Uma troca involuntária de olhares com o desconhecido foi suficiente.
Daniel interrompeu o vaivém pelo passeio, que o mantivera ocupado
durante a manhã, e enveredou por uma ruela. O homem seguiu-o.
― Tem cupões? ―
interpelou-o o desconhecido.
Daniel virou-se e observou o homem. Não teria mais de quarenta anos,
usava um fato escuro gasto e uns óculos redondos de vidro
esverdeado.
― Tenho o meu!
Mas que raio de pergunta é essa? ― devolveu, contendo-se para não
soltar um gesto obsceno.
O homem sorriu e Daniel fez o mesmo. Deixou as mãos nos bolsos da
gabardina castanha-clara e os músculos da face relaxar. Sabia o que
estava prestes a acontecer e não podia fazer nada para o evitar.
― Peço desculpa
― respondeu-lhe o sujeito, levando a mão ao bolso.
Outro desconhecido surgiu à entrada da rua. Este era mais novo e
usava uma indumentária semelhante. Avaliou o segundo homem,
percebendo que nunca poderia correr mais do que eles.
― Com a sua
licença, eu tenho outros assuntos a tratar... ― desculpou-se
Daniel, virando costas aos sujeitos.
― Espere! ―
prosseguiu o homem, esperando até ele olhar de volta. ― Eu vi o
senhor andar de trás para a frente nesta rua durante toda a manhã.
Tanto passeou que, de certeza, não haverá problema se o retivermos
por mais uns breves momentos.
― Polícia de
Segurança Interna ― identificou-se o segundo, retirando o cartão
do bolso. ― Levante os braços e fique quieto!
― Está bem, não
tenho nada a esconder... ― levantou os
braços e acenou com as palmas das mãos abertas.
Os dois agentes aproximaram-se. Um agarrou-lhe no braço direito e
torceu-o até Daniel cair de joelhos. O outro vasculhou-lhe os
bolsos, enquanto a dor se intensificava e alastrava pela perna
esquerda.
― Seu traficante
de meia-tigela, vais pagar caro por estes teus negócios! ―
prometeu o que lhe segurava o braço.
Apontando-lhe uma pistola à face, obrigando-o a despir o casaco e a
tirar os sapatos. O produto da busca foi amontoado sobre o passeio.
Os agentes fixaram o olhar no único cartão amarelo.
― Daniel
Pereira, quem é esta pessoa? ― interrogou-o o agente, lendo o nome
no cupão.
― Sou eu, veja
na minha carteira... ― respondeu-lhe, ainda no chão.
Os polícias abriram a carteira e inspeccionaram os documentos.
― Senhor Daniel
Pereira, parece que desta vez se safou ― disse-lhe o mais velho,
atirando a carteira para o chão de modo a que o conteúdo se
espalhasse.
Os dois homens viraram costas e afastaram-se.
Ainda com os joelhos e pulsos doridos, levantou-se e recolheu os seus
pertences espalhados pelo beco. Cerrou os punhos e suspirou
ruidosamente. Ajeitou as roupas e voltou à rua principal.
Não tinha dúvidas que os agentes o iriam
seguir nos próximos dias. A tarefa que tinha em mãos não
podia esperar tanto. Precisava de
comprar um cupão no mercado negro antes do fim do dia. Sem aquele
papel amarelo, era impossível comprar comida.
Num passo determinado, desceu em direcção à estação de São
Bento. Parou uma ou duas vezes de frente às montras, certificando-se
que um sujeito de óculos escuros esverdeados seguia no seu encalço.
Decidiu pôr em prática uma das manobras do manual.
Entrou na estação e desatou a correr, saindo pela outra porta.
Esperou um momento antes de voltar à rua. Com o coração aos pulos,
caminhou em passo apressado de volta para onde os agentes o tinham
interpelado.
Sorriu ao ver o velho no seu banco de madeira habitual. Ele
sentava-se sempre nas mesmas tábuas verdes, para esperar à sombra
de um plátano centenário. Sentou-se ao seu lado, tentando estimar
quanto tempo teria até os agentes lhe encontrarem de novo o rasto.
― Bons olhos te
vejam, meu filho ― disse-lhe o homem
― Que Deus o
abençoe e o guarde de todo o mal.
O idoso passou-lhe um envelope castanho e Daniel enfiou-o no casaco
do sobretudo. Levantou-se sem se despedir. Dirigiu-se ao mercado da
rua de Santa Catarina. Era quase hora de almoço e nem assim o
movimento diminuía. As barracas amontoavam-se, ocupando espaços que
não lhe estavam destinados. De quando em quando, os gritos das
vendedoras de tecido sobrepunham-se aos outros ruídos.
Há sete anos atrás ainda era possível comprar comida no mercado da
capital, mas à medida que a guerra se prolongava, toda a produção
estava cativa do estado. Ninguém poderia obter alimentos sem
apresentar o cartão. A luta do Norte contra o Sul já tinha feito
correr rios de sangue. As dores esporádicas na perna esquerda, fruto
de um disparo de metralhadora, relembravam-no o porquê de não
cumprir oito anos de serviço obrigatório.
Embrenhou-se na multidão, lutando para passar. Sabia que os polícias
nunca o encontrariam no meio da confusão.
Percorreu metade da feira antes de se deparar com o comerciante que
procurava. Era um homem magro que usava uma barbicha excessivamente
longa. Todos o que o conheciam concordavam, era impossível estimar a
idade do sujeito, só sabiam que ele era mesmo muito velho.
― Bom dia, meu
jovem, em que posso ajudá-lo? ― cumprimentou com um sorriso que
mostrava uma dentição ainda perfeita.
― Estou
interessado nos seus produtos.
― Esteja à
vontade ― convidou o comerciante, estendendo a mão sobre a mesa
que servia de balcão.
Durante um momento, Daniel fingiu estar interessado nos relógios de
parede. Não tinha pressa, pois sabia que um acto irreflectido
deitaria tudo a perder. De um modo subtil, abriu o envelope que lhe
havia sido dado sem o retirar do sobretudo, ficando com o diminuto
pedaço de papel na palma da mão.
― Eu gostaria de
ter um relógio que marcasse as horas das refeições... ― pediu,
olhando o homem nos olhos.
― Quem vive em
sua casa?
― Uma senhora.
― E ela é nova
ou velha?
― Nova.
― Então eu
aconselho-lhe a levar este aqui ― sugeriu, apontando para um
relógio branco redondo.
― Parece-me bem,
quanto custa?
― Oitenta contos
de reis.
Retirou um maço de notas do envelope e pagou ao homem. O velho
contou duas vezes o dinheiro antes de lhe dar o relógio.
Deixou o mercado e desceu para a parte velha da cidade. Alguns dos
prédios tinham, pelo menos, o dobro da idade da Grande Guerra
Europeia. Aquela parte do Porto ainda não fora bombardeada, o que
não era de admirar, não era preciso lançar bombas naquela
vizinhança para os prédios caírem, eles desmoronavam-se sem
precisar de ajuda.
Ao chegar ao seu edifício, deparou-se com dois homens que esperavam
do outro lado da rua. Vestiam camisas brancas e calças de feltro,
não tinham aspecto de trabalhadores. O coração quase lhe saltou da
caixa torácica.
Cada passo era uma tortura e tinha de se obrigar a dá-lo. Um dos
homens olhou-o e um arrepio frio percorreu-lhe a coluna. Adivinhou
que seria o fim da sua carreira, o que tinha na sua posse era mais do
que suficiente para o incriminarem. Seria acusado de tráfico,
traição, encobrimento de agentes estrangeiros. Cada uma dessas
acusações era suficiente para servir num batalhão penal, onde
pagaria em sangue pelos seus crimes.
A agente que chegaria no dia seguinte seria também capturada. As
chances de alguma vez destruir esta oligarquia estavam reduzidas. Em
particular, chateava-o não ter conseguido vingar o seu irmão, morto
na linha do Mondego.
Os dois sujeitos tocaram à campainha, ignorando-o por completo.
Ainda com as mãos a tremer entrou no seu prédio. Subiu as escadas e
trancou-se no seu apartamento. Colou-se à janela da cozinha.
Um dos homens conversava agora com o vizinho da frente. O outro saiu
do interior do edifício com uma volumosa caixa de madeira. Um par de
notas trocaram de mãos e os dois homens desceram a rua com a
mercadoria.
Respirou de alívio, percebendo que a sua mente pregara-lhe apenas
uma partida. A revolução iria acontecer.