Podem ler a primeira parte aqui. 
Os olhares não duraram mais do que um 
doloroso par de segundos. Já os jovens haviam perdido o interesse nele 
há alguns momentos e o coração ainda batia descompassado.
Vagueou ao acaso, tentando absorver o 
máximo desta realidade. As novas bandeiras faziam-lhe confusão. Ardia em
 curiosidade para saber o que acontecera, mas tinha receio de, ao 
perguntar, ser tomado como estrangeiro. Para além disso, não conversara 
com ninguém durante mais de uma década.
Recordou-se da última vez em que trocara 
impressões com o filho. Fora algures no início da década de vinte. Como 
era normal, ele deixara-lhe o almoço numa travessa à entrada do sótão e 
batera na madeira sólida. Ao abrir a porta, depara-se com um jornal ao 
lado da refeição.
― Tiago!
Ele voltara atrás, de olhar surpreendido.
― Obrigado pela comida ― agradeceu o idoso, acalmando-se.
― De nada, pai. Há alguma coisa de errado?
― Tiago, preferia que não me 
trouxesses jornais. Não me quero distrair com essas coisas. Quero 
conseguir concentrar-me totalmente na escrita.
― Desculpe, pai, não volta a 
acontecer ― ripostou o homem de meia-idade, voltando costas e 
desaparecendo sem esperar por uma resposta.
Depois do 11 de Setembro e do clima de 
Guerra Fria instalado contra um inimigo invisível e inventado pelos 
soberanos, Manuel perdera o interesse nas notícias. Os jornais diziam 
todos os dias o mesmo, interesses e interesses, excepto os seus.
Algo atraiu a sua atenção. Do outro lado 
da estrada havia uma livraria. Sem pensar duas vezes, atravessou a 
antiga faixa de rodagem, agora coberta com calçada portuguesa, e entrou 
no estabelecimento. Esforçou-se para mostrar um tom neutro enquanto 
procurava com o olhar a secção de História.
― Muito bom dia ― cumprimentou-o o lojista.
O coração falhou-lhe uma batida. Não 
esperava ser interpelado tão prontamente. O sotaque era-lhe familiar, 
mas não o que esperava de um habitante da Invicta.
― Bom dia.
O empregado, quase tão velho como ele, franziu o sobrolho.
― Em que posso ajudá-lo?
― Tem algum volume da história recente de Portugal?
O comerciante arregalou os olhos, como se tivesse acabado de ouvir algo escandaloso.
― Desculpe, mas não temos nenhum livro desse género.
Pela segunda vez nesse dia, o maxilar 
descaiu-lhe. Nunca antes havia estado numa livraria em que não houvesse 
uma secção inteira dedicada ao tema.
― Podia ter a bondade de me indicar onde se situa a prateleira de História?
Sem mais uma palavra, o homem apontou 
para um dos cantos da loja. Manuel mancou até lá, sem se atrever a 
quebrar o silêncio. De toda a estante, só metade de uma prateleira é que
 era dedicada a História. As lombadas não deixavam margem para dúvidas, 
Portugal já não existia. Nenhum livro do quarteirão disponível abordava 
outro assunto que não fosse a História de Porto e Galiza.
Abandonou o estabelecimento sem sequer 
agradecer. Procurou regressar a casa pelo mesmo caminho, precisava de 
retornar ao seu refúgio. Concentrado em colocar uma perna à frente da 
outra sem forçar demasiado os joelhos, não reparou nos dois homens que 
se aproximavam.
A colisão atirou-o ao chão. Os óculos saltaram e a visão ficou turva. Os dois vultos permaneciam à sua frente.
― Peço imensa desculpa ― amenizou, enquanto os dedos procuravam os óculos.
Sentiu a haste com o dedo mindinho. Puxou
 a armação e colocou-a sobre o nariz, recuperando a sua visão normal. 
Como duas torres, os dois homens vestidos com um fato quase tão antigo 
como o seu, observavam-no com ar de poucos amigos.
― Mostre-nos a sua identificação ― exigiu o mais alto.
― Não tenho nada ― balbuciou a tremer.
― Então vai ter que nos acompanhar até à 
Direcção Regional dos Assuntos Internos. Vá levante-se ou temos que o 
arrastar à força? ― rugiu um deles, estendendo a mão e agarrando-o pelo 
colarinho.
Os dois agentes conduziram-no à bruta 
pelas ruas até chegarem ao que Manuel recordava ser uma antiga esquadra 
da PSP. Sem cerimónias ou explicações, fecharam-no numa das celas.
***
Sentado na cadeira e apoiado na bengala, 
Manuel esperava que Tiago regressasse à cozinha. Quando este transpôs a 
entrada, recebeu-o com um olhar de cachorro submisso.
― Desculpa…
O filho fitou-o com uma expressão indecifrável, suspirando de seguida.
― Não percebo, juro que não percebo! ― exasperou-se, abanando a cabeça.
― Eu estava bloqueado, não escrevia nada há dias…
― Mas sair assim de casa? Sem sequer 
avisar? Os tempos mudaram, o nosso país já não é o mesmo. Não se pode 
andar pela rua sem os documentos. Aliás, o pai não pode sequer abrir a 
boca que vão notar que tem um sotaque diferente. O pai passou demasiado 
tempo fechado naquele sótão. Outra coisa que não percebo ― despejou, 
acabando por se sentar em frente ao pai, ofegante, como se tivesse 
realizado um grande esforço físico.
― Eu queria criar a maior obra da língua portuguesa…
― Essa língua já não existe, pelo menos 
deste lado do Mondego. Nunca devia ter permitido que passasse tanto 
tempo trancado naquele cubículo!
Os olhares cruzaram-se, o de um velho cansado e de um quarentão zangado.
― Valeu a pena? ― perguntou o filho.
― Como? ― admirou-se Manuel, arregalando os olhos.
― Conseguiu escrever a obra que tanto ansiava?
O idoso fitou a ponta dos sapatos, sem se atrever a levantar a cabeça.
― Não ― confessou uns momentos depois. ― E
 acho que nunca a irei terminar. Queria honrar uma nação que já não 
existe. Não só a nível soberano, territorial ou linguístico, mas aquela 
ideia que permaneceu durante mais de 800 anos, de um país uno que deu 
novos mundos ao mundo. Sem isso não vale sequer a pena terminar.
A tremer, levantou-se da cadeira, quase 
num esforço sobre-humano. A velhice apoderara-se dele. Olhou o filho e 
deu-lhe o seu melhor sorriso. Abraçaram-se por fim.
― Desperdicei vinte anos da minha vida 
por isto. Devo ser o maior idiota que existe mas, pelo menos, aprendi a 
minha lição. Espero que me perdoes…
A expressão de Tiago deixou-o mais 
sossegado. Não eram necessárias palavras. Depois encaminhou-se para o 
seu sótão, disposto a queimar tudo, até à última folha.

 
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