uma voz masculina.
Encolho-me no meio da vegetação.
– Nunca pensaste nisso? Dos que passam pra lá do rio, nenhum volta… Achas que se escapam disto? – devolve outra voz.
Os passos aproximam-se.
– Pensa lá um pouco… O que é que a gente faz quando apanha um Asturiano deste lado? Hã?…
Param quase colados a mim. Uma luz. Um cigarro é aceso. Consigo distinguir a sombra das armas. Estou demasiado perto. Respiro muito devagar. Os soldados partilham a mortalha em silêncio. As articulações doem-me. Não posso mexer um único músculo. Atiram a beata e esta aterra mesmo à minha beira. Deixo-os sumirem-se na noite antes de me mover novamente. Mal me consigo mexer.
Por sorte, encontro uma abertura perto, coberta de arbustos que afasto de modo atabalhoado. Cada movimento é uma tortura. Quando é que foi a última vez que dormi uma noite completa? Este recanto diminuto terá que servir. Deixo-me cair para o interior e encolho-me em posição fetal. O frio da rocha atravessa a roupa. Pelo menos aqui o vento não chega. O meu tremer é tão violento que se deve ouvir a metros. Não sei se vou conseguir dormir.
Na cozinha está-se bem. A mãe serve-me um prato de sopa, enquanto sorri. Diz-me que a ditadura e a guerra acabaram. Não me passa pela cabeça dizer-lhe que estava a pensar fugir no pico do Inverno. Sujeito a morrer nalgum buraco, perdido entre as patrulhas dum lado e do outro da arraia. Mergulho a colher na sopa e trago-a à boca. Sinto calor invadir-me o corpo, como o raiar da luz matinal. Até que enfim! Já não se sinto a tremer. Ainda bem, não deve faltar muito para o nascer do sol.


Este conto foi originalmente publicado no blogue Fantasy & Co.

segunda-feira, 17 de outubro de 2016

Rios de Sangue - Parte 2/2

Podem ler a primeira parte deste conto aqui.

Com a ajuda do companheiro, colocou o Zé às costas e seguiu pelos túneis, todo dobrado, para que nenhum deles pudesse ser atingido do exterior. Cada passo era doloroso. Zé murmurava coisas sem sentido. O sangue do colega ia-lhe ensopando a roupa.
― Aguenta-te pá, já estamos a chegar ― encorajou-o.
Ao chegar ao fim da trincheira, soube o que desafio estava prestes a iniciar-se. Teria de percorrer um quilómetro no meio de um ataque para chegar ao hospital. Os cozinheiros e os estafetas faziam o mesmo caminho todos os dias, mas nunca de dia. Isto equivalia a pintar um alvo nas costas. Estremeceu antes de meter o pé na escada.
A partir dali, mexeu-se o mais depressa que o peso lhe permitia. Os disparos multiplicavam-se nas suas costas. Nenhum parecia apontado para eles. Tanto pelo que sabia, bastava um. As costas doíam-lhe. Sentiu as pedras debaixo do pé moverem-se. No momento seguinte, estava em queda. O embate com o entulho expulsou-lhe o ar dos pulmões. O Zé aterrou ao lado dele.
Deixou-se ficar no chão. Estava farto desta guerra. Bastava uma bala e isto acabava. Quase ninguém conseguia cumprir o tempo de serviço com vida ou sem uma lesão permanente. Mais valia ficar ali e esperar pelo inevitável.
Veio-lhe uma lágrima ao canto do olho. A mãe iria chorar quando soubesse. E a doce Leonor também. Era demais, já não bastava a mãe ter perdido o marido e a irmã o pai naquelas margens amaldiçoadas, agora iriam perder o filho e irmão. Ou talvez dois filhos e dois irmãos. Não sabia onde andava o Francisco. Ninguém sabia. A divisão dele nunca parava no mesmo sítio.
Ouviu um gemido a seu lado. Era o Zé. A família nunca o iria perdoar se o deixasse morrer aqui. Ergueu-se, tentando não pensar na batalha que se desenrolava nas suas costas. Pegou o colega ferido ao colo e retomou o caminho. Um pé à frente do outro, foi subindo o monte. As feridas do companheiro eram profundas e o sangue corria em demasia. Apressou o passo, já se via o topo do monte. Faz um esforço, quase atingindo o passo de corrida. No cimo da elevação já se vêem o centro de comando, as artilharias, o paiol e o hospital, que não são mais do que o aproveitar das construções da antiga vila.
Um par de minutos e estava no hospital. Já tinham passado várias semanas desde que ali tinha estado. As camas encontravam-se sobrelotadas e os médicos não tinham mãos a medir. Não conseguia sequer ver as enfermeiras. Estendeu o Zé sobre uma maca. Ninguém pareceu dar de conta que chegaram.
― Alguém me ajude. Ele foi atingido por um morteiro ― protestou, em voz alta.
Por fim um dos médicos aproximou-se.
― Não é preciso gritar ― reclamou, observando o soldado. ― Pode ir, eu trato dele.
Roberto saiu, mas deixou-se ficar por ali. Já não se ouviam os disparos. Parecia que a investida terminara. Não vale a pena perguntar como é que terminou, tudo aparentava ter voltado ao normal. Excepto para os que não irão ver outro dia.
― O que é que o soldado está aqui a fazer? ― perguntou-lhe um oficial.
― Tenente ― fez-lhe continência, depois de se levantar à pressa. ― Vim trazer um companheiro ferido.
― E o que é que está à espera para voltar ao seu posto?
― Estou à espera do anoitecer ― constatou, não percebendo como é que não era óbvio.
O homem afastou-se sem lhe responder. Era provável que estivesse atarefado com qualquer coisa.
Ao pôr-do-sol, o médico veio ter com ele. Trazia uns papéis na mão.
― Entregue isto ao comandante do seu pelotão ― ordenou, virando logo costas.
Assim que ficou escuro, pôs-se a caminho junto com o cozinheiros. O passo era mais lento que os restantes e acabou por ficar para trás. Quando chegou, já a comida tinha sido distribuída. Não se preocupou, foi direito ao abrigo do tenente.
― Onde é que raio estiveste? ― inquiriu, aproximando-se da sua face.
― Levei o Zé para ser assistido ― respondeu, passando-lhe os papéis.
O tenente era mais novo, mas tinha chegado àquela posição por ter frequentado o colégio militar.
― Era só o que mais me faltava ― comentou, passando os olhos pelo formulário. ― Outra baixa. Estás dispensado.
Roberto voltou para a trincheira. Sentou-se ao lado de Fábio, que lhe passou a malga da sopa para a mão. Trocaram um olhar. Não precisava dizer-lhe que não voltariam a ver o Zé.


Este conto foi publicado originalmente no blogue Fantasy & Co.

domingo, 16 de outubro de 2016

Chá de Domingo #96: Ainda Sobre o Cyberpunk - Parte 5/5

Esta será a última parte sobre a essência e origem do ciberpunk. Podem encontrar a primeira parte aqui, a segunda aqui, a terceira aqui e a quarta aqui.


"Há que compreender que o nosso tempo não tem nada de banal. A realidade que conhecemos é uma explosão de novidades a cada dia que passa. Nem todas as novidades são boas. É um tempo estranho e de certo modo desconfortável para se estar vivo. Mas, gostaria que sentisse o autor como uma presença... gostaria que entendesse que a coisa invisível nesta sala é a sensação presente de viver no tempo futuro, e não nos anos que nos antecederam. Ser um futurista não é ter sempre a cabeça levantada, à espera que o futuro chegue. É saber claramente onde se está e pensar como se pode melhorar. Só hoje, viva como se estivesse num condição própria de um universo de ficção científica."

"Não existem pessoas normais - olhe para a sua família, as pessoas que você conhece melhor. De uma maneira ou de outra, todos têm as suas esquisitices. Ainda assim a ficção convencional mostra-nos, na maioria das vezes, pessoas normais num mundo normal. A partir do momento em que escreve como se fosse o único anormal, sentir-se-á fraco e apologético. Estará motivado para ir com a corrente e com medo de fazer ondas - para que não seja encontrado. Pessoas reais são estranhas e imprevisíveis, por isso é que é tão importante usá-las como personagens ao invés dos estereótipos impossíveis do bom e do mau que a cultura predominante nos trás. A ideia de quebrar a realidade consensual é ainda mais importante. É aqui que as ferramentas da ficção especulativa são particularmente úteis. Cada mente é uma realidade nela própria. Enquanto as pessoas poderem ser enganadas pela realidade do telejornal, elas podem ser conduzidas como ovelhas."

"No final do século XX, o nosso tempo, um tempo mítico, somos todos quimeras, teorizadas e híbridos entre organismos vivos e máquinas; em suma, somos ciborgues. Ciborgue é a nossa ontologia; dá-nos a nossa política. O ciborgue é uma imagem condensada da imaginação e realidade, os dois centros conjuntos que estruturam qualquer possibilidade de transformação histórica. Na tradição da ciência e política ocidental... a relação entre organismos vivos e máquinas tem sido uma guerra fronteiriça. O que está em causa nesta guerra são os territórios de produção, reprodução e imaginação."

sexta-feira, 14 de outubro de 2016

Ebooks: Os Sobreviventes

Quem está pronto para um conto em forma de diário? Confesso que este tipo de relatos me fascina.


Autor: Pedro Pereira
Sinopse: Um diário perdido de um médico encontrado num hospital de campanha abandonado revela uma macabra história de um acidente e do horror que se seguiu...


Somos catapultados para o centro da acção nas primeiras linhas. Creio que as missivas são demasiado curtas para criarem o suspense e tensão que este tipo de história merece. As descrições estão bem conseguidas. Gostaria que o autor tivesse explorado um pouco mais a causa disto, nem que fosse através de especulação da personagem principal. Em suma, um conto razoável com muito potencial para se tornar numa história por si mesma.
Recomendo quem gostar de um conto epistolar. 

Classificação: 3 estrelas

quarta-feira, 12 de outubro de 2016

Ebooks: A Barca

Uma homenagem actual ao conto de Gil Vicente.


Autor: Pedro Pereira
Sinopse: Um porto, duas barcas, uma leva ao inferno e a outra ao paraíso. Uma homenagem à obra de Gil Vicente, o Auto da Barca do Inferno.

Começando pelas personagens: muito actuais e muito bem escolhidas. Os estereótipos foram bem usados conseguido criar um efeito cómico. O autor podia ter usado mais algumas rimas para aumentar o efeito de comédia. Gostava que autor tivesse usado o formato de peça. Em suma, uma justa homenagem.
Recomendo a quem queria relembrar esta famosa sátira social.

Classificação: estrelas

segunda-feira, 10 de outubro de 2016

Ebooks: A Faca

O Fantasy and Co acaba de ganhar um novo autor residente.


Autor: André Alves
Sinopse: Rui, um jovem residente na ilha turística, que serve de paragem para quem parte para as estações espaciais, vê-se a ter visões demasiado realistas da morte do seu melhor amigo Gonçalo. Morte essa causada por si, num ato de fúria. Mas tal como vê a morte do amigo, vê-lo a passear vivo como se nada se passasse...


É sempre um prazer conhecer um novo autor, para mais quando ele ainda está a dar os primeiros passos. A trama é um pouco confusa, mas acabamos por perceber que é intencional. Quanto mais nos aproximamos do final, mas vai crescendo um nervoso miudinho de não sabermos ao certo o que está a acontecer. Gostava que o autor tivesse desenvolvido mais as personagens. O mundo criado não tem grande relevância na história, mas a temática de universos paralelos torna tudo muito mais interessante. Nada a apontar às descrições. Em suma, é um bom conto se tivermos em conta que são os primeiros passos deste autor.
Recomendo a quem quiser conhecer e apoiar um promissor e jovem escritor.

Classificação: 3 estrelas

domingo, 9 de outubro de 2016

Chá de Domingo #95: Ainda Sobre o Cyberpunk - Parte 4/5

Nesta série de artigos estou a explorar a essência e a origem do cyberpunk. Podem ler a primeira parte aqui, a segunda aqui e a terceira aqui.


"O que muita gente se esquece... é que o futuro de gancho de açougue sombrio não é um pós-apocalipse ao estilo de Mad Max, em que todos andam aos tiros uns aos outros protegidos em armaduras feitas de pneu de tractor e roupas Wilson's Leather que sobrarem. Esse futuro - imaginado por muitos como um antídoto para os espetaculares futuros cromados do Star Trek e da ficção cientifica inflexível dos anos 50 - é, de facto, inteiramente ridículo e bastante improvável assim como qualquer palermice em forma de fetiche tecnológico que os transhumanistas se lembrarem. É uma fantasia machista pelos libertários que secretamente rezam para que os pobres se revoltem e iniciem uma guerra para que os seus amigos que se parem de rir do facto de terem um arsenal de armas automáticas ao lado do seu Lexus na garagem do enclave dos subúrbios."
- Jushua Ellis

"Bem-vindo ao futuro J.G. Ballard - que rapidamente se torna um consenso pelo seu próprio mérito - onde o futuro é essencialmente banal. De momento, é a opinião mais sensata a ter. Um escritor chamado Venkatesh Rao usou recentemente o termo 'normalidade em série' para descrever isto. Tudo está pensado para activar a disposição psicológica para acreditar que nós vivemos num presente estático e aborrecido. Intemporalidade é a condição (dominante) do início do século XXI... Através da normalidade em série ninguém vence porque todos ficam adormecidos e a realidade nunca será melhorada. Mas vou sugeri-vos algo. Todas as teorias de normalidade em série e história zero podem ser destruídas por uma única coisa: olhar em volta."

"Se o futuro está morto, então temos de o invocar e aprender como vê-lo correctamente. Não se pode ver o presente em condições através do retrovisor porque ele está à frente. Hoje há seis pessoas a viver no espaço. Há pessoas a imprimir protótipos de órgãos humanos e pessoas a imprimir nanofio biológico que se ligará ao tecido humano. Já fotografamos a sombra de um único átomo. Temos pernas robóticas controladas por ondas cerebrais. Exploradores já estiveram no local insubmerso mais fundo da terra - uma cave a mais de dois quilómetros de profundidade abaixo de Abkhazia. A NASA está a preparar-se para lançar três satélites do tamanho de uma chávena de café que serão controlados por uma aplicação de smartphone. Voyager One está a mais de onze mil milhões de milhas de distância e o seu computador de 64K com fitas magnéticas de oito pistas ainda está funcional."
Warren Ellis

Podem encontrar a quinta e última parte aqui.

sexta-feira, 7 de outubro de 2016

Rios de Sangue - Parte 1/2

O dia estava calmo e o sol perto do Zénite. Para além do bombardeamento matinal e alguns tiros de aviso, não acontecera nada digno de nota. Para Roberto, fulcral era manter a cabeça abaixo da linha do solo. Tudo o resto eram detalhes.
Não havia muito para fazer, por isso, dedicou-se a desmontar e limpar a arma. O maior inimigo tinha duas armas: a morte e o aborrecimento. A transição entre uma e outra era brusca e nefasta. Tanto passavam dias aninhados naquelas poças de lama a morrer de doenças tratáveis, como em semanas de combates intensos. Uns e outros vinham e iam sem qualquer aviso. A fome e o sono eram como a paisagem, contribuíam só para o desconforto geral e já ninguém se queixava deles.
O som da metralhadora quebrou a monotonia e não anunciava nada de bom. Voltou a montar a arma e a carregá-la o mais rápido que pôde. Tinham sido eles a disparar, o que significava que o inimigo estava de novo a tentar atravessar o rio.
― E aqui vamos de novo ― comentou Igor, que se aninhara a seu lado.
Mais disparos. Ambos sabiam que não era boa ideia espreitar. Ao contrário de alguns, eles tinham tido miolos suficientes para não perderem a cabeça desse modo.
― O que se passa? ― gritou para os colegas da trincheira ao lado.
― Mais um ataque, nada de especial ― respondera-lhe de imediato.
O morteiro caiu a uns passos deles. A onda de choque derrubou-o, fazendo-o cair na lama. Um zumbido persistente apoderou-se-lhe dos ouvidos. Uma inspecção rápida mostrou-lhe que não estava ferido. Umas quantas assim e ficaria surdo. Igor já se havia recomposto. O Zé vinha da latrina e o Fábio do abrigo.
― Onde é que vocês estavam? Já perderam o início do fogo-de-artifício ― gozou Igor, atirando um murro no ombro do Zé.
Estes vinte metros estavam por conta deles. À frente ficava a terra de ninguém. Vinte metros de desolação até ao rio. As ordem eram simples: acontecesse o que acontecesse, nenhum inimigo podia jamais desembarcar.
As munições de artilharia continuavam a chover por ali. Umas mais perto que outras. Se tivesse escolha, preferia ficar nos abrigos individuais, onde o risco de ser atingido era mínimo. Eles separaram-se, indo cada um para o posto, uma saliência na vala. Por esta altura, já Igor estaria a usar o seu espelho para ver quem lá vinha. Olhou para arma. Esta lata podia ser do tempo da União Europeia, mas ainda funcionava bem. A primeira vez que encravasse podia ser o último dia da sua vida.
― Más notícias, pessoal. Eles estão a levar barcos até à praia. Não tarda que tentem atravessar ― gritou Igor, fazendo-se ouvir por cima do barulho dos disparos.
Ao longo dos anos, tinham havido centenas de investidas de ambos os lados, todas com o mesmo resultado: nenhum. Não fazia diferença quantos homens e recursos usavam. Ser destacado para um ataque era uma sentença de morte. Tanto que a expressão, que te escolham para a próxima investida, já se tornara um dos piores insultos. O pior eram os bandos de corvos que se banqueteavam nos corpos abandonados na terra de ninguém. O croquitar constante afectava até mesmo os que tinham nervos de aço.
Apesar de estarem no meio de uma ofensiva, a maior parte do tempo só podiam esperar. Uns segundos de acção e estava tudo acabado, de uma maneira ou de outra.
Outro salvo de artilharia atingiu as posições. Um dos projécteis caiu tão perto que sentiu a onda de choque nos ossos. O zumbido nos ouvidos parara por completo. Não ouvia nada. Apercebeu-se que aquilo explodira na borda da trincheira. Era raro acontecer e nada bonito de ver. O coração falhou uma batida. Caíra perto do Igor. A terra desabara naquele ponto, misturada com pedras. Viu Fábio do outro lado. Onde estava o Zé? Distinguiu um braço mutilado no meio do solo. Aproximou-se, percebendo que o resto do dono já não estava presente. A pouco foi encontrando outros pedaços ali perto. Igor não tinha salvação. O Fábio estava tentar desenterrar algo. Foi ajudá-lo. O Zé estava bastante maltratado, mas vivo. Trocou um olhar com Fábio. Ambas as alternativas eram arriscadas.
― Eu levo-o ― ofereceu-se Roberto.


Podem encontrar a segunda parte deste conto aqui.

Este conto foi publicado originalmente no Fantasy & Co.

quarta-feira, 5 de outubro de 2016

Ebooks: Dispersão

E vou-me aventurar uma vez mais pela poesia!


Autor: Mário de Sá-Carneiro
Sinopse: Um pouco mais de sol — eu era brasa,
Um pouco mais de azul — eu era além.
Para atingir, faltou-me um golpe d’asa…
Se ao menos eu permanecesse aquém…

Assombro ou paz? Em vão… Tudo esvaído
Num baixo mar enganador d’espuma;
E o grande sonho despertado em bruma,
O grande sonho — ó dor! — quasi vivido…

Quasi o amor, quasi o triunfo e a chama,
Quasi o princípio e o fim — quasi a expansão…
Mas na minh’alma tudo se derrama…
Entanto nada foi só ilusão!

De tudo houve um começo… e tudo errou…
— Ai a dor de ser-quasi, dor sem fim… —
Eu falhei-me entre os mais, falhei em mim,
Asa que se elançou mas não voou…

Momentos d’alma que desbaratei…
Templos aonde nunca pus um altar…
Rios que perdi sem os levar ao mar…
Ânsias que foram mas que não fixei…

Se me vagueio, encontro só indícios…
Ogivas para o sol — vejo-as cerradas;
E mãos d’herói, sem fé, acobardadas,
Puseram grades sobre os precipícios…

Num ímpeto difuso de quebranto,
Tudo encetei e nada possuí…
Hoje, de mim, só resta o desencanto
Das coisas que beijei mas não vivi…

. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .
. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .

Um pouco mais de sol — e fora brasa,
Um pouco mais de azul — e fora além.
Para atingir, faltou-me um golpe d’asa…

Se ao menos eu permanecesse aquém…


Ao longo das curtas páginas deste livro, que foi, na maioria, escrito no espaço de uma semana, fica-nos o desespero do poeta. Procura-se e não se encontra e volta-se a perder em si mesmo. Mário de Sá-Carneiro escreveu-o com 22 anos, uns meros 3 anos antes de suicidar. Estes versos já mostravam os dilemas e o estado de profunda depressão do poeta. Por isso, não é uma leitura leve. A poesia não se mostra com grandes artifícios, no entanto a cadência transmite parte do desespero ao leitor.
Recomendo a quem quiser conhecer um dos autores mais influentes do início do século XX, da geração d'Orpheu, assim como como Almada Negreiros e Fernando Pessoa.

Classificação: 4 estrelas

segunda-feira, 3 de outubro de 2016

Ebooks: Dá-me o Nome

Para quem gosta de contos de visita ao Outro Lado...


Autora: Inês Montenegro
Sinopse: A paisagem do Gêres pouco tem de desconhecido a Denise. Mas após tantos anos, o nome dele ainda lhe é vedado, e o crime dela pouco esquecido.


Apesar do início estar um pouco murcho, depressa a história impõe um bom ritmo. A ligação à  personagem principal é fácil. Uma das personagens secundárias deveria ter sido mais explorada para que o final fizesse um pouco mais sentido. As descrições estão boas, mas gostava que a autora tivesse mostrado um pouco mais do Outro Lado. A trama mantêm o leitor agarrado até à última página, culminando num final previsível mas recompensante. Em suma, um conto que irá entreter a  maioria dos leitores, incluindo os mais exigentes.
Recomendo vivamente a quem gostar desta temática e/ou quero conhecer melhor o trabalho desta jovem promessa nacional.

Classificação: 4 estrelas

domingo, 2 de outubro de 2016

Chá de Domingo #94: Ainda Sobre o Cyberpunk - Parte 3/5

Vou continuar a explorar a génese e essência do cyberpunk. Podem ler a primeira parte do artigo aqui e a segunda aqui.


"Há muita frieza no cyberpunk, mas é uma frieza honesta. Há êxtase, mas também terror... Esta geração terá de assistir a um século de desperdício e de descuido chegar aos limites, e todos sabemos disso. Nós teremos sorte em não sofrer a maioria das consequências devidas às atrocidade ecológicas cometidas; nós teremos imensa sorte em não ver milhões de humanos morrerem atrozmente na televisão enquanto nós, os ocidentais, ficamos sentados nas nossas salas de estar mastigando os nossos cheeseburgers. E isto não é uma excêntrica lamentação Boêmia; isto é uma afirmação objectiva acerca da condição do mundo, facilmente confirmada por quem tiver coragem para olhar para os factos. Esta prospectivas devem e tem que afectar os nosso pensamentos e expressões e, sim, as nossas acções; e se os escritores fecham os olhas a isto, então podem ser animadores, mas não estão aptos a serem chamarem-se a eles mesmos escritores de ficção científica."

"Cyberpunk foi atropelado na super auto-estrada da informação dos anos 90. Nem mais, nem menos. Bruce Sterling declarou-o mais ou menos morto em 1985, e estava certo; como movimento dentro a ficção cientifica o seu trabalho estava terminado. O mundo em que vivemos é o futuro do cyberpunk dos anos oitenta. Não é necessariamente uma coisa boa."

"Os meus amigos que trabalham na aeroespacial dizem-me que os veteranos que construíram a industria cresceram a ler Heinlein e Clarke, e foram para a aeroespacial para tornar essas coisas malucas que leram enquanto garotos em realidade como adultos. Bem, eu trabalho em supercomputação, e posso assegurar que esta industria está cheia de génios jovens que cresceram a ler Gibson, Vinge e Rucker - e sim, a mim - e vieram para este ramo pela mesma razão. Nós não vivemos no mundo que a ficção cyberpunk previu. Mas, vivemos num mundo que as crianças que cresceram a ler cyberpunk construíram, e isso é algo sem dúvida espectacular."

"Para mim, enquanto criança, ler cyberpunk era como ver o mundo pela primeira vez. O Neuromancer de Gibson não era só estonteante em termos estilísticos; parecia uma molde para o futuro que estávamos a construir. Eu lembro-me de ler Islands de Sterling na internet e, de súbito, perceber o potencial disruptivo da tecnologia assim que o acesso a ela se torna comum. O ciberpunk estava à porta. Não é o futuro a um quarto de hora daqui - é um futuro que te arrasta e te deixa num molde de corpo inteiro à sua passagem. Há uma necessidade enorme de corrigir a sua trajectória. A ficção cientifica perdeu a ligação à realidade. Os seres humanos não vão para a Lua, estamos a tornar-nos digitais. Alguém precisa de agarrar o género pelos colarinhos e puxa-lo - forçar os escritores a olharem para o presente e decifrar as suas implicações."

"O futuro encontra-se dividido; o futuro adorável e isolado que Joi Ito, Cory Doctorow, eu e tu habitamos, e o futuro gancho de açougue sombrio que a maior parte do mundo enfrenta, no qual eles veem os seus campos ocupados e sub-desenvolvidos tornarem-se num jogo gigante de Counterstrike entre filhos da puta jihadistas malucos religiosos e filhos da puta rednecks malucos religiosos Americanos, ambos fazendo o seu melhor para tornar o mundo inteiro num tipo de pesadelo fascista ou noutro. Claro que ninguém quer falar sobre o futuro, porque é deprimente e não é divertido quando não tens Fischerspooner a fazer a banda sonora."
- Joshua Ellis

Podem encontra a quarta parte desta série aqui.

sexta-feira, 30 de setembro de 2016

Ebooks: A Ruiva

Este é uma daquelas novelas que deixou uma impressão forte através das imagens sórdicas.


Autor: Fialho de Almeida
Sinopse: Não tinha a menor ideia do que fosse ter mãe ou ter amigas. No seu contacto com a gente, entrevira apenas o tenebroso fundo de bestialidade que referve em cada homem, com um fragor de luxúria cruel. Vivera sempre em si própria, sem a reminiscência dum carinho que alma piedosa lhe houvesse prodigalizado. Quantos beijos deixara roubar aos moços do cemitério e quantas palavras tinha merecido aos gatos-pingados, todas vinham ervadas da mesma ideia e do mesmo intento. E assim crescera naquela incultura de espírito sem guia, sentindo dentro avigorar-se-lhe apenas uma tendência — a da cadela fértil, que vai entregar-se. Através da sensação rudemente nascida olhara o mundo, esfaimada e torpe como se fora um verme descomunal das sepulturas, incapaz, pelos desolados cenários que tinha contemplado nos seus dias de criança, de dar acesso na sua alma às multíplices emoções e susceptibilidades histéricas que fazem da mulher o precioso receptor das coisas mais subtis que a língua não exprime e os olhos mal sabem formular. (…) Foi o tio Farrusco quem cobriu de terra, sem comoção nem saudade, o corpo, espedaçado pelo seu escalpelo, da rapariga corroída de podridões sinistras, abandonada do berço ao túmulo, e pasto unicamente de desejos infames e de desvairamentos vis.


Infelizmente, a novela não começa logo na acção, mas dá-nos antes um detour para que nos preparemos ao que ai vem. As personagens centrais: Carolina e João são-nos bem descritas e contêm uma profundidade realista. As descrições são um pouco exaustivas e algumas redundantes, no entanto, é também nas descrições que está o melhor do livro: as imagens de miséria e tristeza estão de tal modo bem escritas que vão ficar na memória durante muito tempo. A trama desenvolve-se, embora sem grande surpresas visto que conhecemos o final de antemão. A leitura não é fácil devido aos blocos de descrição. Mas, se tivermos em conta o estilo da época, esta novela estava sem dúvida bem escrita para os parâmetros do realismo.
Recomendo a quem quiser um sentir como era a vida dos pobres de Lisboa no final do século XIX, contada por um contemporâneo.

Classificação: 3 estrelas

quarta-feira, 28 de setembro de 2016

Ebooks: Diabos Levem a Musa!

Dragões levem a Musa!


Autora: Inês Montenegro
Sinopse: Em véspera de data limite para entregar a sua mais recente obra, a Musa foge ao Escrivão para um jantar romântico com um Dragão.


Esta história está escrita num tom humorístico bem conseguido. Engraçamos com facilidade com a personagem principal e somos levados numa viagem por uma sopa de referências. Houve um bom jogo de estereótipos. Em suma, um conto com um bom potencial para entreter.
Recomendo a quem desejar um conto para matar o tempo.

Classificação: 3 estrelas

segunda-feira, 26 de setembro de 2016

Ebooks: O Sabre e o Corvo

Cinco contos contam uma história, cada um com o seu estilo próprio.


Autores: Carlos Silva, Sara Farinha, Vitor Frazão, Inês Montenegro e Pedro Pereira
Sinopse: Um antiquário onde reina o peculiar e o mágico. Um corvo de determinação sobrenatural. Um sabre cuja honra foi manchada pelo sangue de inocentes. Cinco escritores, cinco contos, interligados pelo desejo de justiça e pela vingança, onde o que parece pode não ser, e até uma alma se pode vender.


Como é normal em antologias, irei comentar cada um dos contos em separado e a classificação final  será derivada da média dos contos.

A Loja - Carlos Silva
Esta história é mais uma vinheta. Não há grande desenvolvimento e acaba por ser apenas o relatar de uma situação.
3 estrelas

Uma Herança Familiar - Sara Farinha
Acho que esta vinheta não foi bem conseguida. Relata muita coisa, mas não acontece nada.
2 estrelas

Último Desejo - Vitor Frazão
Gostei mais deste conto do que do anterior: há uma história com início, meio e fim; e há desenvolvimento da personagem.
3 estrelas

O Bom Negociante - Inês Montenegro
Outro fragmento. Esperava mais.
2 estrelas

Vingança - Pedro Pereira
Lavar uma espada com água e secá-la com um pano? Isto não é maneira de tratar uma espada: um pouco de pesquisa teria ajudado neste conto. Pelo menos este conto sempre encerra a história.
3 estrelas

Teria sido mais interessante se cada conto funcionasse isoladamente e não apenas como parte da história maior.

Classificação: 3 estrelas

domingo, 25 de setembro de 2016

Chá de Domingo #93 : Ainda Sobre o Cyberpunk - Parte 2/5

Decidi explorar um pouco a génese e a essência do cyperpunk. Podem encontrar a primeira parte deste artigo aqui.


"Quando iniciamos o cyberpunk, queríamos realmente dar nas vistas - sair desta pequena sub-cultura de ficção cientifica - só para surpreender toda a gente. E conseguimos fazê-lo. Ninguém pode prever os futuros que nós imaginamos. As coisas mudaram desde os primeiros dias do cyberpunk e, para começar, eu estou muito mais interessado em problemas teóricos profundos. Claro que faço coisas do género MTV, flash imaginery - que ao início me parecem boas ideias mas que acabam por não me encher as medidas. Eu quero chegar à mente das pessoas. Eu quero chegar ao estado de conhecimento como poder."

"O que é realmente bom acerca do punk é que é rápido e denso. Tem carradas de informação. Se valoriza a informação acima de tudo, então não se preocupa com convenções. Não é 'Quem é que você conhece?'; é 'Quão rápido és? Quão denso?' Não é 'Fala como os meus colegas?' é 'Isto é interessante?' Então o que eu estou a dizer é que o cyberpunk é do género: a ficção científica não é fácil de ler, tem muita informação, e fala de novas formas de pensar que advém da revolução computacional."

"O que é mais importante é que Neuromancer é acerca do presente. Não é realmente sobre um futuro imaginado. É um modo de lidar com o espanto e o terror inspirado pelo mundo em que vivemos. Estou ansioso para saber o que irão achar dele no Japão."

"Como género literário, o que aconteceu foi o que acontece a qualquer coisa nova bem sucedida em todos os ramos da cultura pop. Cyberpunk passou de algo refrescante, inesperado e original para ser a última moda, para ser uma formula comercial, para ser um estilo repetido até à exaustão, com uma lista de elementos estilísticos completa e formas reverenciadas que necessitam de ser referenciadas para que alguém escreva um Verdadeiro Cyberpunk..."

"O tempo e a sorte foram gentis com os cyberpunks, embora eles tenham mudado com os anos. A doutrina central da teoria do movimento era 'intensidade visionária'. Mas, já passou algum tempo desde que um cyberpunk tivesse escrito algo verdadeiramente surpreendente, algo que se contorça, solte, uive, alucine e parta a loiça toda. No trabalho mais recente destes veteranos, nós vemos uma trama afinada, melhores personagens, uma prosa cuidada e muito 'futurismo perspicaz e sério'. Mas também vemos muito menos back-flips espontâneos e danças loucas em cima da mesa. Os cenários ficam cada vez mais perto da realidade presente, perdendo os arabescos barrocos da fantasia solta: os problemas em causa assemelham-se horrivelmente às preocupações corriqueiras de uma pessoa de meia idade. E isto pode ser esplêndido, mas não é guerrilha."

Podem ler a terceira parte do artigo aqui.

sexta-feira, 23 de setembro de 2016

Ebooks: A Ponte das Almas Negras

Quem nunca leu nada de Carina Portugal, devia começar por este conto!


Autora: Carina Portugal
Sinopse: Durante mais de um século, Rouco manteve a sua guarda, sob a ponte de uma antiga vila. Algo negro habita-a, escondido entre as pedras degradadas e os líquenes, aguardando a chave da sua libertação. A pequena Aurora, apesar de cega, é a única que tem o dom de as conseguir ver. Contudo essa dádiva é também uma maldição que a persegue.


Desde a primeira linha que a história nos agarra. As personagens estão bem conseguidas e tanto nos fazem torcer por elas como odiá-las. O mundo ficcional está bem construído, embora eu gostasse de saber mais, não creio que tenha ficado nada de importante por mostrar. A autora consegue fazer descrições soberbas. Uma referência especial aos feitiços, que merecem ser lidos só por si mesmos. A trama segue um fio lógico, sem momentos mortos, num crescendo de tensão bastante adequado. O final não desaponta, embora o epílogo seja dispensável. O tom é adequado aos mais jovens, sem aborrecer o mais velhos. Em suma, um muito bom conto que merece muito mais atenção do que aquela que recebeu.
Recomendo vivamente a quem gostar de um bom conto de fantasia ligeira.

Classificação: 4 estrelas

quarta-feira, 21 de setembro de 2016

Ebooks: Sete Vezes Sete

Um bom conto para quem adora o universo arturiano.


Autora: Inês Montenegro
Sinopse: Na história da criação de Excalibur, muito foi o que Nimueh, Dama do Lago, perdeu.


A execução é competente. Apesar das diversas personagens e do foco ir mudando, há um fio condutor sólido. A trama vai-se desenrolando e os acontecimentos vão mantendo o leitor interessado. Gostaria que o conto se tivesse focado mais na personagem principal, que acabou por ser descrita de um modo muito superficial para o tamanho do conto. As descrições estão bem conseguidas, não se destacando nem se mostrando ausentes. Em suma, um bom conto em que lhe ficou a faltar a vivacidade das personagens.
Recomendo a quem quiser conhecer um pouco mais do trabalho desta jovem escritora.

Classificação: 3 estrelas

segunda-feira, 19 de setembro de 2016

Ebooks: Universos Literários

Quem quer dar uma volta pelos universos literários de sete autores portugueses?


Autores: Ana Ferreira, Carlos Silva, Carina Portugal, Liliana Novais, Pedro Cipriano, Pedro Pereira e Sara Farinha
Sinopse: A antologia contem os seguintes contos:
Imtharien - O Canto da Ninfa de Carina Portugal
Inbicta - Vamos Pintar os Franceses de Carmim de Ana Ferreira
Apocalipse - A Queda de Berlim de Pedro Pereira
Percepção - Túmulo 62 de Sara Farinha
Urbania - A Destilação do Absurdo de Carlos Silva
Ahelanae - O Primeiro Voo de Liliana Novais
Era Dourada - A Alvorada de Pedro Cipriano


Como é normal nestas antologias, vou passar o meu conto à frente. A pontuação da antologia será dada em função dos contos individuais através duma média aritmética.

O Canto da Ninfa - Carina Portugal
A história está bem escrita e não me desapontou. Gostaria apenas que a autora tivesse sido mais dinâmica na narrativa e não fosse apenas um seguimento de eventos.
3 estrelas

Vamos Pintar os Franceses de Carmim - Ana Ferreira
Gostei do tom humorístico e das personagens caricatas. Infelizmente não me cativou por aí além.
3 estrelas

A Queda de Berlin - Pedro Pereira
Esta história é mais um fragmento. Gostava de ter visto algum tipo de conclusão nos temas que abriu.
2 estrelas

Túmulo 62 - Sara Farinha
A personagem está bem explorada, é pena é não percebermos as suas motivações. Algumas partes podem ser confusas para quem não conhece este universo. Gostei do facto de o conto ter bastante tensão.
3 estrelas

A Destilação do Absurdo - Carlos Silva
Gostei do conto. O autor conseguiu descrever o processo sem contar, o que só por si é excelente. Para além disso, há uma reviravolta final que é muito recompensante.
4 estrelas

O Primeiro Voo - Liliana Novais
Outro fragmento. A história podia ter sido terminada um pouco antes sem deixar nada em aberto.
2 estrelas

Classificação: 3 estrelas

domingo, 18 de setembro de 2016

Chá de Domingo #92: O que Procuram num Curso de Escrita Criativa?

O que procuram num curso de escrita criativa? Foi esta a pergunta que fiz a escritores lusófonos e cujos resultados vou divulgar neste artigo.


A primeira pergunta foi a idade, para estabelecer o perfil etário dos escritores:


De notar que isto não reflecte o universo de escritores, mas apenas os que preencheram o formulário que foi divulgado através das redes sociais. Grande parte dos que responderam a este inquérito (75.3%) estão entre os 18 e os 35 anos de idade.

A segunda pergunta incidiu sobre o número de obras publicadas e a intenção de o fazer:



A grande maioria (61%) ainda não publicou nenhum livro nem ebook, mas conta fazê-lo num futuro próximo.

A terceira pergunta incidiu sobre a utilidade dos cursos de escrita criativa:



84.4% dos inquiridos consideraram que um curso de escrita criativa poderia ajudá-los a melhorar a escrita.

Para os 15.6% que responderam que não ajudaria, o inquérito termina. Analisando melhor a situação, deveria ter acrescentado um par de perguntas para essas pessoas, para perceber porquê é que consideravam que um curso não os poderia ajudar.

A quarta pergunta incidiu sobre o local do curso:


A maioria (43.1%) não tem uma preferência. No entanto, existe uma tendência para o online (35.4%) mais forte do que para o presencial (21.5%).

A quinta pergunta foi sobre o que mais valorizam num formador:


Pode-se concluir que a experiência como editor é o mais valorizado (52.3%), seguido do conhecimento do mercado editorial (23.1%). A formação universitária relevante vem em terceiro com 10.8% e outras razões em quarto com 9.2% (os outros factores enunciados estão relacionados com a experiência e formação) A exposição mediática e o número de publicações não parecem ser relevantes de todo, conseguindo uma percentagem mínima (1.5% e 3.1% respectivamente).

A sexta pergunta incidiu sobre os tópicos que deveriam ser abordados num curso:


A categoria Erros Comuns e como evitá-los foi considerada importante por 78.5% dos inquiridos. Estrutura/organização da narrativa surge empatada com o desenvolvimento das personagens em segundo lugar com 76.9% das escolhas. Criação de Mundos ocupa a quarta posição com 61.5% das escolhas, seguido de perto pelas técnicas de revisão com 60%. No sexto lugar aparece a escrita de contos com 43.1%. Em sétimo lugar surge a auto-publicação com 32.4% e em oitavo o desenvolvimento da não-ficção com 27.7%.

A sétima pergunta focou-se no preço justo de um curso de escrita criativa:


A maioria do inquiridos mostrou preferência por um valor em volta dos 5 euros por hora (58.4%). 12.3% considera esse valor muito elevando e 29.3% considera esse valor muito baixo.

A oitava e última pergunta prende-se com a duração de uma curso:


Há uma clara preferência por um curso mais alargado: 44.6% preferem um dia inteiro e 23.1% uma manhã ou uma tarde. O que bate certo com o facto de terem considerado múltiplas escolhas nos assuntos a abordar. Na outra ponta, há 21.5% que considera que duas horas é o tempo ideal, havendo apenas 10.8% que considera que três horas é mais adequado.

Teria sido interessante pedido o género dos inquiridos e talvez incluir mais uma ou duas faixas etárias. Poderia também ter segmentado um pouco mais as obras publicadas e a falta delas. Na duração, seria interessante colocar a opção de uma única sessão ou de múltiplas sessões, por exemplo ao fim do dia. São dados bastante reveladores, que podem ser úteis para quem deseje leccionar cursos de escrita criativa. Gostaria que a oferta destes cursos estivesse mais coordenada com a procura. O que é que vocês acham?

sexta-feira, 16 de setembro de 2016

Ebook: Histórias Fantásticas de Portugal

Partes da história de Portugal contadas com um pouco de fantasia à mistura!


Autores: Carina Portugal, Pedro Cipriano, Pedro Pereira e Ricardo Dias
Sinopse: "O Anel do Rei", de Pedro Pereira
D. Afonso Henriques, príncipe herdeiro do condado, lidera o exército dos barões portucalenses contra as forças de Fernão Peres de Trava. Porém, no frente-a-frente com o conde, quando tudo parecia estar perdido, Afonso recebe uma preciosa ajuda de uma velha amiga…

"Hoc Signo Vinces: Com este Sinal Vencerás", de Pedro Cipriano

Os cinco exércitos cercam uma expedição cristã num monte alentejano. Estão em Ourique, embrenhados em território inimigo. Os inimigos excedem-nos em cinco para dois. E os homens estão com medo. Será a fé do príncipe forte o suficiente para vencer a batalha? 

"A Pedra de Dighton", de Carina Portugal

Há mais de 500 anos, o navegador português Miguel Corte-Real desapareceu na costa atlântica do Novo Mundo. A única pista do seu paradeiro distante está contida nas misteriosas inscrições da Pedra de Dighton. E Cecília, sua descendente, não descansará até desvendar a verdade que há nelas.

"O Relatório para o Marquês", de Ricardo Dias

Um investigador apresenta-se perante um conselho secreto, encabeçado por uma das figuras mais proeminentes da época, para relatar a verdadeira causa do Terramoto de 1755.


Como é normal nestas antologias, a classificação será a média aritmética das pontuações individuais de cada conto excluindo o meu.

O Anel do Rei - Pedro Pereira
As falas inicias são demasiado informais e a linguagem usada é anacrónica. Fora estas imprecisões históricas, a história tem um bom ritmo e é capaz de entreter com facilidade.
3 estrelas

Hoc Signo Vinces: Com Este Sinal Vencerás - Pedro Cipriano
Creio que vou saltar este.

A Pedro de Dighton - Carina Portugal
Gostei da história mas achei que gostaria de saber um pouco mais da personagem principal. As descrições estão bem conseguidas e a trama prende o leitor, excepto para duas pequenas quebras de ritmo: uma no início e outra no final.
3 estrelas

O Relatório para o Marquês - Ricardo Dias
Uma boa ideia, que poderia ter tido uma melhor execução. Gostei da explicação criada para justificar o terramoto de Lisboa. Preferia que o autor tivesse usado outra táctica narrativa.
3 estrelas

Classificação: 3 estrelas

quarta-feira, 14 de setembro de 2016

Ebooks: Raktabija

Mitologia indiana reencarnada na época contemporânea.


Autora: Carina Portugal
Sinopse: Uma gota de sangue, mil demónios… Há milénios, a deva Kali enfrentou o terrível general-asura Raktabija, quando este atacou o mundo dos homens com os seus terríveis exércitos. Pensou tê-lo derrotado, contudo uma pequena parte do demónio escapou incólume.


Por não conhecer a mitologia que estava subjacente a este conto, pude lê-lo sem preconceitos. A cena inicial desperta o interesse e o desenvolver da mesma não desaponta. As descrições ajudam a ambientar o conto. As personagens contem a profundidade que se pode esperar de um mito. A trama desenvolve-se num crescendo muito bem conseguido e com o final bem executado. Em suma, um excelente conto.
Recomendo vivamente a quem se interessar por mitologia indiana e quiser conhecer o trabalho de uma escritora emergente.

Classificação: 5 estrelas

segunda-feira, 12 de setembro de 2016

Ebooks: O Domador de Dragões

Dragões, anões e humor: o que mais se pode querer?


Autora: Inês Montenegro
Sinopse: Aldrabar o currículo pareceu a João uma mais-valia. Mas talvez, e apenas talvez, não o devesse ter feito quando o novo emprego implicaria domar um dragão.


Gostei da maneira como o conto foi conduzido. Passamos uma boa parte da história sem saber se haveremos de gostar ou de detestar o protagonista. A autora cria tensão, embora só quanto baste para ir mantendo o leitor atento. Gostei das descrições e do tom usado. O desenlace era esperado e ainda tem o bonus de dar uma "lição". Em suma, um conto bem escrito que entretem, embora não se destaque no repertório da autora.
Recomendo a quem quiser conhecer um pouco mais da obra des jovem promessa nacional.

Classificação: 3 estrelas

domingo, 11 de setembro de 2016

Chá de Domingo #91: Ainda Sobre o Cyberpunk - Parte 1/5

Aproveitando a onda Cyberpunk gerada pelo lançamento da primeira antologia do género portuguesa, gostaria de partilhar convosco algumas citações que ajudam a contextualizar e a compreender a origem do cyberpunk.


"Apesar de agora o cyberpunk ser visto como um género bem sucedido da ficção cientifica, era bastante controverso quando começou. Mas, era como nós queríamos que fosse. Todos nós tinham, e ainda temos, um desejo incansável e implacável de quebrar os limites da realidade consensual. Se ninguém estiver chateado, então é porque não nos estamos a esforçar o suficiente... Começamos a escrever cyberpunk porque tínhamos um descontentamento forte em relação ao status quo da ficção cientifica, e também com o estado da sociedade em geral."

"Não tinha um manifesto. Tinha só algum descontentamento. Parecia-me que a ficção científica americana de massas a meio do século era frequentemente triunfalista e militarista, uma espécie de propaganda popular do excepcionalidade americana. Estava cansado da América-que-é-o-futuro, o mundo como uma monocultura branca e do protagonista da classe média ou acima. Eu queria tornar-me um espaço de manobra. Eu queria espaço para anti-heróis."

"Eu também queria que a ficção científica disse mais naturalista. Houvera uma pobreza na descrição na maior parte dela. A tecnologia descrita era tão eficiente e limpa que era praticamente invisível. O que seria de qualquer livro de ficção científica se pudéssemos melhorar a resolução? Como era na altura, a maioria dos livros era como os jogos antes da invenção da sujidade fractal. Eu queria ver a sujidade nos cantos."

"A ficção cientifica estava encravada num locus amenus nos anos 80. Podia ir a uma livraria e encontra Arthur C. Clark ao lado da Odisseia ou os livros de Asimov acerca das três leis da robótica. Robert Heinlein ainda estava a produzir sexo e filosofia em série. Mas, apesar dos esforços de uma variedade de inovações literárias, a ficção científica estava basicamente igual há vinte ou trinta anos atrás. Era uma experiência preguiçosa do futuro. Os cientistas faziam coisas competentes, a tecnologia aeroespacial estava na moda, e a política circulava à volta de conflitos entre nações. E então veio o cyberpunk - Pat Cadigan, William Gibson e Bruce Sterling. Foi subversivo e gritty, uma viagem caleidoscópio-poética ao futuro capitalista. Corporações sem face erguem-se acima dos dramas insignificantes do comum mortal, movimentando biliões de dollars e yens à volta do mundo enquanto os humanos da história vivem miseráveis. Eram cyberespaço e cowboys do teclado, casacos de cabedal, implantes de lentes Zeiss, próteses russas modificadas, extinct horses e mirrorshades. O futuro era bizarro e ameaçador - e também estranhamente real."

"A tecnologia não é neutra. Nós estamos dentro daquilo que fazemos, e ela está dentro de nós. Nós vivemos num mundo de ligações - e faz diferença quais fazemos e cortamos."
- Donna Hardaway

Podem encontrar a segunda parte deste artigo aqui.