Este texto foi publicado no primeiro número da Revista Lusitânia.
Fernando
apreciava o pôr-do-sol contra o horizonte escarpado. O vento
assobiava pelas encostas e a Este o fumo subia. O jovem Cabo tentou
ignorar os motores dos aviões que rugiam sobre a sua cabeça. A
guerra rodeava-o a cada momento e a cada instante ele tentava
esquecê-la.
Alguns
soldados acendiam fogueiras no meio do acampamento. Sabiam que a paz
naquele regimento blindado era algo temporário, mesmo assim estavam
determinados a preparar o seu jantar como se de mais um dia vulgar se
tratasse. Depois de seis anos de guerra contínua, era difícil ver
as coisas de outra maneira.
A
divisão blindada do Sul esperava ordens para entrar na batalha.
Haviam defendido a linha do Mondego durante seis meses e estavam com
a capacidade de combate reduzida. Tanto os reforços como as peças
necessárias à reparação haviam chegado nessa tarde. Nem umas nem
outras haviam sido suficientes para suprir as faltas.
–
Não penses tanto, não é saudável –
pediu-lhe Roberto, sentado nas rochas a seu lado.
Levantou
a cabeça e olhou-o nos olhos. Aquele rapaz de cara longa e nariz
proeminente era um dos poucos que conseguia desligar-se da realidade.
Os seus olhos castanhos irradiavam uma força de vontade contagiante.
Enfrentava a vida com um sentimento de epicurismo notável, incluindo
até os oito anos de serviço militar obrigatório.
– É
difícil. Eu penso muito nas coisas que o meu pai me contava. Sabes,
ele falava-me de como as coisas eram antes da grande guerra.
–
Sim, antes. Antes de eu ter nascido.
Eu sei o que sentes... – concordou, espelhando o olhar de saudade
por algo que nunca havia conhecido.
–
Muitos sentem o mesmo – olhou para o
céu que escurecia com um olhar sonhador. – A Europa já foi só
uma. Depois foi o Norte contra o Sul. E, depois, a ocupação. Eu era
apenas uma criança de berço. A primeira coisa que me lembro foi do
fim da ocupação. As ruas em festa. Insensatos, se soubessem o que
os esperava...
–
Deixa-te disso e vamos comer. Tu
precisas é de beber algo para esquecer. O que foi já não volta,
não vale a pena chorar.
–
Tens razão – olhou subitamente
Roberto nos olhos. – Sabes uma coisa? Tu és para mim com um irmão
mais novo.
–
Não digas parvoíces. Hoje vais beber
a minha porção de vinho a ver se te eleva o espírito – gracejou,
levantando-se e estendendo a mão a Fernando.
Ao
fundo ouviu-se o chorar de uma guitarra portuguesa. Quando um homem
tinha de reter as lágrimas, a guitarra assumia a tarefa de as
libertar.
***
Somente
o rugir dos motores perturbava a calma escuridão. Não os esperava o
descanso nocturno em sacos cama estendidos por baixo dos tanques. Uma
fila indiana de blindados percorria os caminhos da encosta. O
exército era alimentado por combustível de origem vegetal, cujos
motores tinham um rendimento menor, fazendo as tácticas militares
serem muito semelhantes às de um século atrás.
As
ordens de combate haviam sido distribuídas a seguir ao jantar. Era
suposto avançarem durante a noite numa ofensiva através do vale.
Iriam contribuir para um movimento de pinça com o objectivo de
cercar o exército que guardava as fronteiras do estado das Astúrias.
O
Major prometeu-lhes que seria um ataque decisivo e que lhes traria
uma vitória rápida. Poucos foram os que tentaram acreditar e ainda
menos os que conseguiram. Pelo menos havia a esperança de que a
escuridão os protegeria dos aviões, o maior flagelo de uma divisão
blindada.
Quase
imerso pela escuridão, Fernando conduzia o veículo couraçado pelo
estreito carreiro. Apenas um luar pálido permitia distinguir as
formas grosseiras do terreno. A cadeira reclinada era o lugar mais
confortável daquela arma antiquada. O resto da equipa mantinha-se
atenta a eventuais perigos. Cada blindado era usado por uma equipa de
seis membros: o comandante, o condutor, o operador de comunicações,
dois armadores e o atirador.
Enquanto
o blindado rastejava, Fernando ia perdido nas suas considerações.
Roberto, o irmão que sua mãe não lhe pudera dar, era o carregador
de um do tanques daquela fila. Muitas vezes dava por si a pensar se
irmão era o que lhe queria chamar. Numa sociedade tão fechada como
a do pós-colapso da União Europeia, aquele tipo de pensamentos não
eram vistos com bons olhos. Quase tudo passara a ser proibido e o
resto era tabu. E havia medo.
– O
segundo batalhão encontrou resistência blindada - transmitiu o
rádio.
–
Daqui fala o Major Pereira. As ordens
são para prosseguir com o plano – ouviu-se pouco depois.
A segunda parte está disponível em: http://pedro-cipriano.blogspot.de/2013/12/a-passagem-uivante-parte-22.html
A segunda parte está disponível em: http://pedro-cipriano.blogspot.de/2013/12/a-passagem-uivante-parte-22.html
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