quarta-feira, 27 de novembro de 2013

A Passagem Uivante - Parte 1/2


Este texto foi publicado no primeiro número da Revista Lusitânia.

Fernando apreciava o pôr-do-sol contra o horizonte escarpado. O vento assobiava pelas encostas e a Este o fumo subia. O jovem Cabo tentou ignorar os motores dos aviões que rugiam sobre a sua cabeça. A guerra rodeava-o a cada momento e a cada instante ele tentava esquecê-la.
Alguns soldados acendiam fogueiras no meio do acampamento. Sabiam que a paz naquele regimento blindado era algo temporário, mesmo assim estavam determinados a preparar o seu jantar como se de mais um dia vulgar se tratasse. Depois de seis anos de guerra contínua, era difícil ver as coisas de outra maneira.
A divisão blindada do Sul esperava ordens para entrar na batalha. Haviam defendido a linha do Mondego durante seis meses e estavam com a capacidade de combate reduzida. Tanto os reforços como as peças necessárias à reparação haviam chegado nessa tarde. Nem umas nem outras haviam sido suficientes para suprir as faltas.
Não penses tanto, não é saudável – pediu-lhe Roberto, sentado nas rochas a seu lado.
Levantou a cabeça e olhou-o nos olhos. Aquele rapaz de cara longa e nariz proeminente era um dos poucos que conseguia desligar-se da realidade. Os seus olhos castanhos irradiavam uma força de vontade contagiante. Enfrentava a vida com um sentimento de epicurismo notável, incluindo até os oito anos de serviço militar obrigatório.
É difícil. Eu penso muito nas coisas que o meu pai me contava. Sabes, ele falava-me de como as coisas eram antes da grande guerra.
Sim, antes. Antes de eu ter nascido. Eu sei o que sentes... – concordou, espelhando o olhar de saudade por algo que nunca havia conhecido.
Muitos sentem o mesmo – olhou para o céu que escurecia com um olhar sonhador. – A Europa já foi só uma. Depois foi o Norte contra o Sul. E, depois, a ocupação. Eu era apenas uma criança de berço. A primeira coisa que me lembro foi do fim da ocupação. As ruas em festa. Insensatos, se soubessem o que os esperava...
Deixa-te disso e vamos comer. Tu precisas é de beber algo para esquecer. O que foi já não volta, não vale a pena chorar.
Tens razão – olhou subitamente Roberto nos olhos. – Sabes uma coisa? Tu és para mim com um irmão mais novo.
Não digas parvoíces. Hoje vais beber a minha porção de vinho a ver se te eleva o espírito – gracejou, levantando-se e estendendo a mão a Fernando.
Ao fundo ouviu-se o chorar de uma guitarra portuguesa. Quando um homem tinha de reter as lágrimas, a guitarra assumia a tarefa de as libertar.

***

Somente o rugir dos motores perturbava a calma escuridão. Não os esperava o descanso nocturno em sacos cama estendidos por baixo dos tanques. Uma fila indiana de blindados percorria os caminhos da encosta. O exército era alimentado por combustível de origem vegetal, cujos motores tinham um rendimento menor, fazendo as tácticas militares serem muito semelhantes às de um século atrás.
As ordens de combate haviam sido distribuídas a seguir ao jantar. Era suposto avançarem durante a noite numa ofensiva através do vale. Iriam contribuir para um movimento de pinça com o objectivo de cercar o exército que guardava as fronteiras do estado das Astúrias.
O Major prometeu-lhes que seria um ataque decisivo e que lhes traria uma vitória rápida. Poucos foram os que tentaram acreditar e ainda menos os que conseguiram. Pelo menos havia a esperança de que a escuridão os protegeria dos aviões, o maior flagelo de uma divisão blindada.
Quase imerso pela escuridão, Fernando conduzia o veículo couraçado pelo estreito carreiro. Apenas um luar pálido permitia distinguir as formas grosseiras do terreno. A cadeira reclinada era o lugar mais confortável daquela arma antiquada. O resto da equipa mantinha-se atenta a eventuais perigos. Cada blindado era usado por uma equipa de seis membros: o comandante, o condutor, o operador de comunicações, dois armadores e o atirador.
Enquanto o blindado rastejava, Fernando ia perdido nas suas considerações. Roberto, o irmão que sua mãe não lhe pudera dar, era o carregador de um do tanques daquela fila. Muitas vezes dava por si a pensar se irmão era o que lhe queria chamar. Numa sociedade tão fechada como a do pós-colapso da União Europeia, aquele tipo de pensamentos não eram vistos com bons olhos. Quase tudo passara a ser proibido e o resto era tabu. E havia medo.
O segundo batalhão encontrou resistência blindada - transmitiu o rádio.
Daqui fala o Major Pereira. As ordens são para prosseguir com o plano – ouviu-se pouco depois.

A segunda parte está disponível em: http://pedro-cipriano.blogspot.de/2013/12/a-passagem-uivante-parte-22.html 

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